Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

De Quixotes & Sanchos

I – Efemérides e seus modos de usar

‘Efêmero sugere o transitório (do grego ephemeris, idos), mas efemérides, paradoxalmente, evocam a continuidade, registram a cronologia, armam a memória. As vanguardas desprezam-nas, os iconoclastas torcem o nariz e os historiadores preocupam-se mais com os processos do que com tempos e pessoas. Bobagem: as pessoas são os agentes dos processos. Efemérides, assim como obituários e perfis biográficos, são ferramentas jornalísticas. Transformam a imprensa numa sala de aula, periódica, constante. Enfim, útil’. (Alberto Dines, ‘Efemérides – Modo de usar‘, Armazém Literário, Observatório da Imprensa, edição 313, de 25 de janeiro de 2005).

Efemérides têm seu ‘modo de usar’ – bem escreve Alberto Dines, lembrando que 2005 marca o aniversário de 400 anos da publicação da primeira parte do Quixote de Cervantes (a segunda parte, que completa a obra, seria publicada apenas em 1615, em Madri). O jornalista é contador de efemérides por excelência, e nisso se distingue do historiador, mas ambos estão de alguma forma conectados ao tempo, e à contagem de tempos. A diferença é que efemérides associam-se à memória, como bem registra Dines, e não à história. A história generaliza, classifica, congela os fatos no passado. A memória está sempre aí, viva e pulsante, porque não se fixa nos eventos ou processos, mas em lugares e pessoas/personagens. A memória desconhece o próprio fluir do tempo, justapõe imagens desconexas, passado, presente e futuro, é intrigante e fascinante como o inconsciente, como anotou Pierre Nora quando falou sobre a memória ao editar a obra coletiva Lieux de mémoire. A história é apolínea, a memória dionisíaca. A história é masculina.

Em seus colóquios sobre identidade e memória, observou João Paulo II: ‘Bem vistas as coisas, a memória pertence mais ao mistério da mulher que do homem: é assim na história das famílias, na história das estirpes e das nações’ (Memória e identidade – colóquios na transição do milênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. P. 167). O paradoxo da memória é que ela, assim como as efemérides que através da memória ganham significados, pode ser sempre celebrada no presente. Interessante da memória, associada às efemérides, é que ela torna a passagem do tempo um mote para a reflexão. Colho da pena de Dines convite para o aniversário do Quixote. A reserva, r.s.v.p. ou condição de admissão para a festa em honra a Cervantes talvez seja apenas uma: andar um pouco ‘desocupado’. O prólogo de Cervantes ao ‘desocupado leitor’ é já o supra-sumo da ironia, corretiva da realidade, como se ele já soubesse que conquistar o leitor não exige realmente encontrá-lo desocupado, mas desocupá-lo de outras leituras, menos interessantes embora aparentemente mais prazerosas. Desocupemo-nos e celebremos Cervantes. Para início de conversa, no mesmo mote das efemérides, puxo pela memória e busco vestígios escritos de um leitor ‘clássico’ e grande admirador de Cervantes. É sempre interessante observar como um autor de gênio leu e compreendeu outro autor de gênio, de modo que servimos de entrada nesta celebração simbólica um diálogo fictício de Miguel de Cervantes com o jovem filósofo Georg Lukács.

II – Georg Lukács, leitor de Cervantes, e a ‘topografia transcendental’ do mundo grego

No inverno de 1914/1915, quando se cumpriam 300 anos de publicação da segunda parte do Quixote, um jovem filósofo húngaro redigia a versão final de ensaio sobre as formas da grande épica, publicado em forma de livro em 1920, em Berlim, e desde então um clássico, mesmo que o autor consentisse em sua republicação apenas em 1962, com prefácio em tom de quase desculpa por ter ‘cometido’ aquele escrito, em que justifica o seu valor como um escrito de interesse historiográfico dos ‘erros’ de sua juventude, que seria embalada pelo equívoco, segundo o Lukács marxista, de uma ‘ética de esquerda associada a uma epistemologia de direita’. O primeiro espanto é perceber, em 2005, que datado e de valor meramente historiográfico é esse prefácio, e não o ensaio, que ressuscita em grande estilo como peça filosófica e forma poética de expressão.

Esta obra notável de juventude do autor de A alma e as formas é a Teoria do Romance – ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica, e parte exatamente do Quixote como paradigma e precursor de todo romance moderno. A leitura de Cervantes, em contraposição aos poemas de Homero, sinaliza de modo metafórico a mudança da consciência histórica moderna em relação à grega, o que Lukács chamará de ‘topografia transcendental’. Não cuida apenas de prosseguir na querela dos modernos contra os antigos, cuida de um problema ou empreitada tipicamente germânicos: é possível construir uma cultura na modernidade? A consciência da inexistência de uma cultura, diante da grandeza dos modelos clássicos, é a consciência da alteridade, de si mesmo como ‘bárbaro’. Olhando para a Ilíada e a Odisséia, visualiza Lukács o mundo dos gregos como um mundo feito segundo a perfeição do círculo, mas por isso mesmo fechado, homogêneo, dentro do qual os modernos não conseguiriam respirar. Era um mundo alegre, cheio de deuses: a ‘teodicéia perfeita’ da concepção de Nietzsche, já que ali os deuses provavam a justiça de sua criação descendo à terra e vivendo entre os humanos (Nietzsche, Nascimento da tragédia).

Extraordinária é a criação de uma cultura a partir da consciência da própria barbárie, e do diálogo com outra cultura da qual não se pode ter a mínima experiência sensível, salvo a admiração de suas ruínas, dos vestígios, das grandes obras de arte e filosofia. É dessa consciência de não possuir uma cultura, de ser bárbaro, que nasce a cultura alemã (pelo menos em sua fase de apogeu, que é o chamado classicismo alemão) com Winckelmann, saudado por Goethe como ‘novo Colombo’ que descobriu um mundo novo que parecia perdido para sempre: o passado (Goethe, ‘Winckelmann and his age, 1805’, em Collected Works, edição de John Gearey, Vol. 3, Essays on Art and Literature. Princeton: Princeton University Press, p. 108). É nossa relativa incapacidade de imaginar como viviam ou sentiam os habitantes desse mundo alegre, cheio de deuses, que conforma o que Lukács chama de ‘topografia transcendental’ do mundo grego. Os poemas de Homero não começam e não têm fim, de modo que não possuem uma arquitetura de ‘tempo’: sua imaginação é espacial. No mundo de Homero, vida e essência são conceitos idênticos, os gregos tinham respostas antes de formularem perguntas, tinham um mundo homogêneo, de valores compartilhados por todos, em que a aventura de alguém se resumia a um aprendizado, e o erro era uma questão de um pouco de mais ou um pouco de menos, de medida.

A partir de Dom Quixote, paradigma da modernidade, em realidade o primeiro grande romance moderno, Lukács empreende uma tipologia dos romances como termômetros da ‘inessencialidade’ da vida. Já não há o que copiar, porque todos os modelos são inessenciais. O romance é o sucessor da grande épica, é a epopéia de um mundo abandonado por Deus. No romance há uma consciente arquitetura temporal que corresponde, grosso modo, à biografia: todo romance é de algum modo biográfico, ao passo que a vida de Homero é irrelevante em relação às aventuras da Ilíada e da Odisséia. Estamos agora diante de um mundo que já não se parece com a ‘teodicéia perfeita’, onde eram possíveis grandes obras de arte e filosofia naquela ‘primeira ingenuidade’, metaforicamente associada à infância saudável da humanidade. Chegados à maturidade, os modernos olham para si mesmos com ironia, sem saber computar perdas e ganhos. Já não é autêntico o tom da primeira ingenuidade na criação, o ‘tom’ da épica moderna só pode ser o tom da ironia, um corretivo de realidade. A ironia descreve a distância entre os ideais dos heróis e a pobreza do mundo que não oferece mais espaço para sua concretização. As formas correspondentes ao mundo moderno, abandonado pelos deuses, são necessariamente demoníacas, pois não há mais apenas uma questão de ‘medida’: pode-se falhar não apenas por excesso ou falta, mas por naufragar em falsos valores, pela fé em falsos deuses. (der Grieche kennt nur Antworten, aber keine Fragen, nur Lösungen (wenn auch rätselvolle), aber keine Rätsel, nur Formen, aber kein Chaos. Georg Lukács, Die Theorie des Romans – Ein geschichtsphilosophischer Versuch über die Formen der grossen Epik. Frankfurt am Main: Luchterhand, 1988. 144pp. Aqui pp. 22/23).

Quem se depara com a perfeição de Homero imagina que o mundo grego não conhecia o caos, seus heróis não eram ‘indivíduos’ problemáticos e o mundo não era contingente. Tudo estava resolvido pela intervenção divina, e o sofrimento e a morte eram partes essenciais desse riscado. Entre os modernos, são já casuais, porque o mundo é contingente e todos fazem, em maior medida ou menor, seu próprio destino.

Dom Quixote é o primeiro grande épico moderno, do tipo que Lukács chama de ‘idealismo abstrato’. O segundo tipo é de pura subjetividade, da alma recolhida a si mesma, à sua forma de ser vitoriosa sobre a passagem do tempo, através das experiências de tempo que são vitórias sobre o tempo: a esperança e a memória. É a forma do ‘romantismo da desilusão’. Esperança e memória, escreve Lukács, são as únicas experiências do tempo que são ao mesmo tempo vitórias sobre o próprio tempo, e podem oferecer-nos um relance do essencial num mundo esquecido por Deus. (‘…die Hoffnung und die Erinnerung; Zeiterlebnisse, die zugleich Überwindungen der Zeit sind: (…) sie sind die Erlebnisse der grössten Wesensnähe, die dem Leben einer von Gott verlassenen Welt gegeben sein können.’ Lukács, Op. Cit. P. 110). Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister aparecem como a tentativa de síntese entre o abstrato idealismo e o refúgio na subjetividade do romantismo da desilusão: os romances desse tipo são romances de educação, porque representam a reconciliação do herói com o mundo exterior, o modo pelo qual ele vence obstáculos, acomoda-se um pouco a condições objetivas adversas, sem perder sua essência. Sua vida é um aprendizado que o simples observar transforma, através da aventura de ler, em outro aprendizado. Depois de um grande romance desse tipo o leitor mesmo é já outra pessoa. Aqui não se lê para ‘matar’ tempo, mas para ganhá-lo.

O mundo grego é homogêneo, seus heróis não-problemáticos. A sina está sempre dada pela intervenção dos deuses, há coragem e aventuras, morte e sofrimento, mas não o ‘abismo dentro da alma’ e nem um mundo a ganhar para prová-la. O mundo contingente e o indivíduo problemático pertencem um ao outro. (Die Theorie des Romans, p. 67). A ‘topografia transcendental’ do grego é estranha, diversa da moderna.

Dom Quixote é sobretudo uma grande conversa a respeito da modernidade que trouxe para a alma do herói essa ‘dissonância’ com o mundo. Dom Quixote é demoníaco, sublime, é indivíduo problemático no mundo contingente: prova isso a própria assunção de um novo ‘nome’ quando o herói se faz cavaleiro. No mesmo sentido, como a provar o ideal renascentista de que cada um de nós é artífice do próprio destino, Cervantes repete mais de uma vez o memorável refrãozinho de Sancho: ‘no como naces, sino con quién paces’. Não importa como nasces, mas com quem andas. Segue no mesmo sentido o diagnóstico de Cervantes de seu próprio tempo e a descrição simbólica – restauradora – da missão de Quixote. Em nossos ‘detestáveis séculos’ (p. 106), ou idade de ferro, Quixote se faz cavaleiro andante com a missão de ressuscitar a ‘idade de ouro’, tempo em que ainda não se havia introduzido a fraude nos negócios humanos, nem a lei do ‘encaixe’, por exemplo, com a qual Cervantes descreve a justiça moderna, algo como a arbitrariedade do juiz que sentencia o que lhe passa ou ‘encaixa’ na cabeça. (a explicação dessa lei do encaixe retiro de uma nota do editor à edição citada aqui: Miguel de Cervantes Saavedra. Don Quijote de La Mancha. Edición y notas de Martín de Riquer, de la Real Academia. Barcelona: Editorial Juventud S.A., 11ª ed. 1992).

Num mundo de fraudes, a missão quixotesca é representante do absoluto, da justiça divina, não das relativas e falíveis justiças humanas. O ridículo de uma tal empreitada é genialmente intuído por Cervantes. Não é por acaso que as ‘salvações’ dos injustiçados por Quixote terminem em tragicomédias, com resultados ainda piores para os que são por ele redimidos. A missão de justiça de Quixote é também sua ‘religião’ num mundo abandonado por Deus. ‘…a los caballeros andantes no les toca ni atañe averiguar si los afligidos, encadenados y opresos que encuentran por los caminos van de aquella manera, o están en aquella angustia, por sus culpas, o por sus gracias; sólo le toca ayudarles como a menesterosos, poniendo los ojos en sus penas, y no en sus bellaquerías.’ (p.301).

Ao aconselhar Sancho, quando este parte para o governo da ‘insula Barataria’, nomeação feita de pura burla pelos nobres para verem como se saía o modesto lavrador no ‘governo’, situa Quixote sua hierarquia de valores: a misericórdia sobrepõe-se à justiça: (‘aunque los atributos de Dios todos son iguales, más resplandece y campea a nuestro ver el de la misericordia que el de la justicia’ (p. 842). Sua missão e profissão, sintetiza Quixote, é perdoar os humildes e castigar os soberbos (p. 917). Seria desnecessário dizer aqui que não há sistema de justiça que funcione sobre esse postulado, se ele não fosse ainda hoje moeda corrente na imaginação autoritária.

O imaginário de Quixote é sublime, a concretização de seus ideais num tempo de ferro, de vulgaridades, prosaico, é motivo de graça constante nessa grande comédia. Percebendo que a ética aristotélica da justa medida já não significa tudo num mundo em que os valores não são homogêneos, no qual o que para um é coragem para outro é signo da maior covardia, Cervantes situa a coragem de Quixote no aspecto demoníaco, messiânico. Se é verdade, reconhece, que a coragem é o termo mediano de uma temeridade e de uma covardia, não sabendo ao certo como fazer para alcançar a justa medida, Quixote prefere a temeridade a ser chamado de covarde. A coragem de Quixote é militar, moderna, demoníaca, messiânica. Sua cavalaria andante é uma religião, diz Cervantes (‘…muchos son los caminos por donde lleva Dios a los suyos al cielo: religión es la caballería; caballeros santos hay en la gloria. ‘ (p. 596), mas uma religião profana, como serão as ideologias do século 20.

A coragem traduzida na sabedoria imemorial das pessoas simples e boas é a coragem natural e graciosa de Sancho. Nosso tempo é tempo de Sanchos, não mais de Quixotes. Estamos cansados do divino/demoníaco/messiânico das utopias autoritárias em que reincide – algumas como simples reflexo do próprio desespero – uma esquerda pós-moderna. Mas essa é já outra leitura. Toda grande obra – e Dom Quixote é uma grande obra – será lida diferentemente por diferentes gerações, ainda mais diferentemente quando nossa consciência histórica se alterou de modo profundo, ou para dizê-lo no vocabulário de Lukács, quando a ‘topografia’ transcendental do moderno e do sublime já nos é estranha.

III – ‘Na estação de trens’ – topografia transcendental de nosso tempo

Celebramos o aniversário de 400 anos do Quixote puxando da memória um fragmento de filosofia da história que descreve, metaforicamente, a consciência histórica do nosso tempo. O ensaio é de Agnes Heller em sua Filosofia da História em Fragmentos, de 1993, e chama-se ‘On the railway station’ ou ‘Na estação de trens’.

Segundo Heller, o mundo antigo era espacial, o moderno é temporal, mas o pós-moderno volta a ser espacial. Essa é uma topografia diversa, que será compreendida em termos metafóricos. ‘Os primeiros modernos vivem em suas histórias, os modernos correm atrás da História, ao passo que os pós-modernos são voyeurs da História (com h maiúsculo) e das histórias de um passado esplendoroso’ (Agnes Heller, A Philosophy of History in Fragments, Blackwell: 1993, p. 221). A estação de trens, tanto física quanto metaforicamente, começa a imprimir seu selo na imaginação social no século 19. Por coincidência, no ano de morte de Hegel, que falou de um fim da história, surgia a estrada de ferro (op. cit. p. 216) e com ela uma fantasia social que empurrava a história novamente para o futuro. O século 20 viveu no tempo do ‘futuro absoluto’, construído sobre a imaginação do ‘trem da História’. A jornada, porém, tinha pontos finais, as estações de Auschwitz e a jornada para regiões remotas da Sibéria, para as ilhas do Gulag, escreve Agnes Heller. Por isso que ‘depois de refletir, ainda que nunca de modo suficientemente sério, sobre essa viagem (…) nossa geração tornou-se relutante em saltar de novo nesses rapidíssimos trens da história. Foi assim que os habitantes do mundo moderno chegaram a perceber que é melhor para eles arrumarem-se, de um jeito de outro, nas bem conhecidas estações de trens do presente’ (op. cit. P. 218).

‘A estação de trens, elo entre a cidade e a viagem, entre a tradição e o futuro, é a metáfora do presente absoluto. Para ficar nessa metáfora, diria que viver na estação de trens é a resolução de viver no presente absoluto’ (op. cit. P. 223).

Uma diferente ‘topografia transcendental’ ou consciência histórica sugere novas leituras. Sobressairão, agora, figuras de fundo que foram apagadas pela ênfase no sublime e no herói moderno, voltado para a realização de seu ideal na grande narrativa da História, mesmo que à custa da danação dos outros, que pagam o preço da empreitada.

IV – Retorno ao belo e à democracia, regime prosaico

Agnes Heller define a topografia de nosso tempo numa imagem simbólica. Seu tópos não é mais o de um ‘trilho de trem’ em direção ao progresso ou à redenção humana pela política, mas a ‘espera’ contra toda desesperança, o tempo do ‘presente absoluto’ situado na ‘estação de trens’. Nosso tempo, saturado de história, talvez prefira figuras de fundo a heróis, Sancho a Quixote. O século 20 saturou-se de sublime, de messianismo, de utopias, de situações-limite. Sua filosofia moral, por exemplo, desenvolveu uma predileção toda especial pelas figuras do santo e do herói de um lado, e da escória humana de outro, como observa Heller noutro lugar.

Quixote é sublime, Sancho é gracioso. Quixote é demoníaco, Sancho é apenas-humano. Cervantes traça essas duas formas de ser com singular e genial coerência, sem cair nos extremos da caricatura, o que faz com que simpatizemos com ambos. Quixote é tão sublime que chega a fazer-se incorpóreo. A todo o momento é Sancho quem lembra ao patrão que ele tem certas necessidades de fazer o que não se escusa. Dentre as cenas memoráveis do Quixote com certeza estão aquelas em que Cervantes põe seus dois personagens às voltas com suas necessidades humanas-humanas-demais: ‘águas maiores e menores’, no dizer gracioso de Sancho. Quixote é representante de uma tradição segundo a qual o corpo é prisão da alma, traduzida por Cervantes como ‘a fineza de seu negócio’ que consiste em ‘no comer y en hacer otras asperezas equivalentes’ (Don Quijote, p. 249).

Quixote & Sancho, o sublime e o gracioso. Cervantes é um memorável rebelde e se faz presente em ambos. Sancho não é apenas figura de fundo. É herói de um mundo que sobrevive à ‘melancólica’ morte do sublime.

O belo e o sublime não são apenas categorias estéticas: a esfera de interesse desses conceitos aproxima-se mais de uma zona de interseção entre a ética e a estética que pode ser concebida como estética moral. Kant, num belo libreto chamado Observações sobre os sentimentos do belo e do sublime, descreveu-os como conceitos de uma psicologia empírica. Por mais caricaturescos que pareçam, os conceitos são verdadeiros, ainda que as pessoas em geral sejam uma mistura de elementos de cada temperamento. O sublime em geral é masculino, o belo é feminino. O sublime é movido por princípios, o belo é levado a não cometer faltas morais mais pelo aspecto de feiúra do que propriamente pela reflexão (é como em geral ensinamos às crianças: mentir é feio). Na terceira parte de sua Filosofia Moral, intitulada Uma ética de personalidade, Agnes Heller elabora em torno aos conceitos do caráter belo e do caráter sublime. O belo seria o elemento não-utópico na pessoa decente, que configura a promessa de felicidade. O sublime, a promessa de grandeza (Agnes Heller, An ethics of personality. Oxford, Cambridge: Blackwell, 1996. Aqui refiro-me à Parte III – ‘Letters concerning Moral Aesthetics: On the beautiful and the sublime character, on Happiness and Love’). Não sendo este local para maiores digressões em torno a tema tão rico e interessante, em que raros filósofos põem a colher, contentemo-nos com a sugestão dos dois títulos acima, a que se poderia adicionar, ainda, o imortal ensaio de Kierkegaard sobre a ‘validade estética do casamento’ (em inglês está contido no volume Either/Or; em português, salvo engano, apenas em separata, por Editorial Psy II, 1994, com título O matrimônio).

Num mundo onde já não há espaço para a tragédia, disposições ao sublime usualmente se gastam à toa. São, também, signos confiáveis de uma falta de balanço de personalidade e sofrimento psíquico. Quixote é um temperamento sublime, Sancho é gracioso, mas é Quixote o real protagonista da ‘comédia’. A coragem de Quixote é militar, a de Sancho mais uma coragem civil. Quixote exerce, ainda que seu poder seja mero desatino, o poder político de distribuir justiça; Sancho, quando se faz governador, despreza o poder. Quixote é um aristocrata, Sancho reconhece que no mundo moderno todos nascem iguais, e distinguem-se por duas linhagens apenas: a dos que têm e a dos que não têm (p. 685).

A cena do ‘governo de Sancho’, quando os nobres que cruzam os caminhos de Quixote resolvem aprontar uma armadilha para burlarem-se do escudeiro, fazendo-o ‘governador’, agora sobressai como um dos pontos altos da arquitetura do Quixote, ligado ao tema central da novela intercalada do ‘curioso impertinente’ (‘el que busca lo imposible, es justo que lo posible se le niegue’). Sancho em seu governo é quem se burla dos nobres, pois o que devia ter saído um fiasco e comédia aparece como governo bom e prudente. Sancho atualiza os cânones da boa política de Aristóteles: a justa medida, o possível e o adequado. Burla-se duplamente dos nobres o escudeiro humilde, porque conhecendo o ‘poder’ despreza os poderosos e todo o poder, como se dissesse: cumpri meu termo de governador, agora quero voltar a minhas vinhas: ‘desnudo nací, desnudo me hallo: ni pierdo ni gano’ (p. 592). E ainda acrescenta Sancho: ‘y si se imagina que por ser gobernador me ha de llevar el diablo, más me quiero ir Sancho al cielo que gobernador al infierno’. Ao tempo em que a sabedoria de cavaleiro andante de Quixote segue desatinando, o próprio Quixote admira-se de Sancho, dizendo: ‘Por Dios, Sancho – … mereces ser gobernador de mil ínsulas: buen natural tienes, sin el cuál no hay ciencia que valga’ (p.848). Nesse governo da ilha Barataria, diz Sancho que entra de bolsos vazios, e de bolsos vazios sai, bem ao contrário do que sói ocorrer com os governadores de outras ilhas (p. 926).

A coragem de Sancho é já coragem ‘civil’. Não é a valentia militar que desatina, em imitação do divino. É coragem que avalia o significado da empreitada, e aconselha, modestamente, ao cavaleiro andante, como adverte Sancho, que ‘quien busca el peligro perece en él; así, que no es bien tentar a Dios acometiendo tan desaforado hecho’. (p. 180).

A democracia é o regime de um mundo em que não há espaço para cavaleiros andantes que nos presenteiem com seus ‘ideais’: a democracia é mais e mais o mundo da prosa, é prosaica.

A comédia de Sancho como governador é uma profecia democrática cumprida. A promessa de grandeza de Quixote deixa uma saudade, com certeza, porque a grandeza faz falta no mundo, mas conscientemente, ao contarmos perdas e colheitas, abriremos mão com boa-vontade da grandeza e do sublime. Post tenebras spero lucem: eis a legenda, extraída do Livro de Job, 17, 12, do emblema da casa impressora que aparece na portada das primeiras impressões do Quixote. A mesma frase é posta por Cervantes na dicção de Quixote, ao final do livro, como profissão de fé na esperança, a qual, segundo mensagem da novela intercalada do curioso impertinente, nasce juntamente com o amor. Memorável aqui também a intervenção de Sancho: não entendo nada disso, senhor, só sei que bendigo aquele que inventou os sonhos, que só têm uma coisa de ruim, no que se parecem com a morte (p. 1.030).

Nossa resolução para vivermos no presente absoluto pode parecer resignação, mas em nosso tempo não é difícil descobrir em muitos discursos e práticas do que vem se chamando ‘utopia’ triste reflexo da desesperança, do ódio e do ressentiment. A resignação diante da perda do esplendor e da grandeza é ao mesmo tempo a promessa de que os escuros que acompanharam a concretização de ideais sublimes pelos trilhos conhecidos da História não se repetirão jamais. Essa é a luz que esperamos do futuro, e para essa espera nos resignamos a viver no tempo do ‘presente absoluto’.

V – Quixote & Sancho e os dois luízes: Prestes & Lula

Celebremos Cervantes no presente, trazendo a experiência viva do livro para a vida da experiência. Lendo-o por entretenimento, sim, mas também como quem sorve o vinho bom, pausadamente, ruminando, juntamente com as coisas lidas, as visões do presente. A arte de ler é a de ‘ruminar’ – que possuem as vacas, mas que a humanidade moderna lamentavelmente perdeu: dizia Friedrich Nietzsche (A genealogia da moral). Nesse fluxo de memória, vejo nos heróis de quatrocentos anos um personagem moderno e outro, nosso contemporâneo, pós-moderno. Vejo em Quixote a figura mítica do Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes. Vejo no escudeiro fiel Sancho a figura de outro Luiz: Luiz Inácio Lula da Silva, que se fez presidente da enorme ‘insula’ Brasil. A atualização de Sancho, governador da ‘insula Barataria’, não se faz aqui com propósito de burla, mas de prova da profecia democrática cumprida, posta no romance de Cervantes como uma hipótese apenas, para divertimento e deleite dos nobres. Venceu, afinal, o gracioso sobre o sublime. A memória da esperança passada também contém um elemento de esperança, que sempre precisa encher-se de conteúdos novos. A esperança, que não é utopia abstrata refletida do seu contrário, é sempre docta spes, esperança inteligente. Abrimos mão da grandeza da utopia de Prestes, e ainda assim a ‘vida de Luiz Carlos Prestes’ enche o peito de esperança. ‘Sua grandeza é também algo de concreto e palpável. Vem de uma vida dedicada ao povo, de culto à honra, à dignidade e à verdade. De fidelidade à causa do Brasil’ (Jorge Amado, O Cavaleiro da Esperança. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 40).

Por mais datada que seja a fé de Jorge Amado na concretização da liberdade soviética (a Vida de Luiz Carlos Prestes foi escrita em 1942), parece correto reconhecer com o autor que ‘a Coluna é o maior momento de um Brasil em busca de si mesmo’ (p. 97) e que a história moderna do Brasil nasce com a Coluna e Luiz Carlos Prestes (p. 65). Faltaria completar que essa história moderna do Brasil começa e termina com dois ‘luízes’. A mesma história que no Leste Europeu termina em 1989, no Brasil somente tem termo final em 2003 com a chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores. Com a vitória da ‘esperança sobre o medo’ (a frase de campanha de Lula contém uma parcela de verdade histórica) encontramo-nos em simultaneidade de imaginação histórica com o centro irradiador da utopia que embalou nossa história no século 20, que foi a utopia messiânica da redenção do sofrimento pela política.

De tanto repreender a Sancho pelo abuso dos ‘refranes’, é Quixote quem termina citando-o, admirado de que Sancho seja tão ‘sábio’. No como naces, sino con quién paces, é o refrãozinho que traduz toda a índole democrática e anti-aristocrática de Cervantes. Se um lavrador como Sancho – ainda que para mero deleite dos fidalgos que o enganaram ao fazer dele governador de uma ilha – se mostrava discreto e prudente, por que não pode ser afinal, sem burlas e troças, presidente um modesto torneiro mecânico?

Quixote é representante de uma ética aristocrática, que pretende autoritariamente guiar-nos do mundo de ferro para a ‘idade dourada’. Quixote representa a utopia moderna da redenção pela política, e a figura de Quixote entre nós assume o mito do Cavaleiro da Esperança. Como Quixote, Prestes distribuiu justiça pelo interior do Brasil, queimando livros de débitos, soltando presos. Talvez seja grandioso que jamais tenha chegado ao poder, tendo sorte diversa dos seus companheiros de Comitê Executivo da Internacional eleito no 7º Congresso, entre os quais Stálin e Mao (a fonte aqui é também Jorge Amado, op. cit., rodapé à p. 231). A estátua de Prestes não se ergueu autoritária para ser derrubada, sobre seu mito nenhuma ditadura alçou-se ao poder. Tanto melhor, porque sua figura permanece na memória. Ainda hoje se pode dizer com Jorge Amado que ‘mesmo aqueles que pensam noutros nomes quando pensam no futuro do Brasil, mesmo esses se alimentam de esperança, do exemplo de Luiz Carlos Prestes. É ele quem permite o sonho do Brasil…’ (op. Cit. p. 325). Na memória sua grandeza e amor à pátria, disfarçado de internacionalismo. Prestes não foi jamais presidente, ocupa o espaço dos mitos que não podem atualizar-se, porque não pertencem mais ao nosso mundo prosaico, em que não admitimos pensar – ingênua ou desesperadamente – que nós do povo somos bons selvagens e naturalmente revolucionários e só esperamos ser guiados pelo gênio militar de um novo Napoleão.

A coluna Prestes é já um ‘lugar de memória’: todo lugar de memória contém elementos de utopia. Foi uma ‘epopéia de 36 mil quilômetros’, ‘uma das mais extraordinárias marchas revolucionárias da História da Humanidade’, ‘história pungente de jovens oficiais do Exército e da Força Pública de São Paulo que se deixaram conduzir pelo sonho de transformar o Brasil numa grande nação. Dignos, probos e obstinados (…) os rebeldes tinham o talhe de caráter dos homens do seu tempo: arraigado sentimento de respeito para com o semelhante e a capacidade de indignar-se e revoltar-se, como cidadãos, contra o arbítrio, o nepotismo e a corrupção que devastavam o país’ (Domingos Meirelles, As noites das grandes fogueiras – Uma história da Coluna Prestes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 19).

Lula inspirou-se no mito de Prestes, e citou-o em campanha, na sua Caravana da Cidadania, mas talvez por sabedoria natural felizmente não tente mais atualizar o mito, pelo menos desde o seu reconhecido passo em falso ao inaugurar seu governo junto a uma das incontáveis favelas do Brasil. Porque o mito de Prestes encarna o ‘sublime’ na política, que é também autoritário. Lula saiu-se melhor do que esperavam os ‘filhos dalgo’ e talvez seja muito mais democrático do que muitos que com ele chegaram à Presidência da República, logo em seguida decepcionados porque Lula não pôde ser o cavaleiro de suas esperanças. Já é lugar comum afirmar que o PT traiu seu ideal ou que suas lideranças fizeram do projeto de esquerda mal disfarçado ‘populismo assistencialista’. A história pode ter outra face se concluímos que não se pode pretender que um lugar de memória insurgente (dominado, portanto) contenha o mesmo conteúdo simbólico de um lugar de memória dominante. Os aniversários de infância do PT – marcados ainda por signos de medo e de esperança, medo da polícia, da tortura, do ‘elemento infiltrado’, da traição, e esperança entoada na melodia da Internacional – seriam ridiculamente encenados, aos 25 anos, sobre esse mesmo imaginário.

Passado o tempo mítico do ‘absoluto futuro’, encarnado no ideal do Cavaleiro da Esperança, chegando ao poder, a esperança necessariamente muda de ‘conteúdo’, sob pena de tornar-se comédia de si mesma. Nenhum cavaleiro de Esperança permanece o mesmo no poder porque o poder não é um lugar heróico. O poder tem agenda, rotina, despacha atos de Estado tão prosaicos como portarias de serviço que regulam a vida de uma enorme burocracia. Cenas heróicas podem ocorrer, no poder, em oportunidades históricas grandiosas, mas estas acontecem apenas, não se pode persegui-las sem cair na comédia. O mundo global é mais prosaico do que a prosa do mundo com que Cervantes inaugura a modernidade. Lula tem consciência de que encenar heroísmo no lugar prosaico por excelência que é o gabinete presidencial seria ridículo. Assim como seria ridículo o populismo não-assistencialista, como é o discurso, vazio de possibilidades objetivas de concretização, de uma revolução infra-estrutural de curto prazo que redundaria na redenção dos excluídos. Criticam-no por trocar de discurso, quando está afinado com a agenda do nosso tempo. Não havendo lugar para redenção dos excluídos pela política, a caridade volta a ser uma palavra ecumênica no diálogo entre os Estados.

Nesse sentido, Lula é talvez um estadista, que apenas encontra um tempo e um espaço, um mundo prosaico, mais prosaico do que nunca, onde já não cabem mais estadistas. A verdade do número de famintos redimidos pelo fome-zero é menos importante do que a agenda da fome. É uma agenda assistencialista, sim, por isso mesmo corajosa, porque conscientemente sepulta a fraudulenta ‘metafísica da questão social’ – a idéia de que a chegada ao poder de um grupo de pessoas identificadas com a herança da Revolução de 1789 faria com que os problemas sociais fossem ‘resolvidos’ de cima para baixo. É patético que o foro econômico de Davos tenha parecido comédia encenada, talvez de pura burla, pelos nobres do mundo global, com pop stars e personalidades da indústria do entretenimento. Mais um signo da acelerada trivialização dos espaços políticos internacionais. Cervantes retrataria a cena sob a fala de Sancho: ‘el día de hoy, mi señor don Quijote, antes se toma el pulso al haber que al saber: un asno cubierto de oro parece mejor que un caballo enalbardado’ (Don Quijote, 685). Mas o gesto de Sharon Stone, que em dez minutos recolheu milhões para ajudar a Tanzânia, é belo, ainda que fora de lugar em foro de discussão da economia mundial. Tampouco é patético que Lula apele em Davos à caridade dos que têm, em favor dos que não têm. Isso que se chama hoje caridade é um novo nome, apenas, ao que nos áureos tempos em que se acreditava na ‘Internacional’ atendia pelo nome de solidariedade universal. Não é gesto heróico, até mesmo porque – como escrevia Castoriadis, a fome e a miséria no mundo não são fatos trágicos, já que não devem inelutavelmente ocorrer. A fome e a miséria são parte do ‘melodrama’ do mundo global, derivado de nossa estupidez (a idéia é adaptada de Cornelius Castoriadis, The imaginary institution of society. Trad. Kathleen Blamey. Cambridge: MIT Press, 1987. P. 94).

Muitos dos que hoje clamam ser ‘de esquerda’ insistem em viver no tempo mítico do ‘absoluto futuro’, o que antes de ser utopia é uma ‘atopia’, absolutamente fora de lugar, como a retratada por Cervantes na comédia. Alguns, exceções, que ressoam autênticos, mesmo assim encenam comédias burlescas, ridículas. A esses associam-se personagens do autoritarismo de ontem, abraçado pelo fundamentalismo oportunista. Em categorias de antanho, este assemelha-se à consciência inautêntica que se manifesta primariamente na rejeição da civilidade, como se fosse signo de coragem. É o Lumpenproletariat pós-moderno que, como o de ontem, sempre serviu de boa vontade a oligarcas e tiranos. Há, por fim, tipos híbridos de messianismo e oportunismo, que mais cultivam a própria vaidade (aliás, retratada genialmente por Cervantes na indumentária ridícula de Quixote): os híbridos de situação e oposição a si mesmos.

Com Lula o governo abre mão de redimir aqueles que tiveram má sorte na loteria social, mas abre mão também de enganar-nos prometendo uma redenção que não virá. A temporalidade não é sempre a dos calendários. As ‘efemérides’ e seus significados simbólicos alteram o mero correr dos anos e sua separação aleatória em décadas e séculos. Se o século 20 terminou para os países que viveram sob o império soviético com a queda do muro de Berlim em 1989, o nosso século 20 prolonga-se até mais além, para terminar apenas com a subida ao poder de um partido que ideologicamente viveu, desde sua concepção, da espera messiânica que caracterizou essa ‘era de extremos’.

O PT, em seu aniversário de 25 anos, outra efeméride lembrada neste 2005, pode ter traído ou não seu ideal, mas com certeza está agora temporalizado no absoluto presente, que é o tempo global. Se não liberta os excluídos da sua condição, liberta-nos da desesperança que se estampa na falsa promessa de redenção. Resignação melancólica também é semente de esperança inteligente que segue dizendo com Quixote: post tenebras spero lucem. Dentro do prosaísmo de nosso mundo, celebremos quem se mantém democrata, mesmo diante da sedução do poder. A democracia institucionaliza-se para a reprodução normal da vida, reprodução que não elimina os desvios, antes submete-os a tratamento, a processo. A Corte constitucional e a Procuradoria Geral da República assumem papel de destaque nessa democracia prosaica com a qual havemos de contentar-nos. Lula, o estadista prosaico, Sancho Panza no governo de nossa insula Barataria, onde muitos nobres e governadores já encheram os bolsos e parece que aprontam ao presidente a cada esquina mais um ardil, e não só de burla, sai-se melhor, novamente, ao nomear o sucessor do procurador-geral da República, do que muitos de seus companheiros, esquecidos da democracia, adeptos agora da idéia autoritária de que os do povo não devemos votar, porque somos irresponsáveis (como na deplorável rejeição da lista tríplice para indicação ao presidente da República de três nomes para esse cargo, apresentada ao Congresso em recente Projeto de Emenda Constitucional). Por maior que seja a saudade transcendental da grandeza perdida, por mais que sonhemos com a promessa de grandeza de tempos sublimes, saudemos a maior mensagem de Cervantes, na novela intercalada do ‘curioso impertinente’: quem se põe a sonhar o impossível, o possível se lhe escapa; a verdadeira esperança é a que nasce do amor.

A política não é o mundo dos nossos sonhos, mas além dela, a vida ainda é grande por sabermos sonhar. Bem-aventurado quem inventou o sonho, dizia Sancho, que é a ‘capa que cobre todos os pensamentos humanos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo que aquece o frio, frieza que ameniza o ardor, e finalmente, moeda geral com que todas as coisas se compram…’. Dirá algo parecido, mais tarde, Pedro Calderón de la Barca:

¿Qué es la vida? Un frenesí.

¿Qué es la vida? Una ilusión,

una sombra, una ficción,

y el mayor bien es pequeño,

que toda la vida es sueño

y los sueños sueños son.

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Procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova Iorque (EUA), autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política, Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004