Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Suzana Singer

‘Dilma e Serra vão ter de esperar, porque o espaço hoje é do dr. André.

Na madrugada de 29 de agosto, o médico mineiro chefiava o plantão do Hospital Municipal do Campo Limpo, bairro na zona sul, onde 83% das famílias vivem com até cinco salários mínimos.

André Luiz Veloso, 50, foi chamado à meia-noite para atender uma jovem de 14 anos que chegara em trabalho de parto. Como a gravidez era de pouco mais de seis meses, foram prescritos remédios para segurar as contrações e outros para apressar o amadurecimento dos pulmões do feto, mas a bolsa se rompeu algumas horas depois.

Os batimentos cardíacos do bebê começaram a ficar irregulares (bradicardia) e descobriu-se que o feto estava em posição transversa (atravessado no útero).

André indicou uma cesariana e, enquanto a garota era anestesiada, saiu para fazer outro parto, a fórceps -o Campo Limpo é referência em maternidade de risco.

De volta à sala onde estava a jovem gestante, André e uma residente começaram a cirurgia. Na hora de fazer a incisão no útero, que estava mais espesso do que estaria no final da gravidez, o bisturi foi fundo demais. O feto foi ferido com um corte de 2,1 cm nas costas.

É um erro que acontece, segundo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, em 1% das cesarianas.

Às 6h50 de domingo, João Vitor nasceu. Na escala que mede as condições de um recém-nascido, de 0 a 10, ele recebeu nota 1 no primeiro minuto de vida e, no quinto minuto, nota 0. Estava morto. A neonatologista tentou reanimá-lo por 15 minutos, mas ele não respondeu.

A médica avisou a mãe e, ao examinar o corpo do bebê, notou o corte nas costas, que tinha passado despercebido até aquele momento.

Coube a uma enfermeira avisar sobre a ferida. A família pediu para ver novamente o corpo, mas a encarregada do necrotério não permitiu e a polícia foi acionada.

O policial também quis ver o corpo e, mais uma vez, o pedido foi negado. André foi levado para depor.

Nos dias seguintes, o caso estava na TV, na web e nos jornais. Na Folha, foi capa de Cotidiano com chamada de Primeira Página, com título que indicava causa e consequência: ‘Bebê morre após ser ferido por bisturi durante o parto’.

Havia o ‘outro lado’, com o diretor do Hospital do Campo Limpo dizendo que o bebê tinha morrido, provavelmente, por ser prematuro.

Mas os ‘indícios’ eram suspeitos. Por que ‘esconderam’ o corpo? Soube-se depois que é norma do Serviço de Verificação de Óbitos para evitar adulterações. Por que havia uma rasura na guia de encaminhamento do corpo? Não era adulteração, mas um erro de preenchimento da neonatologista.

Com a mãe internada com problemas cardíacos, André não deu entrevistas. Parentes de Minas Gerais ligaram depois de ler a notícia no UOL. Seus filhos passaram dias tensos. A repercussão foi grande também entre colegas nos outros hospitais em que trabalha.

Marcelo Gusmão, o diretor do hospital que atendeu a imprensa, também é obstetra e sentiu a repercussão em seu consultório particular. Uma paciente o viu na TV com a legenda ‘bebê cortado durante cesárea’. Ele precisou se explicar.

O Hospital do Campo Limpo, sempre lotado, ficou com alguns leitos vazios. ‘Assusta, mas depois a população volta’, diz Marcelo.

Em 10 de setembro, o Instituto Médico Legal concluiu que a morte do bebê não foi causada pelo corte, que não afetou órgãos internos. João Vitor morreu por ter nascido muito antes do tempo.

André ainda pode ser indiciado sob suspeita de lesão corporal culposa. A família está processando o médico, o hospital e a prefeitura, com a ajuda de um advogado que conheceu no programa ‘A Tarde É Sua’, de Sonia Abrão (RedeTV!).

Em crítica interna, recomendei ao jornal que não publicasse o nome do médico até que as circunstâncias estivessem esclarecidas.

A Redação argumenta que não dá para usar dois pesos e duas medidas, já que a Folha dá o nome de suspeitos de corrupção, crimes e outros atos ilícitos.

É verdade, mas não dá para estabelecer uma regra geral sobre quando divulgar ou não o nome de alguém -só os menores de idade estão protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

No caso de André, tudo recomendava prudência. As circunstâncias não estavam claras. A polícia, impedida de ver o corpo, salientava os ‘indícios suspeitos’. Era um problema médico, difícil de entender para o leigo.

O escândalo ‘Médico mata bebê com bisturi na periferia’ não se confirmou. Mas André ganhou uma nódoa para sempre em seu currículo.’