Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Literatura e terror

1. A cultura do ódio

O terrorismo cultiva o ódio, e ódio é algo que nasce de uma perversão de razão. Maniqueísta, divide a existência em dois universos incomunicáveis: o bem e o mal, ‘criminosos’ coletivamente culpáveis e ‘vítimas’ coletivamente inocentes. Feito de linguagem e prática impacientes, despreza como mentira o que existe e tem valor. Sua luta não é espiritual, mas ‘espacial’, por isso não argumenta nem persuade, procura vencer pelo cansaço, embora em suas formulações de razão fale em hegemonia, ideologias e todo o aparato da filosofia política radical de ontem. Seu tom não é irônico nem patético, mas melodramático. Seu mundo é unidimensional e todas as criações de civilização, abrangidas na categoria freudiana de ‘sublimações’, são dessublimadas. Esse movimento aparenta mostrar a verdade-verdadeira, mas abre mão do ‘trigo’ das sublimações (a liberdade, a fantasia, a rebeldia, a consciência da repressão canalizada para um potencial crítico e liberador, enfim a força construtiva de Eros) para ficar com o joio do ressentiment. Seu conceito de democracia, a suposta verdade-verdadeira destruidora das hipocrisias das elites – resume-se ao igualitarismo. É ideologia que nasce da desesperança e vive em permanente ‘estado de alerta’ contra o inimigo. Apresenta um autoritarismo diferente em nossa tradição, porque não parte do Estado para oprimir verticalmente a sociedade, mas da sociedade para a sociedade, lateralmente, sem prejuízo de ocupar ‘espaços’ de poder para melhor impor-se. Seu jargão chama-se ‘correção política’ e sua filosofia impressiona mais quanto mais ordinária parece. Ela faz do que não compreendeu ponto de honra, como quando despreza a lógica e a consistência argumentativa como ‘armas do opressor, eurocêntrico’.

Não obstante, apesar da aparência ‘autóctone’, é feita de ‘colagens’ eficientes de temas, títulos de livros, expressões consagradas na filosofia tradicional. Sua linguagem política é ‘inautêntica’ e cultua um perigoso auto-desprezo moral. Não elabora com razoável profundidade questões éticas ou morais, sobrevivendo da superfície de um ‘moralismo’ cuja palavra-chave é hipocrisia. A história já não é conhecimento de um passado que tem algo de ‘necessário’, não porque não pudesse ter sido outro, mas porque afinal foi de uma e não de outra forma. A história agora é ‘terapia’ para promoção da auto-estima dos excluídos, que formula no tom do melodrama, por exemplo: ‘A crua pergunta – para quem foi boa a invasão portuguesa?’ (Flávio Kothe, O cânone imperial, p. 227). Conformista, adota sem maiores problemas um índex e então falar em descobrimentos é pecado capital. Quando não sabe escrever, afirma simplesmente que toda gramática é mais um instrumento de opressão. Em tempos de pensamento pós-metafísico, essa filosofia do ódio surpreende, porque volta a elaborar argumentos metafísicos e com a maior naturalidade despreza a ‘Existência’. Assim, postula Essências como o que seja realmente Literatura ou Arte para depois chegar a conclusões que já estão contidas na premissa. Não há nada a ‘provar’ em seus argumentos, apenas repetitivos exemplos da mesma premissa ideológica. Não emociona, embora surpreenda, não tem nada que instigue, embora suscite em cada esquina o gesto de incredulidade diante do absurdo.

Mais que murmurar protestos tímidos, é preciso compreender essa ideologia. Compreendê-la não é aqui o mesmo que falsificá-la, porque ela não chega a ser uma linguagem científica falsificável mediante provas e argumentos. Ela tem uma impressionante disposição para a certeza e elabora, com incrível despudor, verdadeiros estelionatos intelectuais e picaretagens. Adora números, desde que elaborados por conta e risco dos ‘autores’, sem critérios estatísticos, ou referência a fontes, que afinal são outros ‘ardis’ do inimigo.

As celebrações dos Descobrimentos foram, aqui como nos Estados Unidos, a efeméride que marcou a visibilidade, para usar o jargão atual, dessa linguagem, que entre nós rendeu um panfleto de algum verniz filosófico, de Marilena Chauí (Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. 103pp). Chauí pôs no mesmo saco marchinhas de carnaval e o ‘cânone’ de Gilberto Freyre: afinal, não há ‘nada a comemorar’ e tudo é ideologia (embora só tenha ficado o Nome e não o potencial compreensivo originário do conceito de Marx). No mesmo tom, mas com certeza mais impressionante pela abrangência e peso (literalmente, mais de 2000 páginas, embora à custa de infindáveis repetições) surge uma coleção de ‘ensaios’ sobre literatura brasileira, publicados, na ordem histórica com o nome comum de Cânone, de autoria de Flávio R. Kothe e editados pela Universidade de Brasília (O cânone colonial, 1997, 416pp., O cânone imperial, 2000, 604 pp., O cânone republicano I, 2003, 610pp. e O cânone republicano II, 2004, 509pp). O tom de desespero e a incitação à violência são tão impressionantes nesses ‘Cânones’ que vale a pena tentar decifrá-los, e compreendê-los em categorias lógicas sérias (é justo registrar que, embora tenha ‘visto’ o todo, a presente crítica tem em mira os dois primeiros volumes). Teoricamente, o projeto todo faz água desde as categorias e premissas (elaboradas de modo ideológico, para servirem às conclusões, sabidas de antemão). Alguns argumentos são silogismos flagrantemente falsos, mas não nos interessa a crítica linha por linha, e sim o fato relevante de que quanto mais faz água, em seriedade acadêmica ou científica, mais eficiente se mostra do ponto de vista político. É um panfleto poderoso, porque fala diretamente ao subterrâneo agressivo dos instintos sociais. Vejamos, em bem apertada síntese, o seu enredo, para em seguida desconstruí-lo e melhor compreendê-lo.

2. O anti-cânone

A tese fundamental de Flávio R. Kothe, a desdobrar-se em quatro longos e repetitivos volumes, é de que a identidade nacional brasileira é uma grande mentira, a ser abolida para que se abram ‘espaços’ paras as verdadeiras identidades, que seriam as diferenças, e suas falas silenciadas por genocídios culturais impostos pela elite branca às minorias étnicas e aos hifenizados (teuto-brasileiros, ítalo-brasileiros, etc). Tudo gira em torno à definição de uma elite do mal, equivalente à sigla WASP na ideologia de origem. Nos Estados Unidos, o mal absoluto é o colonizador e opressor WASP, ou seja White, AngloSaxon, Protestant. No Brasil, teríamos a elite BLOC, Branca, Lusa, Oligárquica e Católica. De acordo com o autor, o cânone é uma mentira que ‘Faz de conta que expressa tudo e todos, enquanto reduz a diversidade à perspectiva da elite branca, oligárquica, de origem lusitana e mentalidade francocêntrica’ (CI, 268).

A obra de Kothe permite duas leituras: uma clínica e uma filosófica. Dentro de nossa limitada competência, arriscamos a segunda. Desde logo, é sintomático que um livro seja elaboração obsessiva de uma neurose que se objetiva numa fantasia social. Do ponto de vista da filosofia política, é hora de estar atento, porque ‘a distância que media entre fantasias violentas e atos violentos é por vezes notavelmente curta na política’ (Heller & Fehér, Biopolítica – La modernidad y la liberación del cuerpo. Trad. José Manuel Álvares Flórez. Barcelona: Península, 1995. P.100).

O autor é sincero quando forja um texto de alta eficiência política. Segundo a tese principal, quem ama a literatura brasileira só pode ser cego ou mau-caráter, e normalmente será um pouco de cada coisa. Formamos o PC – o Partido do Cânone – ou o PRC – Partido de Renovação do Cânone (CI, 264). Na topografia que fez sentido até o advento do terror na política, o PC seria a situação, de direita, ao passo que o PRC seria um satélite nominalmente de esquerda, mas em realidade uma oposição consentida pela direita para sua perpetuação no poder. Flávio R. Kothe, como o único intelectual brasileiro que não é igual a todos os outros, no passado e no presente, é literalmente fundador de um novo partido nesse cenário. Ao final deste esboço de compreensão talvez tenhamos um Nome para o partido novo de ‘um homem só’. Por enquanto, sinalizemos tão somente o perigo de que uma fantasia violenta possa tornar-se ação violenta, se cair nas mãos de quem se desespera diante do fato de que aparentemente ‘não há mais solução política’ para o caos. A fantasia que ronda o anti-cânone de Kothe é desesperada e violenta, e não à toa faz uma certa apologia do suicídio como saída heróica (como por exemplo, em grand finale ao Cânone imperial). Daí para o homem/mulher-bomba é um passo. Assumamos o risco de que a contra-neurose seja igualmente um discurso quase neurótico: que pelo menos não se repita o erro de quem achou que Mein Kampf era inofensivo porque era uma pobre imitação de um Bildungsroman, com idéias neuróticas e obsessivas a que ninguém daria importância.

3. Luta espiritual ou espacial?

Segundo Flávio R. Kothe, José Veríssimo errou quando disse que nosso romantismo indianista era um ‘fecundo acerto literário’ apesar de ser um erro sociológico. Parafraseando José Veríssimo, toda a elaboração doutrinária de Kothe é um profundo erro lógico que redunda, no entanto, num fecundo acerto ideológico. Para compreender um e outro, precisamos desconstruir o texto do ‘Cânone’. Para Kothe, haveria uma premissa errada em todo ensino de literatura brasileira, porque o que aparece no Brasil sob o título de cânone da alta cultura, é

‘Uma cultura que legitima conquistas territoriais, escravizações, genocídios, espoliações sistemáticas do trabalho, regimes autoritários, etc. [que] só pode conter uma inversão geral dos valores’ (CI, 581).

Para corrigir essa situação:

‘Não apenas é preciso suspender a avaliação positiva patrocinada pelo cânone, como também suspeitar que autores e movimentos difamados ou ignorados pela exegese canonizante podem conter um elemento inovador e alternativo’ (CI, 581).

A elaboração desse acerto ideológico é obtida à custa de graves erros lógicos. Em primeiro lugar, suas ‘categorias’ que teriam sido definidas na parte introdutória do Cânone colonial, são simplesmente óbvias ou não acrescentam nada ao tema a ser provado. Definir cânone e exegese canonizante não demandaria tanta aparente erudição porque afinal são conceitos empíricos, eles existem. Segundo Arthur Schlesinger Jr. – numa esclarecedora reflexão sobre a moda ideológica do multiculturalismo ofensivo nos Estados Unidos – o cânone não significa nada além do reconhecimento do fato de que não podemos ler tudo que existe, então define-se uma ‘lista’ de itens representativos. O que os multiculturalistas ao Norte querem não é tanto a eliminação da ‘lista’ mas a substituição da lista por uma nova lista que atenda a uma igualdade de fato: algo como a ‘cota’ do cânone (Arthur M. Schlesinger Jr. The Disuniting of America – Reflections on a Multicultural Society. Knowville: Whittle Books, 1991. p. 31). O Anti-cânone de Flávio R. Kothe é quase o mesmo, mas salva-se porque admite que exista um cânone de grandes obras da literatura universal, diante do qual a literatura brasileira ‘desapareceria’ se fosse comparada. A tese é irrelevante, e será discutida quando tratarmos da existência da Nação e de literaturas nacionais. Por enquanto interessa verificar o giro por que passam categorias tomadas de empréstimo à tradição.

No mesmo passo em falso de Chauí, o autor vale-se ainda do Nome ‘ideologia’, tanto que – depois de ter trabalhado na introdução outras categorias, quando devia começar a utilizá-las, no Cânone imperial, volta à mesma ‘ideologia’, afirmando como objetivo geral do projeto o de ‘verificar a estrutura ideológica dominante no texto consagrado’ (CI, 11). Mas a categoria ‘ideologia’ não chega a ser empregada pelo autor, ou sofre uma mutação que convém ser demonstrada. Há uma diferença essencial aqui porque as categorias da esquerda tradicional faziam sentido numa filosofia da história de feitio progressista, ainda que por saltos. Agora não. Estamos diante de uma imóvel filosofia da natureza, e é o próprio autor quem assume responsabilidade pela formulação de que:

‘Como a história humana é parte da história da natureza, coloca-se a questão da ‘ética da sobrevivência’ já que quase todo ser sobrevive às custas da desgraça ou morte alheia.’ (CI, 294).

Num cenário de Natureza, o conceito de ideologia ou mesmo o ‘intelectual orgânico’ de Gramsci não funcionam mais. Até porque com esses conceitos o mundo e a história eram bem mais elaborados e complexos do que o maniqueísmo do bem contra o mal, das minorias contra os BLOC ou WASP. E mais, as filosofias da história de feitio marxista prestam-se com certeza a usos ideológicos, mas quase não exigem que sua fala seja moralista, como aquele discurso que apenas tira a máscara do outro. Por trás do rosto mascarado, havia alguém agindo para cumprir sua missão histórica, mesmo que esse papel não fosse ainda a grande missão da ‘última’ fase da grande narrativa (a redenção de todos os oprimidos pela classe universal, a mais oprimida de todas). Por isso, por mais messiânica que tenha sido a ‘espera’ dessas filosofias do ‘futuro absoluto’, nelas respira-se ainda um pouco de filosofia e de esperança. Agora é só desespero, porque ninguém pode fugir de sua ‘pele’. Ao BLOC só resta sair da história pela porta dos fundos, abrindo ‘espaços’. Ao excluído só resta ter a consciência correta que lhe é ‘adjudicada’ pelas lideranças etnocráticas (também o conceito de ‘consciência possível’, de Kothe, é tomado de empréstimo a Lukács, mas já se elabora aí tanta confusão que não há espaço para discuti-lo). Agora, a identidade possível é obrigatória porque seria a única ‘essencial’.

Toda ideologia tem seu quê de moralismo. Essa do multiculturalismo ofensivo é especialmente moralista, e seu moralismo é especialmente enjoado. Por mais infeliz que tenha sido o fim da fábula do comunismo, é importante nesse enredo que se considerava o opressor como quem ‘sofre mais’, e este seria no fim da história liberado de seu sofrimento pelo oprimido. Em termos éticos, repetia-se aqui, afirmando-a, a ‘fórmula platônica da bondade’ (expressão de Heller): entre sofrer o mal e praticá-lo, é melhor sofrê-lo, embora ninguém goste de sofrer. Em Gramsci, também, o opressor podia ‘escapar’ de sua pele, bandeando-se para o lado ‘universal’, como intelectual orgânico da classe universal, o Proletariado. A ideologia para Flávio R. Kothe é, porém, toda ela mentira consciente e arma do inimigo para calar as minorias. Todos os intelectuais, do passado e do presente, exceto um, são orgânicos, mas organicamente vinculados à elite BLOC. Já não se elabora uma ética, mas um moralismo autoritário e altamente intimidatório. A partir do momento em que não se tem o direito de ser ‘patriota’ (porque não só a palavra, mas a pessoa com uma consciência tão ‘errada’, estão no índex) onde ficaram a tolerância e abertura para a diferença? Esse maniqueísmo moralista chama à memória grandes respostas poéticas. Uma delas foi de Cervantes, quando Quixote descobre que outro autor havia publicado uma continuação de suas ‘aventuras’. Diante desse ‘falso Quixote’ Cervantes em realidade reflete sobre ‘identidades’ com a sabedoria socrática: não sei quem eu sou, mas com certeza não me reconheço nesse Quixote retratado no outro livro: ‘No sé si soy bueno; pero sé decir que no soy el malo’. Quem não admite a pluralidade de identidades é com certeza mais intolerante: se for proibido a alguém dizer que é ‘brasileiro e negro’ porque isso seria uma traição à causa da identidade ‘afrodescendente’, uma identidade possível torna-se a única obrigatória. Os que escolheram a identidade nacional não sabemos o quanto oprimimos as minorias que não a escolheram, ou estamos sinceramente interessados em saber, para libertarmo-nos do sofrimento de ser opressor, mas em qualquer caso não somos o monstro BLOC ou o ‘falso Quixote’ e muito menos o ‘inimigo’ que precisa ser varrido do mapa para abrir ‘espaço’ a uma democracia mais equânime. Uma democracia, antes de ser equânime em termos meramente quantitativos, precisa ser a constituição da liberdade, e então será conveniente perguntar aos artificialmente hifenizados se eles querem mesmo ser afro-brasileiros (ou o contrário, brasileiros e negros), teuto-brasileiros (ou o contrário, brasileiros de ascendência alemã) e assim por diante [para evitar mal-entendidos, a ‘ressurreição’ do negro no Brasil é um fato positivo, se for concebida em linguagem e prática ‘ecumênicas’, cf. a propósito nosso artigo ‘Preconceito, discriminação e ressurreição do negro no Brasil’. Observatório da Imprensa, n. 314, de 1º fev. 2005].

A negação da pressão ideológica pode dar-se também pela compreensão de sua natureza noutro conceito mais esclarecedor. O verdadeiro conceito na estrutura geral do texto de Flávio R. Kothe não é o de ‘ideologia’ mas o de ‘descolonização violenta’. Esse conceito foi elaborado por Frantz Fanon, num livro lúcido e autêntico, escrito no meio de uma guerra de libertação nacional contra colonizações agressivas, como foram a francesa e a portuguesa na África.

O cenário da formação da Nação brasileira através de um forte ‘instinto assimilatório’ (‘Instinto de nacionalidade’, como corretamente o qualificou Machado de Assis, referido em CI, 553) é falsificado por Kothe ao ser substituído pelo cenário de colonização/descolonização violenta, retratado por Frantz Fanon em Les damnés de la terre. Neste, compreende-se que o conceito de ideologia de Marx já não sirva, porque se trata de um universo realmente maniqueísta de guerra de libertação em que a luta política se resume à conquista de ‘espaços’ e à ‘desocupação’ de espaços. O colonizador francês não lançou mão de ideologias, escreveu Fanon com acerto, porque a colonização argelina era domínio de pura força.

Na primeira parte do livro, sobre a violência, Fanon escreve:

‘Os agentes do governo falam a linguagem da força pura’ (p.38); ‘o homem colonizado é um homem invejoso’ (p.39); ‘A destruição do mundo colonial é nada mais nada menos que a abolição de uma zona, o seu enterro nas profundezas da terra e sua expulsão do país’ (p.41); ‘O mundo colonial é um mundo Maniqueísta’ (p.41); ‘O colonizador faz história, sua vida é um épico, uma Odisséia (…) Diante dele (…levanta-se) um cenário quase inorgânico’ (assumo o risco pela re-tradução, porque minha fonte é versão em inglês. Frantz Fanon, The Wretched of the Earth. New York: Grove, a partir do original de 1961 Les damnés de la terre.)

O mundo colonial é maniqueísta: é a história contra a natureza. Mas Fanon mesmo vai além da ‘descolonização violenta’ e assume que o universo conceitual que descreve o maniqueísmo colonial não dá conta dos ‘problemas’ que surgem depois da descolonização, problemas lucidamente enfrentados pelo autor. Fanon sobrevive como um clássico do pensamento político em seu próprio direito, porque – mesmo construído com frases melodramáticas de luta, como é compreensível em tempo de guerra – é reflexivo, questionador. Pergunta o que é nacionalismo, independência para quê, o que virá depois? Não se furta a reconhecer que numa análise mais profunda dos problemas de formação de uma identidade nacional, de uma cultura, de uma ‘burguesia’ nacional progressista e não parasitária, etc., ‘é tudo muito difícil’ (p. 146). E mais, o maniqueísmo conceitual em que a política se resume à sobrevivência, ‘eles ou nós’, só funciona na guerra de libertação nacional. Depois, tem-se de aprender de novo uma linguagem política.

Flávio R. Kothe (como em geral os multiculturalistas ofensivos norte-americanos) recolhe d’Os desgraçados da terra só os pedaços melodramáticos: o Título, a Violência, algumas frases de efeito sobre a acumulação da riqueza do colonizador sobre o roubo ao colonizado. A retórica de Fanon, autêntica na guerra de libertação, torna-se inautêntica ao ser transportada para outro universo, já não maniqueísta, em que os próprios colonizados às vezes ‘não existem’ e precisam ser inventados. A retórica de Fanon é inautêntica na guerrilha étnica contra as identidades nacionais.

Segundo o discurso etnocrata, tal qual o universo de uma colonização agressiva nosso mundo conteria o Maniqueísmo essencial em que não há solução possível ou compromisso, salvo a ocupação espacial do território do inimigo. Nossa história tem, com certeza, muita semelhança com o processo de ‘invisibilidade’ dos non-WASP’s nos Estados Unidos, mas o discutível é se é legítimo que a reação contra essa invisibilidade deva ocorrer sob enclaves étnicos que cultivem a auto-vitimização, desenvolvendo

‘uma literatura compensatória [que] inspirada pelo ressentimento de grupo e orgulho freqüentemente sucumbe à tentação platônica das ‘mentiras nobres’ (…) Professor Kelleher chamou esse modo de percepção da história americana de ‘há-sempre-um-irlandês-no-fundo-fazendo-o-verdadeiro-serviço’ (there’s-always-an-Irishman-at-the-bottom-of-it-doing-the-real-work approach to American history, Arthur M. Schlesinger Jr. op. cit. p.25).

A obra de Kothe seria um caso típico de ‘literatura compensatória’. Não pretendo discutir as provas de opressão às identidades minoritárias, tanto por falta de conhecimento como por ser fato notório que alguma repressão existiu. O que se critica aqui é que a opressão é retirada do contexto histórico para tornar mais forte o apelo à criação da ‘identidade’ sobre o solo da auto-vitimização. Que tenha havido repressão ao uso da língua alemã e alguma ‘marginalização’ social (sob a neurose do quinta-coluna, de parte da Nação brasileira, ou sob uma crise de auto-estima, de parte do descendente de alemães, em face do militarismo e depois do nazismo) é incontestável, mas talvez essa repressão não tenha dado todo o tom da assimilação, também admitida – ou pelo menos tolerada – pelo imigrante. Pelo menos é o que o próprio Flávio R. Kothe permite concluir, quando refere que no início do século 20, no Rio Grande do Sul, eram traduzidos para o alemão folhetins de José de Alencar (CI, 455, rodapé).

O que se pode observar do movimento que é quase uma ‘invenção’ de uma identidade politicamente correta (no caso, o hifenizado teuto-brasileiro) é que ele se opera no argumento de Kothe sobre um sofisma: primeiro, se reconhece que a liberdade do imigrante teria sido apenas o reconhecimento da necessidade (sem refletir-se que este é, com efeito, um conceito bastante razoável de liberdade, principalmente no universo político) para que aos poucos até mesmo esse reconhecimento da necessidade qua liberdade vá desaparecendo, em frases de efeito como: ‘O imigrante tem em si o gesto do suicida: carrega a morte às costas’ (CI, 221), para dar ênfase à vitimização de quem não saiu de casa por vontade própria, e ainda pior, teve de submeter-se a um colonizador BLOC agressivo que o impediu de ser quem ele essencialmente era.

Talvez Machado de Assis, ao dizer que todo imigrante quer em primeiro lugar arranjar a vida (citação em CI, 502, de crônica em que Machado critica a proposta de Taunay de ‘naturalização em massa’ por não ser ‘coisa que se pareça com liberdade individual’) tenha captado com mais compreensão o problema ao exprimir uma experiência universal. Arranjar a vida é sobreviver. Possivelmente também há casos em que o imigrante chega à nova Casa magoado com a sua própria e de bom grado assumiria um novo Nome. Há sempre peculiaridades, dependendo de o objetivo primário do imigrante ser o estabelecimento definitivo no novo território ou apenas juntar dinheiro e retornar. Seja como for, talvez seja válida uma analogia mais contemporânea: não precisamos condenar os imigrantes que desejam fortemente a assimilação no novo território, como os criciumenses ou valadarenses que escolhem uma nova vida nos Estados Unidos, orgulham-se de seus progressos em ‘accent reduction’ ou de um filho que passa a integrar forças militares ‘nacionais’ daquele país. Mas seria algo próximo do ridículo que gerações futuras resolvessem impor aos norte-americanos uma espécie de ‘genocídio espiritual’ da fração brasileiro-americana. Comentando as ‘várias faces do multiculturalismo’, Heller acentua, tomando como exemplo a imigração turca na Alemanha de hoje que:

‘Não é necessário que um grupo imigrante escolha a tradição germânica ou austríaca como sua, mas apenas o multiculturalismo ofensivo negará a importância de adquirir versatilidade nessa tradição, de sorte a compreender as alusões, as conotações e entrelinhas, as ‘citações sem rodapés’ que distinguem uma cultura rica’. (‘As várias faces do multiculturalismo, referido adiante).

[Não temos espaço para reproduzir todo o argumento interessante de Heller, que traz alguma luz sobre o super-ideologizado tema do multicultiralismo, desconstruindo o termo ‘cultura’ (para distinguir três camadas de cultura, uma da vida cotidiana, ou antropológica, a da ‘alta cultura’ e a do ‘discurso cultural’ e dois tipos de multiculturalismo, um ofensivo que não admite a liberdade de múltiplas identidades, e outro protetivo, que se funda exatamente nessa liberdade) de modo que remetemos o leitor ao texto da conferência ‘As várias faces do multiculturalismo’, que a autora gentilmente permitiu fosse traduzido e publicado em revista não-comercial, e deve estar disponível em breve na edição de nº 14 do Boletim científico da Escola Superior do Ministério Público da União, em versão eletrônica no endereço.

Segundo, dentre inúmeros problemas, é que Fanon não pode ser tomado como ‘base teórica’ de toda colonização, porque não existe uma Essência colonial (nem o autor a postula, ele fala do caso concreto das colonizações na África). Não se precisaria de um Gilberto Freyre (mas sempre seria bom dar uma olhada no mestre) para intuir que a colonização agressiva seguida de descolonização violenta (e recente) da África cria um universo de problemas sensivelmente diverso do problema brasileiro ou norte-americano, assim como há distinções que não são apenas sutilezas entre as Américas portuguesa, hispânica e inglesa. Para ficar num detalhe relevante, nas três Américas apenas o Brasil teve uma ‘família real’ relativamente despreocupada com a nossa ‘imagem lá fora’, ao passo que foi a República, quando nosso destino teoricamente já estava em ‘nossas mãos’, quem deu realce ao complexo de inferioridade com políticas de ‘branqueamento’ mais agressivas que as do Império.

Dito isto, embora não esgote o assunto, temos por devidamente ‘substituído’ o conceito de ideologia. Veremos adiante uma tradução possível – talvez mais esclarecedora – do que Flávio R. Kothe denomina de ‘gesto semântico da estrutura profunda’.

4. Dessublimação repressiva

A literatura nacional é mais que ideologia, ela é um verdadeiro ‘lieu de mémoire‘ (Pierre Nora), porque preserva a memória coletiva, não só o que foi lembrado mas também os traumas do que foi coletivamente esquecido. Na literatura estamos diante de uma sublimação que contém mais fantasia e rebeldia que o universo do conhecimento histórico. É correta a formulação do autor a respeito do cânone: ‘O cânone torna-se uma via áurea de acesso ao inconsciente da história, guardando, porém, mais traços de repressão das tramas e dos traumas do que sua memória’ (CI, 55), ainda que o que diga depois invalide essa formulação.

A categoria do ‘gesto semântico da estrutura profunda’, apresentada em 45 páginas no Cânone colonial, não diz nada além da mutação, já vista, do conceito de ideologia, para uso e abuso de um multiculturalismo ofensivo e formação de um enclave étnico sobre a auto-vitimização e a agressividade intimidatória em relação ao (suposto) inimigo BLOC. Mas se nos interessamos pela função civilizatória da literatura como uma sublimação social, ela torna-se mais interessante porque pode ser compreendida como ‘dessublimação repressiva’. Em realidade essa busca de uma verdade-verdadeira desemboca na abolição das sublimações culturais, funcionando assim como um poderoso estímulo ao surgimento de instintos agressivos na superfície social.

É possível conceber que vivemos em três dimensões distintas. Uma esfera da vida cotidiana (onde está a dimensão meramente antropológica de cultura, culinárias, penteados, roupas, modo de falar), uma esfera de instituições (políticas, principalmente, mas também de ensino) e uma esfera da cultura que congrega arte, religião e filosofia (que seriam no vocabulário hegeliano o domínio do Espírito Absoluto). A cultura é alienação da existência, mas alienação em liberdade. É sublimação, para usarmos o vocabulário freudiano. Kothe, ao que parece preocupado com a essência da arte, afirma que ‘nem toda sublimação é arte’ (CI, 168) e isso está correto, só que dizer isso e não dizer nada dá no mesmo. Nem toda sublimação é arte, mas toda arte é sublimação. Com certeza Freud mesmo anotou que há erotismos diversos sublimados de formas diversas, mas a arte é a sublimação mais perfeita. Quando se diz que toda arte é sublimação põe-se em relevo a função civilizatória das sublimações, através do poder construtivo de Eros, e não está em jogo o ‘metro’ de valor da obra de arte individual.

O que nos interessa, porém, no exame da ideologia da correção política é uma formulação que vai um pouco além de Freud e elabora o poder autoritário da dessublimação repressiva. Quem sugeriu – até mesmo no título – o reducionismo dessa aparente híper-emancipação foi Herbert Marcuse, em seu One-dimensional Man (O Homem unidimensional).

A análise da dessublimação repressiva, de Marcuse, será apropriada aqui, talvez com algumas liberdades. O que Flávio R. Kothe faz em todo o seu projeto, e que chama de ‘gesto semântico da estrutura profunda’ não é nada mais nada menos que abolir a idéia de que a obra de arte seja algo ‘sagrado’, porque já aboliu também a idéia de que as religiões verdadeiras sejam sagradas. Estas permanecem na dessacralizada imaginação do ‘ópio das massas’, assim como as artes continuam sendo apenas o instrumento cultural da dominação colonial. Para ingressar no cânone, repete o autor a toda hora, os autores devem ter feito algo errado. Toda a graça de diferentes interpretações dos textos literários desaparece porque eles são agora apenas ‘fatos’ ou ‘casos’ que comprovam o domínio ‘natural’ de uma elite sobre os excluídos.

5. Intervalo lúdico

Não sendo possível citar todas as ‘provas’ do argumento de Flávio R. Kothe, contentemo-nos com alguns exemplos de definições ‘profundamente verdadeiras’: 1. os românticos brasileiros, em geral, são babacas, infantilóides, meninos de famílias oligárquicas que faziam estudantadas, passeando pela Europa e fingindo estarem no exílio, com saudades da mamadeira; cospem no prato em que comem, porque seriam ingratos com a ‘mãe-Europa’; pirateiam poemas de Goethe e Heine e não contam pra ninguém (embora as epígrafes digam que se trata de re-elaboração poética, perfeitamente legítima, M.A); são, enfim, ‘bastante ignorantes’, adolescentes com problemas para ‘desembrulhar o pirulito’ (CI, 406). ‘A vocação de Gonçalves Dias era ser guia turístico nas praias da Bahia e do Nordeste’ (CI, 163). 2. Machado e Alencar são encarnações perfeitas do BLOC, com o duplo pecado para o primeiro de ser covarde e imoral parvenu, traidor de sua condição de pobre e mulato. Está sempre perdendo a oportunidade de escrever um grande romance, porque não divide seus personagens conforme a real densidade demográfica do país e nem apresenta as minorias com aspectos positivos. É uma espécie de ‘ação afirmativa’ em retrospectiva que se empurra ao pobre Machado de Assis. 3. Junqueira Freire é também adolescente que ‘manifesta desespero por se ver traído e abandonado por um ‘amiguinho’: com fortes traços de homossexualismo enrustido, a dar um pulinho e um grito histérico a cada ponto de exclamação’ (CI, 140). Aqui já se adianta alguma coisa do período republicano, porque não há nada de novo debaixo do sol. Junqueira Freire ‘É como Guimarães Rosa, que aparenta fazer um romance corajoso sobre homossexualismo entre machões do cerrado para acabar concluindo com um normal amorzinho de macho e fêmea, assim como discute por centenas de páginas Deus e o Diabo para chegar à banal conclusão de que o que existe é homem humano (que o leitor já devia saber antes de perder tempo com a leitura)’ (CI, 140). E por aí vai.

Dá vontade de não tomar mais o tempo do nosso leitor, mas consideremos só por hipótese que ele esteja um pouco ‘desocupado’. É difícil conter-se. Veja-se, por exemplo, a ‘verdade profunda’ de Drummond: era ‘funcionário de confiança do fascismo’, um BLOC autêntico: logo ele que formulou tão sabiamente – embora eu já não ache o jornal em que li a frase, e na biografia dele Os Sapatos de Orfeu ela não esteja, que é muito diferente trabalhar para uma ditadura e trabalhar sob uma ditadura. Sua poesia, que dizem ser ‘maior’, irrita Flávio R. Kothe, ‘que não ama ninguém’. Conforme o ‘gesto semântico da estrutura profunda’, Drummond é apenas alguém que vive a ‘repetir que há uma pedra no caminho… e outros versos igualmente banais’ (CI, 258/9). Para encerrar, sobra para Clarice Lispector, no ‘gesto semântico da estrutura profunda’, ser autora da estória de uma ‘boba nordestina’, incluída no cânone como membro do PRC (Partido de Renovação do Cânone), porque é de um ‘esquerdismo ridículo e infantil supor que ricos e imperialistas tenham por esporte predileto caçar nordestinas pobres para atropelá-las nas ruas do Rio’. Assim, conclui-se profundamente que: ‘De um modo ou de outro o sistema consolida a sua estreiteza. Serve no cânone o que ao cânone serve.’ (CI, 536/7).

Não se pense que maldosamente foram ‘recortados’ apenas trechos da obra que seriam como aquele ‘intervalo lúdico’ numa conferência séria. O argumento é ‘todo assim’, do início até a última página.

Agora se nos for permitido também um intervalo lúdico diríamos que o próximo passo aqui seria a ‘dança dos armários’. Ou o ‘escrutínio da biblioteca’, retratatado por Cervantes como uma crítica à Inquisição, gesto autoritário diante do qual a loucura de Quixote se apresentava como sanidade. Ainda teremos de re-catalogar o patrimônio literário conforme o ‘gesto semântico da estrutura profunda’. Thomas Mann vai para a prateleira gay? Há divergências, porque alguns no Anti-cânone querem uma nova ‘categoria’, a do Armário. Divide-se o acervo, Morte em Veneza vai para a literatura gay, A Montanha Mágica vai para o Armário… Bem, para a literatura gay vai também o Simpósio de Platão, porque aquela conversa de ‘belo Alcibíades’, vocês sabem como é… Terminaremos levando para a estante Armário os insuspeitos Machado de Assis e Joaquim Nabuco, o belo, já que se sugeriu que a amizade deles era algo como a de Sócrates e Alcibíades. Aonde se chega exatamente com isso, senão na superfície rasa da ‘hiper-emancipação’?

Fechando esse intervalo, resta o consolo de que pelo menos Flávio R. Kothe reconhece que sua missão é impossível. Não adianta tentar construir uma literatura pelas regras ideológicas da ‘ação afirmativa’.

‘De nada adiantaria querer reescrever tais histórias de uma perspectiva que as superasse: elas não seriam publicadas, pois público e editores estão presos à estreiteza do sistema’ (CI, 537).

6. Imaginação unidimensional

Voltemos ao conceito verdadeiro. O que Flávio R. Kothe faz com o ‘gesto semântico da estrutura profunda’ e outras categorias enfeitadas de falsa erudição filosófica, em repetições intermináveis nas ‘Questões heurísticas’ do Cânone colonial, é dessublimar todas as sublimações culturais. Retira-as do local sagrado onde elas devem estar por direito próprio, pelo menos para pessoas ‘tridimensionais’.

A dessublimação repressiva operada pela crítica que pretende agarrar a ‘verdade profunda’ da obra de arte é mais autoritária que a repressão inicial dos instintos, contida em toda sublimação. É uma forma nova de cultura e dominação que, tal como as sublimações culturais (artísticas e religiosas), canaliza energias que formariam o Princípio de Prazer, mas essa nova cultura não preserva nenhuma autonomia. Ela aplaina as três dimensões da vida numa única superfície (muito rasa, embora se imagine ‘profunda’) onde reina e comanda a personalidade ‘unidimensional’. Diante desta última, ‘os instintos e objetivos sublimados contêm mais desvio, mais liberdade e mais recusa aos tabus sociais’ (Herbert Marcuse, One-dimensional man – Studies in the ideology of advanced industrial society. 2º ed. [1º ed.1964], Boston: Beacon, 1991, p. 72).

Esse ‘gesto semântico da estrutura profunda’ se parece com uma ‘híper-emancipação’ mas no que é realmente bem sucedido é no empobrecimento geral de muitas coisas que têm graça na vida. Faz isso principalmente ‘des-erotizando’ muitas dimensões da vida. Imaginando que vai além, anda para trás. Imaginando que liberta, reprime em dobro. Imaginando que assenta as bases da verdadeira democracia, as destrói, porque uma democracia só pode ser sustentada em sublimações sociais, entre elas o cuidado e a preservação da alta cultura (nacional, inclusive). Essa dessublimação, afirma Marcuse, embora referindo-se a outro contexto, ‘parece ser um fator vital na formação da personalidade autoritária do nosso tempo’ (Marcuse, p. 74). Como observam Heller & Fehér, não se precisa ser ‘de direita’ para manifestar preocupação com uma ‘híper-emancipação’ em que a ‘rede de ordenamentos, tabus e travas pode destruir-se até o ponto em que não reste nada ‘contra que’ o Ego possa definir-se a si mesmo’ (Biopolítica, op. cit. p. 78).

A sublimação cultural reconhece e aceita as barreiras sociais para a gratificação dos instintos, mas também transgride essas barreiras. A dessublimação repressiva é socialmente uma perversão cultural que pode chegar ao resultado assustador de uma sociedade regulada inteiramente pelo inconsciente, por instintos agressivos. Ela, à primeira vista, seria algo como a verdadeira emancipação, mas de perto ela se parece com o ‘castelo’ do último filme de Stanley Kubrick (Eyes wide shut, ou De olhos bem fechados). A híper-emancipação, mais fácil, tem uma tendência a criar na sociedade uma forte ‘reação’, através das válvulas de escape do fundamentalismo e dos narcóticos pesados, contra a emancipação verdadeira, sempre um pouco mais difícil.

A dessublimação repressiva conserva a infelicidade da renúncia ao prazer, e essa infelicidade se presta bem a ser manipulada politicamente: ‘Sem espaço para desenvolvimento consciente, ela pode tornar-se um reservatório instintivo para uma nova forma fascista de viver e morrer’ (Marcuse, op. cit. 76). Sua imaginação é unidimensional, e ela cria pessoas unidimensionais, aparentemente seguras de si na superfície, mas insatisfeitas e perigosamente infelizes, porque a felicidade que obtêm é quase inteiramente a que satisfaz necessidades narcisistas.

A esquerda do mundo pós-moderno funciona sobre essa imaginação unidimensional e maniqueísta, traduzida no Anti-cânone quando imagina que revela verdades profundas, as verdades-verdadeiras de toda a dominação histórica passada e presente. Simplórias, essas verdades giram em torno a determinações sócio-econômicas, absolutizando o papel social como suposta ‘essência’ do ator, e instintivas, mas reduzidas estas apenas à sexualidade, numa dessublimação repressiva que anda junto a uma des-erotização do mundo. É quase como se exigisse que o erótico desse lugar ao pornográfico para que então se veja realmente a ‘verdade-verdadeira’. É aqui que se compreende como Flávio R. Kothe situa a ‘verdade’ do romantismo indianista brasileiro no poema obsceno ‘O elixir do Pajé’ e lamenta que este poema ainda não tenha substituído os versos de Casimiro de Abreu, ‘Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida’, no currículo do ensino fundamental, se é que ainda estão lá.

A imaginação unidimensional desse movimento de dessublimação cultiva uma suposta rebeldia ao fazer um culto anti-liberal e comunitário das identidades étnicas e da diferença, apostando num novo tribalismo, e incitando, de modo maniqueísta, à ‘descolonização violenta’ de um mundo em que há repressões e dominações, sim, mas permeadas de nuanças, meios-tons e sutilezas tais em que é difícil divisar o amigo do inimigo. Essa dificuldade não é meramente tática, ela indica que só identificar o ‘inimigo’ já não é suficiente para que se instaure a democracia.

O mais sintomático de sua imaginação unidimensional é perceber como o ‘esquerdismo’ etnocrata está absolutamente à vontade no universo da cultura de massas e da mega-store. Para alguns autores, tudo estará bem se seus livros forem encontrados na gôndola do Supermercado, ao lado de um Michael Moore ou de um Tárik Ali.

Talvez esteja nessa imaginação unidimensional a base de todo fundamentalismo de hoje, diante do qual é possível que Agnes Heller tenha razão ao identificar nas religiões verdadeiras o potencial esclarecedor (aufklärisch) que antes coube à ciência (Worin haben sich Platz und Funktion der Religion geändert? …Ihre Funktion ist in erster Linie kritisch, sozusagen aufklärisch. Agnes Heller, Die Auferstehung des jüdischen Jesus. Aus dem Ungarishen von Christina Kunze. Berlin-Wien: Philo, 2002. p.79).

Em síntese, na imaginação unidimensional luta-se por espaço para sobrevivência, e esse espaço só pode ser conquistado pela expulsão do outro (inimigo), pelo desprezo às sublimações culturais e pela substituição do poder de Eros por uma força que não chega a ser o poder contrário de Thanatos, mas uma neurose coletiva de feitio narcisista. Essa neurose, como fenômeno de massas, é altamente contagiosa, e suas palavras de ordem altamente violentas. Ela vale-se do maniqueísmo da descolonização violenta (Fanon) para impor à luta política dos excluídos soluções do tipo: seremos nós ou eles, ou todos serão iguais ou ninguém sobreviverá.

7. Do dever de amar…

Flávio R. Kothe insurge-se contra o ‘cânone’ da literatura, ao fundo, e contra o cânone da crítica, na superfície. Antônio Candido deve descer do ‘pódio’ da crítica, porque foi apenas mais um exegeta canonizante, ingênuo ou mau-caráter (mais um BLOC, afinal) quando exprimiu o ideário do Partido do Cânone: ‘temos o dever de amar a nossa literatura porque ela nos expressa’.

Cesse o que a musa antiga canta, que um valor mais alto se alevanta. Flávio R. Kothe comanda agora que:

‘No cânone brasileiro não se tem a verdadeira história do índio, do negro, do ádvena português, do imigrante, etc. Não se tem, portanto a verdadeira história do país. O cânone não expressa nenhum deles; falsifica-os todos. Já por isso não pode ser amado.’ (CI, 594).

O que segue serão apenas breves notas de rodapé ao mandamento de Antonio Candido, não por acaso formulado como um dever, porque é desdobramento de um comando sagrado: honrar pai e mãe. O amor não é incompatível com o dever (a propósito, foram recentemente publicados em português alguns discursos edificantes de Sören Kierkegaard, Obras do amor, nos quais há um belo discurso sobre o ‘dever de amar’). E a Nação é uma Existência.

De modo radical, Kothe nega a Nação no passado, no presente e no futuro. A identidade nacional representaria apenas a mentira de superfície de uma outra mentira de fundo, uma Nação ‘que não existia, não existe e sequer deveria ser alcançada como tal’ (CI, 72), até porque, segundo o autor:

‘O conceito de ‘nação’ está sendo superado pela internacionalização da economia, da cultura e dos contatos físicos. Mais de 90% dos povos são constituídos por mais de uma etnia [?]’ (CI, 235, colchetes acrescentados).

O primeiro equívoco sério de Flávio R. Kothe (aqui tomado como paradigma de equívocos da moda) é a premissa de inexistência da Nação, de onde segue a segunda premissa falsa de inexistência de literaturas nacionais. Nada mais errado. Quando as ideologias conseguem fazer as sociedades adoecerem de neuroses coletivas, é o ‘instinto nacional’ que lhes permite encontrar forças para resistir. Sobre isso, deixou-nos um belo testemunho o Papa João Paulo II, ao falar da Nação polonesa e de sua resistência ao nazismo e ao stalinismo. Concluiu que:

‘Patriotismo significa amor a tudo o que faz parte da pátria: a sua história, as suas tradições, a sua língua, a sua própria configuração natural; um tal amor estende-se também às obras dos nossos concidadãos e aos frutos do seu gênio. Qualquer perigo que ameace este grande bem é a ocasião para testar um tal amor… A pátria é, portanto, uma grande realidade’ (João Paulo II, Identidade e memória – Colóquios na transição do milênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. pp. 78-9).

A redução das literaturas nacionais a ‘nativismos’ também é uma premissa errada, assim como a idéia de que seja possível existir uma literatura brasileira em diversas línguas, entre elas as dos ‘excluídos’ (alemão, polonês, japonês). Em realidade só existe uma literatura brasileira escrita em português, e obras escritas noutras línguas serão curiosidades ou documentos historiográficos. Literatura é veículo de congregação da identidade nacional. A propósito, Heinrich Heine, que era poeta alemão e não o cosmopolista que paira acima dos problemas locais como equivocadamente o considerou Kothe, deixou isso claro quando dizia que o ‘começo’ da literatura alemã não estava nalguns românticos, mas em Lutero, que foi quem deu à língua alemã dimensão poética num texto sagrado que se tornou de domínio popular:

‘Martinho Lutero deu-nos não só a liberdade de movimentos, ele nos deu também os meios de locomoção. Ao espírito ele deu um corpo. Ele deu a palavra ao pensamento, ele criou a língua alemã. Isso ele fez ao traduzir a Bíblia’ (Heinrich Heine, Religion and Philosophy in Germany. Tr. John Snodgrass. Boston: Beacon, 1959. p. 53).

Agnes Heller observou, no mesmo sentido, que:

‘Irving Howe costumava dizer, e com razão, que não existe uma literatura judeo-americana escrita em inglês, que existe apenas literatura americana que ocasionalmente conta estórias de pessoas judias. Somente uma literatura escrita em iídiche pode ser denominada autenticamente uma literatura judeo-americana’ (Nota de rodapé, em ‘As várias faces do multiculturalismo’, já referido).

A literatura preserva a língua nacional e a língua nacional é seu ‘meio’ por excelência. É nesse sentido que a literatura brasileira é um ‘ramo’ despregado da ‘árvore’ da literatura portuguesa, mesmo que as altas culturas francesa, alemã e russa tenham sido mais importantes para a sua formação do que a própria literatura de origem. Uma literatura em alemão que fale da experiência dos imigrantes pode ser considerada uma literatura teuto-brasileira, mas não parte essencial da literatura brasileira para ‘ocupar’ espaços na formação escolar que obedece, como deve obedecer, a um projeto de Nação brasileira. Uma tal literatura pode ser veículo emocional importante para a identidade dos brasileiros de ascendência alemã, contanto que eles tenham a liberdade, também, de optarem pela identidade nacional, e considerarem esse corpus literário como uma historiografia ou curiosidade. É sempre relevante lembrar a natureza e os graus de opressão inicial para a assimilação, mas a partir do fato da permanência no território é perfeitamente legítimo que os descendentes de imigrantes tenham direito de assimilar-se a uma identidade nacional brasileira, direito que sempre deve ser tão legítimo quanto o caminho de volta, de realce da diferença ou dissimilação, sem prejuízo de que também adquiram ‘versatilidade’ na cultura nacional.

As confusões lógicas do autor, porém, têm o mérito de suscitar reflexões sobre a literatura brasileira como literatura nacional. Refletindo sobre o tema, arriscamos um raciocínio de feitio quase hegeliano, segundo o qual nem toda a literatura brasileira é literatura nacional. A literatura brasileira qua literatura nacional seria aquela que se forja sobre o ‘instinto de nacionalidade’, como uma reflexão obsessiva em torno ao problema de formação de uma identidade nacional, e enquanto tal essa literatura é uma história encerrada que faz parte de nossa modernidade.

Sem precisarmos definir o que seja a obra de arte, seguiremos raciocinando sobre um conceito simbólico que nos interessa por manter a cultura na ‘terceira dimensão’ da existência (como objeto sagrado, escrito pelas ‘veias do Espírito Absoluto’). Simone Weil disse que a Ilíada era ‘um milagre’ (The Iliad, or The Poem of Force. Trad. do francês e edição de Pendke Hill, 1976. p.33). Depois do maior milagre, seríamos forçados a reconhecer apenas milagrinhos de santos menores. Ainda assim, não há necessidade alguma de comparar milagreiros geniais, como Homero, Dante, Cervantes ou Shakespeare para definir se existem ou não existem literaturas nacionais. A Nação como tal existe, e literaturas nacionais existem em todo lugar, com uma ligação emocional importante para a identidade nacional de cada país. É uma preocupação irrelevante, senão colonizada mesmo, a de um eventual ‘lugar de destaque’ para a ‘prata da casa’ no cenário internacional (que não é equivalente ao conceito de universalidade). Imaginemos apenas que existem no Brasil poesia e prosa que são verdadeiros milagrinhos. Se eles existem, o ensino dessa literatura desde o ensino fundamental – como encarnação emocional da língua portuguesa no Brasil – constitui um dever. Gostem ou não os etnocratas radicais, quem nasce no Brasil tem o direito de identificar-se com a Nação, e quem quer que se identifique com a Nação tem – como escreveu Candido – o dever de amar a nossa literatura porque ela nos expressa. Ela contém reflexões sobre perguntas que nos interessam qua Nação, mais do que quaisquer outras literaturas, ainda que maiores. O que se precisa, talvez, é de mirá-la com amor. Como escreve Heller,

‘Obras de arte são inexauríveis em significados, se homens e mulheres as visitam pelos seus significados; são amáveis se homens e mulheres as amam pelo que elas são, e somente homens e mulheres tridimensionais procuram sentido em obras de arte e as amam pelo que elas são’ [daí resulta que elas podem deixar de existir se não houver mais esse tipo de pessoas, porque] … ‘Não há interpretandum sem intérpretes’ (A. Heller, An ethics of personality, Blackwell, 1996. p. 274).

Flávio R. Kothe propõe explicitamente como método de procura da ‘verdade-verdadeira’, porém: ‘A leitura desconfiada, que decifra o texto’ [que seria] ‘exatamente o contrário daquela que a exegese canonizante pratica com um temor reverencial que lhe cega o espírito’ (CI, 268). Acerta em parte o crítico sem amor, porque de fato existe no Brasil um certo autoritarismo de discursos louvaminheiros e inautênticos. Mas não se deve reduzir o discurso cultural a decifrar o autoritário. Porque aí a obra de arte é tomada só como um fato social, ela deixa de ser um interpretandum. Por vezes ela permanecerá como um objeto em olímpica mudez, e pode ocorrer que a hermenêutica de suspeição também não decifre nada da verdade, reproduzindo a imagem do leitor no espelho.

Nacionalismo não é nativismo e amor à pátria não é narcisismo. A democracia precisa de uma pitada de ilustração e uma pitada de romantismo. Este último cultivará o ‘amor à pátria’ sem o qual não se concebe uma democracia, nem uma abertura autêntica para o exterior. A entidade chamada Nação é uma ‘Existência’ e todo pensamento moderno que se preza parte das existências para a essência, e não mais o contrário, que era o traço do pensamento metafísico. Não existe um cidadão do mundo; faliram as Internacionais dos homens, também porque eram exageros de Ilustração, que desprezavam uma existência nacional do mesmo modo como desprezaram as religiões. Mesmo no entoar do hino nacional no ensino fundamental cultiva-se a idéia de que temos um espaço pelo qual somos responsáveis: nós somos responsáveis por ele e mais ninguém. Se ele vai ser o Paraíso ou o Inferno, isso é com a gente, não é culpa dos outros, nem os que estão no longínquo futuro nem os de um passado mítico. Literaturas nacionais existem. Existem poetas nacionais, já porque a poesia é a mais intraduzível das artes. Poesia traduzida perde muito da ligação emocional com a língua e com a terra que ela expressa. Heine, a propósito, ao contrário do que supõe Kothe, foi um patriota, e, sobretudo, um poeta alemão. Escreveu Habermas a propósito:

‘Seu amor à pátria constituía uma ferida que Heine tentava esconder do público’ (Jürgen Habermas, ‘Heinrich Heine e o papel do intelectual na Alemanha’, em Diagnósticos do tempo – seis ensaios. Trad. Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. p. 49).

Um tema fascinante na literatura brasileira é o romantismo da ‘Casa’, que desde Gonçalves Dias vai sendo constantemente re-elaborado, não só na paródia, mas na reconstrução poética, intrigante, interrogativa, como na ‘Canção do Exílio’ de um Murilo Mendes, que fala da minha terra onde os ‘sururus em família têm por testemunha a Gioconda’, ou já debaixo da ditadura militar, com uma última canção do exílio, de um Chico Buarque de Hollanda, que fala que vai voltar para o seu lugar, para ‘deitar à sombra de uma palmeira que já não há/ colher a flor que já não dá’. Mesmo que fosse verdade-verdadeira que todos esses românticos não passassem de ‘adolescentes infantilóides com problemas para desembrulhar o pirulito’ (Flávio R. Kothe) nem por isso deveriam ser banidos da escola, porque não é justo privar as novas gerações das referências e alusões que tornam rica uma cultura, e cuja entrega para as gerações seguintes forma o dever de tradição (no sentido de entrega do patrimônio). Esse romantismo nem é feito só de exaltações de ‘casa’ mas também do Paraíso que devia ser, e aqui entra na história a ‘Pasárgada’ de Bandeira.

A literatura nacional exerce na escola um papel fundamental, porque ensina o mandamento sagrado de ‘honrar pai e mãe’, isto é, cuidado, conservação, preservação da língua e preferencialmente de sua gramática, até porque a liberdade de criar com a palavra não dispensa o conhecê-la bem. É preciso contato com a literatura canônica nacional e com uma antologia poética entremeada no livro-texto de português, como apresentação viva da (boa) linguagem. É preciso sabê-la cedo, quando a memória capta todas as emoções presentes na literatura, pois mais fortemente se terá um reservatório emocional para um futuro cidadão solidário e de coragem cívica. Nossos poetas, é preciso sabê-los de cor, com o coração (como se diz em inglês by heart, trocadilho observado por Kothe, só que sem perceber o que ele tem de positivo).

É legítimo tentar outra via além da hermenêutica (infeliz) de suspeição, é legítimo ser mais autêntico, é legítimo se permitir amar. A história da literatura brasileira, como toda história, contém algumas obras mais ‘datadas’ e de interesse historiográfico, mas nem por isso se resumiria a uma fábrica de BLOC’s. Pode-se mirá-la como a um pequeno milagre. É legítimo imaginar que um grupo de jovens de 20 e poucos anos andava pela Europa – apropriando-se criativamente de inteligências e altas culturas onde as encontrassem – e começava uma história: ‘Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá…’

A metáfora da ‘Casa’ é interessante. Assumir uma nacionalidade é assumir uma casa, tomar conta dela, para o bônus e para o ônus (tem que assumir as contas, tem que assumir responsabilidade pelo futuro). Parece razoável conceber o começo da história no romantismo. Quanto ao fim, é sempre discutível. Mas, partindo-se do pressuposto de que uma alta cultura nacional só pode nascer de uma relação orgânica e quase ingênua (na primeira ingenuidade) com as fontes de cultura autenticamente popular (folk) a literatura brasileira como literatura nacional já se teria encerrado com Clarice Lispector e a re-elaboração do tema nacional da ‘antropologia’ do brasileiro, para ficarmos com um marco representativo.

A Hora da Estrela, que é para a hermenêutica de suspeição apenas a estória de uma ‘boba nordestina’, para quem tenha deixado as ideologias de lado pode ser um pequeno acervo de reflexões sobre a ‘identidade nacional’, uma conversa dentro de uma tradição brasileira, desde os românticos (onde está nossa casa, quem somos nós afinal?), e através de Euclides da Cunha (ainda que este negue a existência de um ‘tipo antropológico brasileiro’, para depois inscrever na memória coletiva essa poderosa frase ‘o sertanejo é, antes de tudo, um forte’) e Gilberto Freyre (somos mais dionisíacos que apolíneos? Seríamos uma ‘raça’ com vocação pacífica que pode ser exemplar para o mundo?). Essa reflexão sobre nossa identidade nacional começa romântica, segue um rumo mais ilustrado, e encena um grande final em tom patético (mas, sobretudo esperançoso, como é a verdadeira natureza do trágico) com Clarice Lispector e sua formulação de que não somos nada disso, mas ‘uma raça anã teimosa que um dia vai reivindicar o direito ao grito’.

Com a última das canções do exílio, e a réplica de Clarice Lispector a Euclides da Cunha, a literatura brasileira qua literatura nacional pode ser considerada uma história encerrada. Isso evidentemente não significa que bons autores não sigam escrevendo poemas ou bons romances, mas apenas que a partir desse marco representativo, já podemos começar a pensar numa ‘pós-história’. A reflexão obsessiva em torno à formação da identidade nacional é típica de nossa ‘modernidade’. A pós-história é marcada também pelo falecimento de uma cultura brasileira da diferença, sufocada pela cultura de massas. Uma das últimas manifestações paradigmáticas de cultura popular, o carnaval do Rio, faleceu em 2005, quando a Velha Guarda da Portela, dispensada por um problema de timing, de fato desfilou, mas em cortejo fúnebre que simbolizou o funeral do carnaval. Definitivamente venceu a idéia de que a Sapucaí é só um set de filmagens para shows de realidade. Observador atento, Dines anotou:

‘A mídia é o espelho da descarnavalização do carnaval. É a causa e efeito. A eletrônica injetou-lhe doses maciças de showbiz com apenas alguns dos seus atributos, mas todos os seus efeitos perversos – o close-up, o branqueamento, o vedetismo, a comercialização e o fim do espírito satírico.’ (Alberto Dines, Carnaval 2005. A ‘descarnavalização’ na mídia. Observatório da Imprensa, 8 de fevereiro de 2005). 

O interesse contemporâneo pelo gênero biografia (embora usado freqüentemente de modo inautêntico) e pela ‘história verídica’ nos livros ou no cinema é parte de uma mesma conversa: o esgotamento de instituições como repositórios naturais de ‘memória coletiva’. Hoje cada um de nós é seu próprio arquivista (guardamos imagens em excesso, e o excesso consome a memória). Há um ‘boom’ de pesquisa particular em todo lugar, mas para a busca de genealogias, que terminam por dizer ‘alô’ para um ‘ramo’ de nossa árvore, com o qual não há nenhuma espécie de ‘reconhecimento’, salvo a nostalgia de que instituições que guardavam naturalmente a memória coletiva se exauriram. Segundo Pierre Nora, aqui há uma mudança de sensibilidade que põe a memória no lugar da história. Quando ‘estórias reais oferecem a profundidade que falta a uma época carente de verdadeiros romances, a memória é conduzida ao centro da história: é assim que velamos a perda da literatura’ (Pierre Nora, Les Lieux de mémoire, edição em inglês: Realms of Memory – the construction of the French past. Vol. 1, p. 20). A perda, retratada por Nora, com certeza não é o fim da literatura, mas o encerramento de uma literatura nacional que tinha lugar de honra na memória coletiva e na reflexão sobre uma identidade nacional. Algo parecido pode ter ocorrido no Brasil. Talvez o pós-moderno seja exatamente o sentimento que nasce da convicção de que o mundo está sincronizado e olha com melancolia para tudo que vai sendo lenta mas progressivamente devorado pela imaginação da cultura de massas: a absoluta mesmice dos aeroportos internacionais, com os mesmos McDonald’s, mega-stores e free-shops.

8. Cânone universal x cânone nacional

Um dos aspectos positivos, contudo, no manifesto de Flávio R. Kothe seria a proposta de introdução de um cânone universal no sistema nacional de ensino. Todo democrata ilustrado gostaria de abrir espaço para meia dúzia de clássicos desde o ensino fundamental. Era o sonho de Lukács, algo como Shakespeare e Goethe para os adultos, Andersen para as crianças. Mas nossa realidade nem é mais a do ensino fundamental a que se reporta Kothe, quando se aprendia ‘de cor’ o ‘I-Juca Pirama’ ou ‘O navio negreiro’ (obviamente, o de Castro Alves, não o de Heinrich Heine). Hoje talvez nem mais as Primaveras de Casimiro ganhem espaço no ensino fundamental, e nas apresentações para os pais os professores dizem-nos algo como ‘bem, nós já trabalhamos em sala o problema do hino nacional, não vamos tomar o tempo dos pais com isso’, e então surgem as apresentações com a trilha sonora de rodeios da novela das oito da Globo. Talvez fosse mais honesto propor o ‘segundo melhor caminho’. Sendo por ora impossível sonhar o sonho de Lukács, deixemos os nossos clássicos menores na escola, abrindo a Porta da Esperança de que com um pouco de romantismo no coração um dia, quem sabe, o aluno se interesse também pelos clássicos ‘maiores’. A história também é feita de pequenos milagres. O que se precisa é fechar a porta da escola para o Supermercado – desde o ensino fundamental até a pós-graduação.

A adoção do cânone universal não chega a ser uma idéia ruim. Mas, desde logo, não se precisa negar a Existência (da Nação ou da literatura brasileira qua literatura nacional) para uma proposta didática tão simples como a adoção de meia dúzia (ou duas dúzias) de clássicos universais, até porque essa ‘lista’ ou cânone maior não serve de metro de avaliação da existência ou qualidade das literaturas nacionais. Qualquer comparatística autêntica deve abolir a perspectiva de ‘ranking’ e repetir o que dizia o dramaturgo alemão Hebbel: ‘Sou um gênio! Sim, um gênio de primeira ordem. Digo-o, conservando inteira consciência da enorme distância que me separa de Shakespeare’ (referência em edição brasileira de Hebbel, Tragédias. Melhoramentos). O problema aqui não é de princípio, é quase pragmático. Se o estudo graduado e pós-graduado de Letras é impensável sem domínio de línguas e literaturas estrangeiras (e clássicas) assim como alguma orientação em temas filosóficos necessários ao aprofundamento da discussão estética e da crítica literária, por outro lado a única via de acesso factível à literatura universal é a preservação em idade escolar, desde o ensino fundamental, da poesia brasileira e da prosa canônica da literatura nacional. Preferencialmente sem as declamações, mas entremeadas nos estudos de gramática como a ‘vida’ da linguagem culta.

Pelo fato de a proposta ser relativamente simples, já se vê que não é só a adoção de um cânone maior o que quer o Anti-cânone. O que se apresenta aqui é o paroxismo da doença do ressentiment, transformada em neurose social, que aposta só no remédio quantitativo da ‘igualdade de fato’ e vê como panacéia a ‘cota’. A palavra de ordem é sempre a mesma ‘ocupar o espaço deles, os BLOCS’. Como diz o mesmo Flávio Kothe, é muito fácil ser oposição quando a bandeira de oposição já venceu: é muito fácil ser uma suposta ‘esquerda’ verdadeira e rebelde no Brasil quando essa ideologia de ‘esquerda globalizada’ já é dominante pela sua difusão como cultura de massas.

Amar a literatura nacional não faz de ninguém xenófobo, pelo contrário, torna-o aberto a receber presentes de todas as outras altas culturas. Existe uma alta cultura literária brasileira (se formos elásticos para abranger nela também algumas áreas das humanidades, como, por exemplo, os estudos ‘generalistas’ de Gilberto Freyre). Não existe uma filosofia brasileira e sua inclusão nos currículos seria pura demagogia, assim como demagógica é a proposta de supervalorização, como disciplina especial, de uma ‘história da África’, cuja motivação, admitida ou não, é a ideológica (e perigosa) função terapêutica do ensino como incremento de ‘auto-estima’. Oxalá nenhum Ministro da Cultura ou da Educação resolva no Brasil decretar como oficial a política proposta no Manifesto de Kothe contra o PC e o PRC (Partido do Cânone e de Renovação do Cânone). O PMOU – Partido do Multiculturalismo Ofensivo e Unidimensional – este talvez lhe seja um nome adequado, pode ser apenas um modismo, mas é poderoso. Nos Estados Unidos já chegou ao poder. Arthur M. Schlesinger Jr., com muita abertura para reconhecer o problema da invisibilidade dos non-WASP’s, mas também sincera preocupação pelo futuro da república, já considera que se está diante de um tribalismo que pode ser inflamável como um barril de pólvora.

Quando um inglês faz um filme insinuando que o 11 de Setembro seria a legítima defesa do mundo árabe contra o genocídio cultural, associando a suposta culpa coletiva do povo norte-americano à suposta culpa coletiva que teriam os cidadãos norte-americanos pela geopolítica de seus governos nos golpes nativos na América Latina, como o que redundou na deposição de Allende, como se todo o povo chamasse contra si a ira dos deuses, que se manifestaria no terrorismo, já é hora de refletir sobre ‘modismos acadêmicos’ aparentemente inocentes, porque aparentemente cultivados apenas na fogueira de vaidades do ambiente universitário.

Diante das pressões de uma nova e poderosa ideologia que nos empurra mais uma consciência ou ‘identidade politicamente correta’, valeria a pena lembrar a negação socrática dos versos de Fernando Pessoa:

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(‘Tabacaria’, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, 15-1-1928).

9. Literatura & terror

Com Antonio Candido, formulamos coletivamente um mandamento sagrado. O dever de amar expressa o poder construtivo e civilizador de Eros.

Expressar o dever de amar é algo muito diferente, na origem e nos frutos, de conclamar ao ódio, e afirmar que os autores do cânone nacional

‘Merecem a morte literária, porque nunca chegaram a ser propriamente arte’. (CI,76).

E que:

‘Quem entra no cânone imagina estar entrando no paraíso; não lhe é permitido ler, no alto do pórtico de entrada, que deve deixar toda a esperança.’ (C.I. p. 407)

O tom repetitivo do ‘nada adianta’ e a afirmação reiterada de que, para se promover a afirmação das verdadeiras essências alguém ‘merece a morte’ são, consciente ou inconscientemente, a novíssima mistificação da violência e da espontaneidade (com antecedentes em Sorel e Fanon). Agora, porém, no tom geral da desesperança, essa violência e espontaneidade ressurgem na política com a entonação melodramática da solução individual.

Elogia-se o suicídio como saída heróica para a grande narrativa da história (natural) e só falta então detonar homens e mulheres-bomba, porque já se doutrinou exaustivamente sobre silogismos falsos que tudo o que fizerem será legítima defesa ao genocídio cultural que os oprime desde o nascimento.

É aqui que a literatura da suposta diferença encontra o terror.

Talvez seja aconselhável então uma boa dose de ignorância: não sabemos como resolver os problemas de identidade e as opressões de minorias no bojo de uma identidade nacional, mas conhecendo o problema da democracia no Brasil podemos inferir que a negação da identidade nacional não contribuiria muito para incrementos democráticos significativos para as minorias. Não é a identidade nacional o ‘espaço’ que as etnias precisam ocupar. De outra parte, é quase seguro que uma guerrilha étnica fundada nessa imaginação violenta põe em xeque a sobrevivência de algo comum, a res publica.

No discurso político, local próprio para se debater os Anti-cânones de Flávio R. Kothe, nem sempre são úteis apenas as grandes obras. Às vezes são necessários ‘choques de realidade’ de obras frágeis e panfletárias, mas politicamente eficientes e que representam perigo.

Oxalá seja apenas o perigo que chega para testar nosso amor.

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Procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova Iorque, autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2004)