Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Notas sobre a sociedade da soberania e do controle

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Desde as grandes civilizações, temos vivido a disputa de três formas de epistemologias ou saberes: a estético-expressiva, a cognitivo-instrumental e a moral-prática.

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O conhecimento estético-expressivo está relacionado à linguagem, entendida como sistema semiótico, razão pela qual envolve um mundo de formas semióticas de expressão: linguagem verbal, escrita, icônica, fílmica, musical, televisiva, poética, ficcional e um sem fim de possibilidades.

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O conhecimento cognitivo-instrumental, por sua vez, está relacionado com o mundo técnico-científico e, portanto, com a transformação dos recursos da natureza em recursos de segunda natureza, porque feitos pelo homem, como tudo que se encontra em nosso redor: mesas, livros, computadores, energias, ladrilhos, casas, prédios, carros, máquinas, asfaltos; o humano mundo.

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O conhecimento moral-prático é ao mesmo tempo estético-expressivo e cognitivo-instrumental, sendo o atributo do pobre, porque este é o que produz saber marcado por uma moral prática, isto é, moral prática porque vinculada à luta pela sobrevivência imediata, num contexto em que a produção de saber está diretamente relacionada com a sobrevivência cotidiana, razão por que o conhecimento moral-prático é antes de tudo o saber sobre o cotidiano, no cotidiano, produzido cotidianamente pelos homens e mulheres cotidianos, comuns.

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Durante boa parte das grandes civilizações pré-modernas, a escrita tornou-se a forma de conhecimento estético-expressivo de maior prestígio, porque estava sob o controle restrito da aristocracia e do clero, castas que utilizavam o conhecimento estético-expressivo ligado à escrita para, via escrita alfabética, escrevem-se a si mesmas, epicamente, liricamente, dramaticamente, como centros soberanos do poder terrestre.

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Poderíamos dizer que a escrita alfabética, como epicentro do conhecimento estético-expressivo de maior prestígio, era a Bíblia por ela mesma, sopro gráfico-sonoro de Deus, porque sua posse e seu uso estavam vinculados ao projeto de justificar o platônico mundo das ideias divinas da aristocracia e do clero, duas castas que a si mesmas se escreviam como a encarnação de Deus, na Terra, não sendo circunstancial, sob esse ponto de vista, que caligrafia signifique escrita bela, cabendo ao calígrafo, com a própria mão, desenhar caprichosamente, letra a letra, a escrita bela daqueles que se consideravam os mais belos, superiores, como se fosse o próprio rosto divino do aristocrata e do clero.

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O advento da modernidade, a partir do século 16, transformou o conhecimento cognitivo-instrumental no seu principal motor, pela simples razão de que é com ele e através dele que a modernidade produz o mundo moderno, através da invenção de novas tecnologias bélicas, agrárias, urbanas, de transporte, de comunicação, como, no caso desta última, da invenção da tipografia, por Gutenberg, o qual, por volta de 1439, desempregou os calígrafos medievais através da criação de uma máquina que agitava tipos móveis nos quais as letras estavam inscritas e eram infinitamente reproduzidas por tintas num suporte de papel, razão por que, doravante, o rosto divino do aristocrata e do clero deixam de ser belos, caligráficos, em face da homogeneidade das letras no tipo móvel, sempre iguais a elas mesmas.

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Diferentemente das civilizações pré-modernas, a moderna, tal como ocorreu com a invenção da impressão tipográfica, aumenta a capacidade de reproduzir não apelas letras, mas também alimentos, mas também guerras, mas também transportes, mas também fábricas, mas também cidades, mas também mercadorias, ocupando o próprio lugar de Deus, pois que sua força produtiva, através do auxílio do conhecimento cognitivo-instrumental, era e é também força para produzir uma segunda natureza, não mais divina, mas antropocêntrica, razão pela qual a modernidade é laica e destrona de vez o mundo religioso da aristocracia e do clero.

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O domínio do conhecimento cognitivo-instrumental passou a ser, no decorrer da modernidade, o poder de produzir segundas naturezas ou o mundo segundo a natureza do poder do capital colonizador, razão pela qual, sob o domínio do sistema capitalista, o conhecimento cognitivo-instrumental, na modernidade, colonizou tanto o conhecimento estético-expressivo como o conhecimento moral-prático.

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Uma forma possível de sair do imbróglio imposto pela modernidade capitalista, que tomou para si o conhecimento cognitivo-instrumental, através de produção de tecnologias de dominação, estava (está) implicada com a união do conhecimento estético expressivo, vinculado à escrita alfabética, com o conhecimento moral-prático, a fim de acumularem força para tomarem para si o conhecimento cognitivo-instrumental da burguesia dos países centrais do Ocidente – o que chamamos usualmente de transferência de tecnologia.

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O que a bem pensante crítica literária brasileira jamais percebeu, sob o ponto de vista da relação entre os saberes, foi que o principal desafio do Manifesto Antropófago de 1928, do poeta modernista, Oswald de Andrade, era inseparável do objetivo de propor que o conhecimento moral-prático brasileiro, através de seu próprio povo bárbaro, devorasse o conhecimento cognitivo-instrumental produzido pelos colonizadores europeus, a fim de, tomando-o para si, construir uma nova civilização tropical, tal que, o sul do planeta, como o lugar por excelência do conhecimento moral-prático, devorasse antropofagicamente o norte do conhecimento cognitivo-instrumental e estético-expressivo, com suas tecnologias de dominação técnicas e gráficas.

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Obviamente, a modernidade capitalista tem sido esta em que o conhecimento cognitivo-instrumental, ocupando o epicentro de tudo, submete tanto o conhecimento estético-expressivo como o moral-prático.

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De qualquer forma, com o decaimento do clero e da aristocracia, a própria ideia de Deus também decai. A modernidade é, pois, laica, no seu sentido mais forte; é o único período da história humana que tem consciência de sua historicidade, sem Deus, num contexto em que o conhecimento cognitivo-instrumental, o estético-expressivo e o moral-prático lutam para conquistar espaços.

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Essa abertura laica da modernidade-mundo agitou o planeta, portanto, no horizonte das três epistemologias: a cognitivo-instrumental, a estético-expressiva e a moral-prática. A história da modernidade é, pois, inseparável da relação de força ou de cooperação entre essas três epistemologias. Sob esse ponto de vista, um desafio presente, portanto, era este: qual caminho que o conhecimento estético-expressivo, sob o nome da escrita alfabética, tomará, no momento em que perde espaço para o conhecimento cognitivo-instrumental? Seguirá subserviente ao conhecimento cognitivo-instrumental, permitindo-se se colonizar por ele? Articulará um intercâmbio solidário e revolucionário com o conhecimento moral-prático? Ou, por outro lado, produzirá a si mesmo de forma isolada, através de uma experimentação que é na verdade autoexperimentação?

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Sob o ponto de vista do dominó do domínio, o conhecimento cognitivo-instrumental submeteu os demais, o estético-expressivo e o moral-prático, pelo menos até a primeira metade do século passado, através da produção de instituições disciplinares, que são as instituições de confinamento, como a família, a escola, as segmentações dos saberes, sob a forma de disciplinas ou campos epistemológicos isolados; a Igreja, o exército e mesmo, no limite, o indivíduo e sua identidade.

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O papel dessas instituições disciplinares era o de controlar e moldar os corpos (Foucault chamou isso de biopoder) para torná-los aptos a produzir a modernidade capitalista. Mas que reprimir os corpos, a questão de base, sob o ponto de vista do biopoder moderno e cognitivo-instrumental, era: como disciplinar e submeter o conhecimento estético-expressivo e o moral-prático? Como os corpos desses saberes devem agir e viver a fim de que a mais-valia mundial do capital se faça onipresente?

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É por isso que essa primeira modernidade ou primeiro modernismo produziram resistência e alternativas contradisciplinares e tinham como principal desafio, portanto, liberar os corpos, o que significa dizer, também, liberar o conhecimento estético-expressivo e o moral-prático através da liberação do corpo do negro, da mulher, das sexualidades não heterossexuais, dos colonizados, dos operários e assim por diante – esse foi o cenário da luta libertária na primeira modernidade, sob domínio produtivo e cognitivo-instrumental da segunda revolução industrial e, por consequência, da Inglaterra.

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É aqui ou aí que surgem os Estados Unidos. Os americanos foram gradativamente deslocando o centro gravitacional do imperialismo para eles mesmos porque produziram um país usando estrategicamente as forças “liberadas” do poder disciplinar – reside aí a ideia de liberdade, de democracia, que os estados unidos até hoje vendem para o mundo, na suposição de que são o lugar em que o conhecimento estético-expressivo passa para as mãos do conhecimento moral-prático, sob a proteção das mais sofisticadas tecnologias produzidas pelo conhecimento cognitivo-instrumental moderno.

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Terem, os Estados Unidos, no entanto, produzido um país a partir das forças de liberação da primeira modernidade não significa liberdade e democracia de fato. Significa simplesmente que essas forças foram agenciadas tendo em vista o novo cenário do mundo. Aqui começamos a entrar no segundo período da modernidade ou simplesmente na pós-modernidade. Os Estados Unidos são o país da pós-modernidade. Emergiram como potência porque agenciaram as forças libertárias da primeira modernidade, as do conhecimento estético-expressivo e moral-prático.

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A esse agenciamento das forças libertárias Deleuze e Guattari deram o nome de axiomática. Axiomática, nesse sentido, significa um sistema de aparência ou algo que é sem ser. Explico melhor. Nova York é uma axiomática mundial das minorias do planeta, sob o ponto de vista das lutas libertárias da primeira modernidade. Assim, se na primeira modernidade, a liberação da disciplina estava relacionada com a liberdade não apenas econômica, mas também no campo dos direitos civis – direito de liberdade de expressão intelectual, corporal, racial, de gênero –, então Nova York se tornou uma axiomática dessas liberdades antes de tudo ligadas ao campo dos direitos civis.

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Axiomática é algo sem ser porque simplesmente é um sistema de aparência, um teatro, uma publicidade da coisa, mas que vive de massacrar a coisa. É como se produzíssemos uma ilha da fantasia para tal ou tal projeto de liberação dos corpos. Os Estados Unidos e a pós-modernidade vivem de axiomática, isto é, de teatro da liberação humana, subjugando o conhecimento estético-expressivo e moral-prático pelo conhecimento cognitivo-instrumental.

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Obama, por exemplo, é uma axiomática ambulante. Ele é axiomática ou o teatro de um negro no poder e sua existência diz respeito a um sistema de aparência em que o que está em jogo é produzir a aparência de que o negro foi liberado – no “democrático” Estados Unidos da América, sem considerar, obviamente o fato de que a gestão dele é péssima para os negros americanos e sobretudo para africanos – mais pobreza, abandono e guerras para povos negros do mundo.

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Eis aí o papel estratégico da axiomática: a produção de um sistema de aparência tendo em vista as lutas libertárias da primeira modernidade de tal sorte a produzir o efeito publicitário de que elas existem e se realizam em determinados lugares – ditos democráticos – e não em outros – considerados autoritários, despóticos. Em nome desse jogo axiomático, as guerras hoje são travadas precisamente contra aqueles que vivem fora da proteção das ilhas das fantasias axiomáticas. Contra, portanto, o conhecimento moral-prático dos povos do mundo.

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É exatamente na encruzilhada de um mundo que apenas é livre e democrático axiomaticamente, como publicidade, propaganda de pasta de dente, que a pós-modernidade americana produz um retorno vertical para o mundo pré-moderno, de tal sorte que é tanto mais pós-moderna quanto mais pré-moderna se faz de fato, embora viva de vender a imagem de que é o período em que os corpos oprimidos estão finalmente liberados para se exprimirem, integralmente.

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Se o período pré-moderno é aquele em que o conhecimento estético-expressivo, sob o ponto de vista da escrita alfabética, expressava o rosto caligráfico da aristocracia e do clero, como divinas castas de sangue azul, massacrando impiedosamente o conhecimento moral-prático, o período pós-moderno, axiomaticamente norte-americano, realiza o mesmo cenário através do domínio oligárquico do conhecimento estético-expressivo do mundo contemporâneo, que não é mais a escrita alfabética, mas as tecnologias de comunicação, que produzem filmes, novelas, notícias, narrativas diversas, através de uma semiótica mista, que é ao mesmo tempo gráfica, icônica, indicial, sob a hegemonia, é claro, dos ícones.

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Se, novamente, no período pré-moderno, ligado a um tipo de poder a que chamamos de soberano, o conhecimento estético-expressivo, vinculado à escrita alfabética, era usado para expressar a beleza caligráfica do rosto da aristocracia e do clero, isto é, do soberano, submetendo, sem cessar, à mais extrema tortura o povo do conhecimento moral-prático, então considerado inferior, servo, homo sacer; o período pós-moderno norte-americano, por sua vez, utiliza o conhecimento estético-expressivo, vinculado aos meios de comunicação de massa, num contexto em que sempre parecem sorrindo na foto, como os bons, os democráticos, os valentes, os livres, massacrando a humanidade toda do conhecimento moral-prático, considerada bárbara, terrorista, ignorante, num cenário mundial em que os meios de comunicação rebaixam o conhecimento estético-expressivo dos povos, caricaturizando-o e inferiorizando-o.

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Se a primeira modernidade produziu um tipo de poder a que chamamos de disciplinar e cujo objetivo era o de domesticar os corpos através de instituições de confinamento, como a família, o casamento, a escola, a pós-modernidade produz um tipo de poder a que chamamos de poder de e da sociedade do controle, que é este através do qual a liberdade é transformada em axiomática de liberdade, sempre para poucos, os oligarcas, num contexto em que liberdade e justiça são sempre encaradas como liberdade e justiça civis, individuais, nunca, portanto, coletiva e econômica.

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Ser livre, hoje, nesse sentido, é ser uma axiomática ambulante, como Obama. Trata-se, portanto, de um teatro de liberdade vinculado ao campo restrito dos direitos civis subjetivos e isolados, como a liberdade gay, étnica, periférica, feminina, desde que não coloque em cena demandas econômicas, situação em que deixa de ser liberdade axiomática, estilizada, narcísica e teatral e passa a ser liberdade comprometida com o conhecimento moral-prático – o perfil humano mais aviltado em toda história da humanidade –, razão pela qual a liberdade axiomática das minorias pós-modernas normalmente fazem de tudo para não serem vinculadas com o conhecimento moral-prático, isto é, com o povo comum.

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É por isso que o horizonte revolucionário do mundo atual deve incorporar o campo dos direitos civis, mas de forma alguma deve ficar restrito a esse campo, porque o principal horizonte legal, como nunca, continua a ser o de sempre: o dos direitos econômicos. As axiomáticas representam uma cortina de fumaça que disfarçam a falta de direitos e garantias econômicas para maiorias, num contexto em que existe axiomática para cada gosto.

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A cultura de massa é o lugar por excelência da axiomática no horizonte da pós-modernidade, pois tem como objetivo produzir o controle do conhecimento moral-prático. O programa Esquenta, da Regina Casé, é um micro teatro axiomático do conhecimento moral-prático ligado ao campo da axiomática da música popular brasileira.

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A cultura de massa é, portanto, a axiomática do conhecimento moral-prático na pós-modernidade; a única forma em que o conhecimento moral-prático pode se expressar “livremente”, sem ser incomodado, aviltado, desprezado, razão por que os programas populares, incluindo os de futebol, são axiomáticas estético-expressivas ou funis únicos em que o povo pode se fazer presente nos meios de comunicação; do contrário, é recusado, negado, humilhado, barbarizado.

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Quando o povo ou o conhecimento moral-prático insiste em produzir a expressão livre de seus corpos e saberes fora da axiomática da cultura de massa, imediatamente esta o acusa ou de terrorista, ou de autoritário, ou de ignorante, ou de ingênuo, ou de manipulado.

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Mais do que qualquer época história, a atual, em função mesmo dos limites físicos, energéticos e espaciais do planeta Terra, no contexto de uma pós-modernidade tomada pela axiomática do mercado do luxo, do narcisismo individual e do desperdício… mais, enfim, do que qualquer época histórica anterior, a atual é a que vincula inevitavelmente o futuro do planeta Terra ao presente não massificado do conhecimento moral-prático, pela singela razão de que é a única forma de saber que, quando não axiomatizada, é capaz de priorizar o que interessa de fato, a partir de uma moral prática, cotidiana, a saber: a água para beber, a comida para comer, a casa para morar, a terra para plantar, a vida para viver, sob a proteção prática do comum, para os comuns.

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Hugo Chávez Frias, presidente da Venezuela, é o rosto não axiomático do conhecimento moral-prático por excelência do mundo contemporâneo, porque sua experiência de poder cada vez mais está vinculado com o conhecimento moral-prático não massificado do povo venezuelano. É por isso que Hugo Chávez é o homem mais caluniado no mundo todo, pela cultura de massa pós-moderna.

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É nesse contexto, portanto, que devemos entender a acusação de que a Venezuela é um país autoritário, sem liberdade de expressão, pois qualquer lugar do planeta em que o povo ou o conhecimento moral-prático insistir em sua livre expressão, fora das amarras e controles da cultura de massa, será fatalmente taxado por esta de autoritário e manipulado, porque a sociedade do controle axiomático pós-moderna só entende como liberdade de expressão a liberdade sem livre e coletiva expressão, que é a liberdade domesticada, individual, axiomática, confinada narcisicamente na ilha da fantasia dos teatrais direitos civis de poucos e para poucos.

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Só existe liberdade de expressão de fato, no mundo contemporâneo, fora da prisão da axiomática dos direitos civis para poucos, isto é, quando recusamos os direitos fuzis para as maiorias.

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Só existe liberdade de expressão revolucionária na contramão da cultura de massa.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]