Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Berlusconi e seus derivativos

Em pouco mais de uma semana depois de ter ficado publicamente conhecida a sua opinião sobre o país que governa (“a Itália é um país de merda”), o primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi volta a chocar o senso comum com seu diagnóstico sobre a chefe de Estado alemã Angela Merkel: “É uma bunduda incomível”. Em O Globo, a mesma notícia do episódio trazia o comentário de um político italiano: “Como um indivíduo desses pode continuar governando o país?”

Na verdade. Berlusconi é apenas o modelo exagerado de uma série antiga e nova de políticos que oscilam entre o picaresco e o grotesco, com amplo beneplácito popular. O pensador pós-modernista Jean Baudrillard (1929-2007) já havia levantado, anos atrás, a hipótese de que as massas elegeriam governantes dessa estirpe para poder divertir-se secreta ou abertamente com eles.

Ele costumava amparar a hipótese no diagnóstico do fim da energia própria da política. Dizia que aí onde tem início a hegemonia definitiva do social e do econômico, surge o constrangimento, para a política, de ser o espelho legislativo, institucional, executivo do social. A autonomia da instância política seria inversamente proporcional à hegemonia crescente do social. Assim, a esfera social, comodamente apoiada na maioria silenciosa, poderia fazer espelhar na classe política o seu gosto pelo espetáculo do grotesco ou pela oportunidade de desprezar, ou mesmo odiar, os supostos detentores do poder. Daí, figuras como Berlusconi, Sarkozy, tantos outros.

Rei duplo

A propósito de Nicolas Sarkozy, entretanto, o sociólogo Michel Maffesoli apresenta outro modelo explicativo num livro que acaba de sair na França (Sarkologies – Pourquoi tant de haine(s)? ou “Sarkologias – Por que tanto(s) ódio(s)?”). O livro, uma longa análise do relacionamento do presidente francês com as massas e com a imprensa, é no fundo uma defesa do personagem Sarkozy. Mas reconhece de saída o problema:

“Por que tanto ódio? Tanta histeria? Porque seus detratores, em vez de opor aos discursos do presidente Sarkozy, a seus atos de governo, o seu próprio programa, ou pelo menos uma avaliação racional do dele, recorrem sempre aos ataques ad hominem, às injúrias, às conjeturas sobre seu estado amoroso, sua saúde mental, seu caráter? É isso que faz dele, por conseqüência, um herói de romance, um ser de ficção”.

O sociólogo faz uma distinção entre “opinião pública” e “opinião publicada” (portanto, entre as massas e a imprensa) para tentar mostrar que esta última faz repercutir o despeito das elites intelectuais francesas por um homem que teria decidido não respeitar “os códigos do meio”. Daí, para ele, a multiplicação das ofensas publicadas, tipo “marginal da República”, “epiléptico do Eliseu” etc.

Mas haveria uma diferença entre o “publicado” e o “público”, que está nos “altos e baixos” ou na versatilidade da opinião pública:

“Sarkozy, em seus aspectos cambiantes, com sua sintaxe aproximativa, em sua teatralidade vistosa, com seu lado olhem-para-mim, através de um desejo de gozo, aqui e agora, apenas oferece ao povo espantado um espelho onde este pode ver o reflexo de sua alma coletiva”.

Reaparece assim, como se vê, o espelhamento de que falava Baudrillard, embora sem o vezo irônico do filósofo pós-modernista. Maffesoli consegue enxergar uma “participação mágica” no relacionamento das massas com o presidente, teoricamente referendado pela célebre hipótese do historiador Ernst Kantorowicz em seu livro Os dois corpos do rei. Para o historiador, o rei era de algum modo “duplo”, ou seja, o povo podia vilipendiar, até mesmo maldizer, o seu corpo natural, mas salvaguardar o seu “corpo político”, em princípio intocável porque representava a comunidade.

Rir e chorar

Aceitando-se a hipótese da extensão desse corpo duplo aos governantes contemporâneos, ficaria mais fácil de entender como o “corpo político” de um suposto representante da comunidade eleitoral é capaz de perdurar após os ferozes ataques que se lançam sobre o seu “corpo natural”. Isso vale para Sarkozy, Berlusconi e, aqui, mais próximos de nossa realidade nacional, um sem-número de figuras cujos nomes a prudência jurídica nos aconselha a calar.

Tudo isso pode ter o seu fundo de verdade, mas o que esse tipo de análise costuma deixar escapar é que, por trás dessas aparências burlescas ou grotescas, do governo dos homens, existe o esvaziamento real da representação política (ou seja, a soberania do povo não é mais a referência republicana do poder), ao mesmo tempo em a classe política inabalada permanece com as chaves do tesouro público nas mãos, girando ao redor do centro e da corrupção. Assim, o que supostamente faria rir as massas é o que também, na prática, faz com que elas chorem diante da insuficiência dos hospitais, das escolas e da segurança pública.

A corrupção não tem graça nenhuma, ela é a contraparte triste do voto sem sentido.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]