Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Vídeos ao vivo atropelam a imprensa e criam dilemas éticos

Embora os recursos das transmissões ao vivo estejam entre nós há mais de cinco anos, a onipresença da transmissão ao vivo decolou de verdade com o advento do Facebook Live [1].  Na recente convenção nacional do Partido Republicano em Cleveland, estado de Ohio, a maior emissora de TV, por alguns padrões, foi o Facebook. Uma instalação do Facebook Live onde empresas como o New York Times e a Yahoo – e qualquer outra das 19 parceiras de mídia do Facebook – apresentaram seus “shows”. Ainda mais importante: os próprios delegados gravaram horas de vídeos, muitos deles maçantes e amadorísticos, mas alguns sinceros e inflamatórios.

Temos caminhado irremediavelmente, há quase vinte anos, no sentido de tornar possível emitir qualquer coisa a partir de um celular barato – ponto a que agora chegamos. Diamond Reynolds, com a serenidade de uma repórter experiente, filma seu parceiro Philando Castile, que sangra após ter sido baleado em seu carro por um policial quase histérico. Ela faz um comentário calmo e autoconsciente, com origem na autopreservação[2]. Quando Ramsey Orta filmou oficiais de polícia estrangulando Eric Garner em 2014, ainda não havia Facebook Live, mas Orta disse à imprensa que quando os policiais se aproximaram começou a filmá-los, como coisa de rotina.

Quando cobri a guerra do Iraque para um website de notícias internacionais, vi vídeos de violência explícita na agência de notícias, mas nos últimos meses vi no Facebook mais gente morta ou morrendo. Nós, a audiência – e quase todos clicamos –, somos conduzidos entre corpos mutilados ou despedaçados por uma avenida de Nice antes da chegada das ambulâncias.

A urgência da mídia e a expectativa de que possamos estar em qualquer lugar vem mudando a maneira pela qual sentimos a crise e mesmo nossa própria mortalidade.

Um novo modelo para publicações

É evidente que a TV ao vivo irá agregar e se beneficiar da abundância de vídeos disponíveis gratuitos, assim como nós seremos beneficiados, sentindo-nos mais próximos dos acontecimentos do que jamais nos sentimos. Então, se podemos imaginar a era da inteligência artificial e as terríveis consequências de um tipo de vigilância previsto em RoboCop, por que é que a indústria das emissoras não pode imaginar que um dia todo mundo teria essa capacidade? A verdade é que ela o imaginou, mas nunca imaginou que quisessem desenvolver essa capacidade, pois ela enfraquece o próprio conceito daquilo que é uma experiência “editada”.

Numa pesquisa de opinião informal que fiz há dias, perguntei a um grupo selecionado de jornalistas e executivos: “Se você pudesse desenvolver algo que permitisse a qualquer pessoa transmitir um vídeo ao vivo de sua plataforma ou website, você o faria?” Após refletir algum tempo a resposta foi quase sempre “não”. Para muitos publishers, o risco de publicar comentários inadequados postados por visitantes de um website era grande e a ideia do mundo se auto-divulgar através de sua marca ainda é inaceitável pela imprensa. E as empresas de plataformas estão começando a compreender por quê.

Separar as responsabilidades decorrentes do surgimento de um novo modelo para publicações deixou todo mundo traumatizado. O Facebook tem uma equipe de política grande – cerca de 20 pessoas – voltada para os difíceis desafios de manter uma posição de neutralidade num mundo profundamente complexo. Assim como as organizações tradicionais nem pensam em ceder o controle aos usuários, também o Facebook se pergunta o que significa ser um publisher, ainda que sua posição preferida seja a de não ser um deles.

Parábolas éticas

Eventos jornalísticos recentes oferecem, volta e meia, exemplos práticos de situações anteriormente inimagináveis – mortes violentas filmadas, com as respectivas consequências políticas off-line. As posteriores reações de massa – testando os limites do discurso aceitável, ao mesmo tempo em que o racismo, o discurso do ódio e a intimidação se tornaram corriqueiros da mesma forma que os corpos despedaçados passaram a ser rotina como parte da transmissão ao vivo por dispositivos móveis. Vozes concorrentes estimulam a cautela, e não a ação, a revelação, e não a privacidade – todas em termos fortes. No texto da editora do Guardian Katharine Viner publicado na semana passada, sobre a natureza escorregadia da informação confiável, ela expôs publicamente as forças que as organizações e plataformas editoriais criam e toleram com a nova era da conectividade.

Enquanto as organizações jornalísticas são puxadas para a transmissão ao vivo pela maré da atenção, o Facebook também é carregado pela mesma maré para as águas profundas da responsabilidade por publicar. A ironia da atual posição é que as organizações jornalísticas e, até certo ponto, o Facebook, têm mantido seus diferentes desmentidos sobre o que está acontecendo. O Facebook sabia que a tecnologia que utilizou para criar o vídeo Chewbacca Mom [na série Star Wars (Guerra nas Estrelas), Chewbacca – apelido: Chewie – é o copiloto da nave Millennium Falcon, liderada por Han Solo, e um alienígena da raça Wookiee, oriundo do planeta Kashyyyk] também iria fortalecer importantes movimentos políticos, como o Black Lives Matter [As vidas dos negros importam]. Sempre que uma atrocidade violenta é cometida e enviada ao Facebook por mais que suas ações sejam automáticas, são carregadas de significado. E a mídia tradicional tem nossos próprios dilemas particulares, na medida em que criamos a audiência para um teatro de terror ou de política.

A ficção científica está cheia de parábolas éticas sobre o que acontece quando os humanos inventam coisas que não conseguem controlar. Do Frankenstein, de Mary Shelley, à Skynet de James Cameron, nossas expressões culturais de angústia existencial diante da ciência são inequivocamente consistentes. Apesar de nos prepararmos para a repetição até dos enredos mais extremos, aparentemente ainda ficamos chocados com os lugares previsíveis para onde o progresso nos leva.

[1]. Facebook Live é um aplicativo que permite a transmissão de vídeos ao vivo na página do usuário.

[2] Incidente registrado no dia 6 de julho, na cidade se St Anthony, no estado norte-americano de Minnesota , quando Diamond Reynolds filmou a morte de seu marido Philando Castile, em consequência de um tiro disparado por um policial.

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Emily Bell é jornalista, professora na Faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia, Nova York, e diretora do Centro Tow para Jornalismo Digital.