Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Palavras, palavras, palavras, palavras

Não tenho dúvidas que, depois da imagem, a maior ferramenta da mídia seja a palavra. Partindo desse princípio, o escritor inglês Adam Jacot de Boinod lança o livro The meaning of tingo (O significado de tingo, 224 pp., Penguin Books, Londres, 2005; £ 10), no qual lista uma série de palavras de diversos idiomas que não têm correspondente em outros, isto é, precisam ser explicadas. Por exemplo: tingo, que dá título ao livro, no dialeto falado na Ilha da Páscoa (Chile) define a pessoa que pega coisas emprestadas da casa de um amigo, uma a uma, até que ele não tenha mais nada.

Boinod explica o porquê de seu trabalho:

‘O que procurei fazer é celebrar a alegria das palavras estrangeiras sem julgá-las, e dizer que apesar de o inglês ser uma grande língua não devemos nos surpreender que existam muitas outras com termos que nos nossos dicionários não encontramos equivalentes’.

Tudo começou quando ele descobriu que em albanês existem 27 formas para definir bigodes, que vão desde o madh (em forma de moitas), até o posht (longos e com as pontas viradas para baixo), passando pelo fshes (grandes, hirsutos, em forma de vassoura). Essa preciosidade taxonômica certamente quereria dizer alguma coisa – por exemplo, que aquele povo reconhecia no ornamento capilar no rosto do homem um status tão importante que julgava adequado não confundir a variedade. Michele Cortelazzo, professor de lingüística na Universidade de Pádua , explica:

‘O léxico é a lente com que se olha a realidade, portanto é normal que povos diversos tenham palavras intraduzíveis.’

Cito o caso de Edoardo Bizzarri, que se propôs e conseguiu traduzir para o italiano todos os livros de João Guimarães Rosa. Quando embatucou com a palavra ‘veredas’, recorreu ao autor e este, por carta, explicou:

‘(…) podem ser grandes e pequenas, compridas ou largas. Veredas com uma lagoa, com um brejo ou pântano; com pântanos de onde se formam e vão escoando e crescendo as nascentes dos rios; com brejo grande, sujo, emaranhado de matagal (marimbu); com córrego, ribeirão ou riacho. Por isso também, em certas partes da região, passaram a chamar também de veredas os ribeirões, riachos e córregos – para aumentar a confusão’.

Em português

Das palavras de Boinod merecem destaque as seguintes:

** do fuengian (espécie de dialeto falado no Chile), mamihlapinatapei, ‘olhar intenso de duas pessoas desconhecidas que querem mas hesitam dar o primeiro passo para a aproximação’;

** o indonesiano latah, ‘hábito incontrolável de dizer coisas embaraçosas’;

** do icástico falado na Sibéria iktsuarpok, ‘a aflição da espera que faz ir repetidamente até a porta para ver se a pessoa esperada chega ou não’;

** do francês seigneur-terrasse, ‘alguém que passa muito tempo num café sem fazer despesas’ – aliás, prática muito comum no Rio de Janeiro do final século 19, início do 20, quando os intelectuais de muitas idéias e pouco dinheiro ficavam sentados o dia inteiro na Confeitaria Colombo, em intermináveis conversas, tomando tão somente um cafezinho e um copo d’água da bica;

** do chinês yuyin, ‘sensação do som que fica no ouvido depois de tê-lo escutado’;

** do japonês baku-shan, ‘uma mulher que parece bonita quando vista de costas, mas não o é quando vista de frente’;

** do havaiano panapo’o, ‘coçar a cabeça para lembrar algo esquecido’;

** da Ilha de Páscoa matego, ‘olhos que revelam ter chorado há pouco’;

** o indiano tulu karelu, ‘marca deixada na pele por uma roupa muito estreita’;

** do alemão torschlusspanik, ‘o medo de redução de oportunidades pelo envelhecimento’.

De propósito deixei para o final italiano e português, por serem os únicos dois idiomas que domino. No italiano se faz presente a palavra inventada pelo escritor Alberto Moravia (1907-1990) pomicione, ‘o homem que se aproveita de cada ocasião para ter um contato estreito com uma mulher’. Todavia a que mais gosto é strafare, ‘algo como estragar o bom tentando fazer o ótimo’.

No português, as palavras são duas e as explicações não as encontramos iguais nem o dicionário Houaiss, mas têm sua lógica. Vejamos:

** grilagem, ‘é uma perífrase laboriosa do ato de colocar um grilo vivo em uma caixa com documentos falsos até quando, com seus excrementos, os fazem parecer envelhecidos’;

** a outra é sacanagem, ‘procurar encontros sexuais com um ou mais partners durante a terça-feira de carnaval’.

Tudo bem, se non è vero, è bene trovato (se não é verdadeiro, é bem contado), mas a palavra que mais gosto do português é aconchegar e suas derivadas. Não encontro correspondência em outros idiomas: no melhor dicionário português italiano (Vincenzo Spinelli e Mario Cassata) se apresenta como accogliere, acolher, e não é isso. Aconchegar é quase onomatopaica, lembra o ronronar de como canta Dorival Caymi em João Valentão: ‘É quando a morena se encolhe, se chega pro lado querendo agradar’.

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Jornalista