Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma democracia somente no papel

A Turquia, com quase 800 mil km² e 60 milhões de habitantes, tem uma história milenar. Sua principal cidade, Istambul, foi fundada pelos gregos em 662 a.C. com o nome de Bizâncio; em 382 d.C. o imperador romano Constantino, O Grande, fez dela uma nova Roma e passou a chamá-la de Constantinopla.

Os turcos têm a origem étnica um tanto obscura: poderiam ter vindo da China e ficado acantonados na Pérsia. O filósofo francês Ernest Renan (1823-1892) os coloca como uma raça, nada tendo com os gregos, latinos, eslavos, árabes e curdos. Convertidos ao islamismo em 1288, partiram para as irresistíveis conquistas, inicialmente as atuais Sérvia, Bulgária, Hungria, mais tarde o nordeste da África, até que em 1453 tomaram Constantinopla, mudando seu nome para Istambul, o que persiste até hoje. Essa tomada mudou o mundo ocidental: alguns historiadores a colocam como o final da Idade Média e início da Moderna.

Constantinopla constituía a via de ligação entre a Europa e o Oriente, de onde vinham os produtos vitais necessários à conservação de alimentos. Com o fechamento desse caminho, os europeus, especialmente Portugal e Espanha, partiram para as grandes navegações buscando chegar ao Oriente por via marítima. Assim Portugal estabeleceu colônias na África atlântica e índica, na Índia, na China e na Oceania; e feitorias comerciais nas Filipinas e no Japão. Por sua vez, a Espanha sob os Felipes (1156-1665) estabeleceu o então maior império da história.

Há um fato curioso da influência portuguesa do Extremo Oriente. Os lusos fundaram a cidade de Nagasaki no século 16, deixando traços de sua cultura até no idioma. A conhecidíssima palavra japonesa arigato nada mais é que uma corruptela do ‘obrigado’ português, com o mesmo significado.

Acusação retirada

Durante a Primeira Guerra Mundial, quando ainda eram um império, os turcos promoveram um genocídio matando algo como 1,5 milhão de armênios e curdos. Os primeiros emigraram para diversos países do mundo, inclusive o Brasil, em sua maioria na cidade de São Paulo, mais precisamente no bairro da Ponte Pequena, cuja estação do metrô passou a chamar-se Armênia.

O império caiu em 1923, tornando-se a Turquia uma república com sua última Constituição datada do ano de 1982, com modificações em 1995. Mas a democracia ficou somente no papel.

Vamos a fatos bem recentes: no ano passado, o maior escritor turco – Orhan Pamuk – deu declarações a um periódico suíço sobre o massacre dos armênios e dos curdos. Foi processado pelo Estado com base na lei 301, que defende o ‘bom nome da Turquia’ e ao mesmo tempo é usada para intimidar escritores, editores e jornalistas.

Apesar do grande sucesso que tem em seu país, parte significativa da opinião pública foi contra Pamuk, especialmente um grupo de advogados ultranacionalistas, ligados aos Lobos Cinza, de cujas fileiras saiu Mehmet Ali Agca, ele mesmo, o autor do atentado contra o papa João Paulo II. Seguindo o mesmo rumo, o subprefeito de uma cidade obrigou livrarias e bibliotecas a destruir seus romances, enquanto a televisão local promovia perseguição a uma estudante que admitira ter em casa uma obra do escritor. Houve uma grande pressão de intelectuais da Turquia e do resto do mundo, constrangendo o tribunal a retirar as acusações sob a ‘alegação’ de que o fato não constituía crime à luz do novo Código Penal.

A realidade mostra que esse negócio de ‘novo Código Penal’ é somente conversa para criança dormir com fome.

Lavagem cerebral

Elif Shafak, de 34 anos, é uma reconhecida acadêmica e uma brilhante escritora turca. Casada, passa grande parte do tempo distante do marido. Ela é professora de história do Oriente Médio na Universidade de Tucson, no Arizona; ele trabalha em Istambul como redator-chefe do diário de economia Referens.

Elif está grávida de seis meses, é uma mulher corajosa e otimista, mas está conturbada pois poderá ser condenada a três anos de cárcere por ter ‘ofendido o bom nome da Turquia’, ameaça judiciária que atualmente paira sobre dezenas de jornalistas e intelectuais.

O que fez de grave Elif? Escreveu o romance O bastardo de Istambul, que desde a última primavera está na lista dos mais vendidos. É a história atormentada de famílias paralelas. De uma parte os netos dos que sobreviveram ao genocídio dos armênios, da outra a lavagem cerebral para que seja negada a existência do massacre, pois é considerado crime até a simples dúvida. Numa situação muito emotiva, o livro mostra o desejo de conhecer a verdade seja qual for.

Nada mudou

Pamuk arriscou a prisão por uma corajosa declaração política, enquanto O bastardo de Istambul é um romance, uma novela, pura ficção, não tem nada de autobiográfico. ‘Eu sou cem por cento turca e me orgulho de sê-lo. Ao repressão da liberdade artística é uma queda inquietante na qualidade da justiça’, diz Elif.

O problema se desenha grave, a intransigência e a repressão são exercidas por uma minoria de extremistas. No ano passado limitaram-se a jogar ovos e tomates contra quem se reunia para interrogar-se sobre o genocídio dos armênios, mas poderiam cometer agressões bem piores. A sociedade civil turca está bastante avançada e mal suporta essa nociva invasão do Estado em sua privacidade; entretanto, o pior de tudo é o silêncio do governo islâmico moderado de Recep Tayyip Erdogan. O primeiro-ministro nada diz nem faz. Essa ambigüidade, que demonstra a existência de um ‘terrorismo islâmico’, fez com que Istambul há pouco tempo pagasse um pesado preço de sangue.

Elif conclui:

‘É mesmo esse silêncio do governo que me preocupa. Não reflete a vontade de um país que suporta ataques à liberdade, mesmo porque tudo está mudando. Aliás, já mudou’.

Em 1997, a Turquia foi excluída do processo de adesão à União Européia. O motivo foi a insuficiência das garantias dos direitos humanos expressa pela repressão aos curdos, o uso de tortura pela polícia e, sobretudo, a censura nos meios de informação. Passados quase dez anos, os fatos acima relatados mostram que nada mudou e a União Européia, para prejuízo do país, continuará a manter seu veto.

[Texto de apoio: ‘Io, perseguitata per uma fiction’, de Antonio Ferrari, Corriere della Sera, 20/7/06]

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Jornalista