Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um gigante dentro da telinha

Sai o folclore, entra o jornalismo. Nos dois últimos meses, a TV francesa se esmerou na tentativa de compreender o Brasil. Foram três grandes reportagens sobre o ‘gigante’ do hemisfério sul, sem que o assunto girasse em torno de favelas, samba ou futebol. No dia-a-dia, o Brasil só aparece na TV francesa quando acontece algo como um arrastão nas praias.

Três programas longos e muito bem realizados mostraram aos franceses que o Brasil, o país-continente 17 vezes maior do que a França, não é só o folclore dos clichês construídos em torno de um povo mestiço, alegre e cordial.

O primeiro programa foi exibido na série ‘Un oeil sur la planète’ e tinha como título Peut-on encore ignorer le Brésil? (Pode-se ainda ignorar o Brasil?), conduzido pelo jornalista Thierry Thuillier, do canal público France 2.

Foram momentos (quase duas horas) de jornalismo inteligente. A equipe de France 2 fez um tour pelo Brasil que cresce e tem pretensões a uma liderança continental e a um papel mais influente no mundo, inclusive com assento no Conselho de Segurança da ONU.

O ex-embaixador da França no Brasil, Alain Rouquié, hoje presidente da Maison de l’Amérique Latine, disse literalmente que ‘o futuro chegou’ para o gigante latino-americano. E que a França tem tudo a ganhar com esse novo país emergente, onde os franceses são um dos maiores investidores e no qual 500 grandes empresas francesas estão instaladas.

Esse programa foi o mais político dos três. Lembrou-se que nesse país mestiço vivem 180 milhões de pessoas numa das sociedades mais injustas do mundo.

Herança bendita

O que espanta os europeus é ao mesmo tempo o gigantismo e as contradições do país: quinto mais populoso do mundo, a segunda potência agrícola da terra, primeiro produtor mundial de cana-de-açúcar, primeiro exportador de carne bovina, produtor da polêmica soja transgênica. Entre as proezas desse gigante exportador, a de exportar carpaccio para os italianos! E entre as singularidades, o fato de ter um presidente saído da classe operária.

O fenômeno evangélico – que vem ‘encher um vazio que os homens políticos não preenchem’ – foi muito bem examinado com a participação de um pastor que prega numa grande prisão. Os jornalistas franceses viraram do avesso o funcionamento da Igreja Universal do Reino de Deus e suas congêneres para mostrar como a ausência do Estado deixa os mais fracos à mercê de todos os messias de meia-tigela.

Duas faces do mesmo problema: a Amazônia brasileira ameaçada pelo desmatamento (16% de sua área já estão desmatados) e pelas queimadas, e o exemplo do Acre, com a herança de Chico Mendes. Segundo a reportagem, o desenvolvimento sustentável do Acre, governado pelo PT, serve hoje de modelo para a preservação da floresta.

Outro olhar

O telespectador francês descobriu que muitos antigos companheiros de luta de Lula abandonaram o PT, decepcionados com seu governo. Até FHC teve direito à palavra para dizer, em tom professoral, que ‘todo mundo pensava que Lula era um revolucionário. E ele não é’.

Emir Sader e Chico Whitaker foram também entrevistados. Whitaker, um dos criadores do Fórum Social Mundial, explicou aos franceses que ‘Lula não assumiu o poder, ele assumiu apenas um pequeno pedaço do poder’. Por isso, segundo ele, não há motivo para se dizer decepcionado com Lula, ‘que está completamente impregnado pela vontade de realizar as mudanças prometidas’. Para Whitaker, é preciso que a sociedade venha em socorro do presidente para que ele realize seu programa.

De fato, os franceses descobriram no programa uma nova forma de olhar o Brasil.

A série ‘Des racines et des ailes’ dedicou também um especial ao Brasil, com direito a estúdio no palácio do Itamaraty, no Rio, mostrado em todo seu esplendor. No local foram realizadas entrevistas com personalidades brasileiras francófonas, como Pedro Corrêa do Lago, presidente da Biblioteca Nacional, e a escritora Rosiska Darcy de Oliveira.

O prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo, foi entrevistado na cidade-monumento, belo exemplo de autoridade brasileira ciosa em preservar e defender o patrimônio que tem em mãos contra o ataque dos especuladores. Um pouco da cultura dos índios caiapós na Amazônia e alguns personagens da cidade de Salvador foram apresentados como exemplos da diversidade cultural do Brasil.

Modelos franceses

O último a ser exibido, na semana passada, foi um número especial da revista eletrônica Double Je apresentada por Bernard Pivot. Nesse programa, Pivot costuma entrevistar pessoas que se expressam em francês (em geral escritores e artistas), mas têm outra língua materna.

Bernard Pivot, que se tornou um dos jornalistas franceses mais conhecidos por apresentar por mais de duas décadas o programa literário Apostrophes, e depois Bouillon de culture, foi a São Paulo entrevistar brasileiros francófonos e francófilos.

O resultado foram entrevistas inteligentes e bem-humoradas. Não é de admirar, pois Pivot tinha como entrevistados José Mindlin, Jô Soares, Raí, Bernardo Carvalho, Pedro Corrêa do Lago e Evaristo Eduardo de Miranda. Com exceção de Raí, que jogou futebol na França, na equipe do Paris Saint-Germain, os outros entrevistados eram praticamente desconhecidos dos franceses.

Mas, para um brasileiro, a grande surpresa foi Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em ecologia, uma das melhores entrevistas do programa. Formado em universidades francesas, Miranda é um comunicador nato. Falou da floresta e dos animais com tal conhecimento de causa e paixão que deixou Pivot (e os telespectadores) fascinado. Na Embrapa, entre outras coisas, ele faz o monitoramento por satélite da Amazônia.

O programa terminou com um debate de Pivot com alunos da Aliança Francesa de São Paulo sobre a importância de aprender a língua francesa no Brasil de hoje.

Aliás, o declínio da cultura francesa no Brasil foi de certa forma abordado no programa da série ‘Des racines et des ailes’, quando Romaric Buel, ex-adido cultural da França, relembrou a influência da arte, da arquitetura e da literatura francesas no Rio de Janeiro do início do século 20.

Na arquitetura, o Teatro Municipal do Rio e o Copacabana Palace, inspirados em modelos franceses – a Ópera de Paris e um hotel de Cannes – foram mostrados como algumas das provas mais evidentes dessa influência.