Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Equilíbrio precário na Líbia

Com a visão privilegia de quem enquanto repórter foi testemunha das revoltas populares no Oriente Médio, as de agora e as de antes; e com o olhar analítico de um cientista político, o britânico Robert Fisk falou ao Aliás sobre as possíveis saídas do labirinto que se tornou a “primavera-verão-outono árabe”.

Fisk, conhecido sobretudo pela coluna no jornal The Independent, é autor de um extenso conjunto de crônicas reunidas no livro A Grande Guerra Pela Civilização: A Conquista do Oriente Médio, da editora Planeta. Sediado em Beirute há mais de 25 anos, o jornalista passou os últimos seis meses cobrindo as revoltas no Egito, Bahrein e Líbia.

Com amplo repertório sobre as idiossincrasias do Oriente Médio, Fisk contextualiza os avanços obtidos até agora pelas revoluções ainda inconclusas do despertar árabe. Se o que assistimos nessa semana foi o último capítulo da guerra civil na Líbia, com a tomada de Trípoli pelos rebeldes (e a revelação da decoração kitsch do bunker de Kadafi), não há como ter certeza. O que se sabe, segundo ele, é que a comunidade internacional se precipita ao confiar na difusa liderança rebelde, que já dá sinais de inconsistência. “O Ocidente aceitou o conselho de transição como legítimo representante dos líbios, e estamos dando status de governo para rebeldes que não sabemos quem são.”

O correspondente fala sobre os perigos de um transição sequestrada por velhos baluartes do poder; critica o papel dúbio das potências no trato com os ditadores; quebra o silêncio sobre a constrangedora aliança dos americanos com os sauditas; e, por fim, critica a atitude da única democracia no Oriente Médio: “Israel prefere ser rodeado por ditaduras que conhece do que por democracias que desconhece”. A entrevista a seguir foi concedida por telefone, durante uma breve pausa para as férias na Irlanda, de onde viajará para a Síria em alguns dias.

Estamos testemunhando o desfecho da guerra civil na Líbia?

Robert Fisk– Tornou-se um padrão dos rebeldes, e eu vi isso acontecer repetidas vezes, invadir as ruas, dar tiros para os ar, declarar vitória, quando, na verdade. Kadafi e seus tanques ainda estão lá. A natureza imprevisível da guerra na Líbia não nos permite tirar nenhuma conclusão definitiva do que pode acontecer por lá. Kadafi pode achar que o melhor seria continuar lutando, para desgastar ao máximo os rebeldes e, aos poucos, roubar a credibilidade do conselho de transição.

Afinal, quem são esses rebeldes?

R. F. – Eles não têm liderança, são formados por diferentes grupos, tribais e políticos. Nações ocidentais aceitaram o conselho de transição como legítimo representante do povo líbio, até cedemos o prédio da embaixada da Líbia em Londres para eles se organizarem. Estamos dando status de governo a rebeldes que, a bem da verdade, não sabemos quem são. Isso é perigoso. Quando o conselho nacional de transição liquida um dos seus e nada acontece, penso que não se pode confiar nele (o comandante Abdul Younes foi morto há um mês em Benghazi num desentendimento entre os rebeldes). A falsa prisão do filho de Kadafi, Saif, também mostra falta de integridade na palavra deles. E o Tribunal Internacional Penal, em Haia, confirmou a informação aceitando a versão dos fatos de um grupo altamente duvidoso. Não são só as forças de Kadafi que cometeram assassinatos. Corpos encontrados em Trípoli com mãos atadas são de vítimas dos rebeldes. A Otan apoia pessoas que estão cometendo execuções.

Na quinta [25/8],a ONU descongelou US$ 1, 5 bilhão de fundos líbios que vão para o grupo que você chama de duvidoso. Isso preocupa?

R. F. – O dinheiro é do povo. Vai ser difícil para a ONU intervir em como as autoridades líbias, quaisquer que sejam, vão usá-lo. Demos prestígio e influência aos rebeldes. Eles dizem querer democracia, liberdade e o bem-estar do povo, mas todo ditador disse isso um dia.

A captura de Kadafi pode ser o ponto final para o choque entre civis ou só o começo?

R. F. – No Iraque foi depois da prisão de Saddam Hussein que a insurgência pegou fogo, isso porque os que antes tinham medo de que os americanos pudessem colocar o ditador de volta no comando perderam as inibições. Na Líbia a situação é diferente. Se Kadafi for pego, os governistas têm poucas razões para continuar lutando. Há rachas entre os aliados do ditador também. Os líbios têm experiência histórica de ocupação ocidental imperialista e também de ditadura nacionalista, e não parecem gostar de uma coisa nem de outra. Por isso a procura por uma forma de governo mais digna me parece algo que a maioria dos líbios quer. Resta saber se o conselho de transição, que adotou um discurso aparentemente conciliador, realmente pretende aturar os aliados de Kadafi.

A cidade natal de Kadafi, Sirte, foi bombardeada pela Otan na sexta-feira [26/8]. Em um artigo, você diz que “em breve essa cidade será a mais interessante na Líbia”. Por quê?

R. F. – Sirte se beneficiou no reinado Kadafi com a exploração de petróleo, por isso a lealdade tribal pode se revelar mais forte que o medo da Otan. Há 70 anos, sob o regime de Mussolini, a Líbia era dividida em duas: a Tripolitânia, cuja capital era Trípoli, e a Cirenaica, cuja capital era Benghazi. Sirte sempre foi uma espécie de dobradiça entre as duas regiões e novas perguntas surgem da escuridão da história. Será que as pessoas algum dia foram leais ao ditador ou apenas a uma ideia de que sua cidade é mais importante? Todo libanês que entrevisto se enxerga primeiro como druso, maronita, sunita ou xiita, e só depois ele é libanês. Pode ser que os líbios pensem assim também. Não sabemos. Os repórteres passaram tempo demais correndo atrás das picapes dos rebeldes e não se interessaram pelas questões fundamentais que estão no pano de fundo do conflito.

Qual sua opinião sobre a cobertura da imprensa internacional na Líbia?

R. F. – Em Trípoli a imprensa foi sequestrada pelas forças de Kadafi. Os jornalistas no hotel Rixos viraram reféns. O máximo que puderam fazer foi olhar pela janela para enxergar alguma coisa do que acontecia lá fora. Não dá para trabalhar assim. Lembro que na guerra do Iraque houve também um jornalismo de hotel, mas por opção. Os repórteres chegavam escoltados do aeroporto, faziam o check-in, comiam, dormiam e trabalhavam no quarto, às vezes cumprindo ordens diretas das redações. Não faço objeção ao jornalista que, por segurança e pela família, não quer ir para a zona de guerra. Mas não escreva como se estivesse nas ruas, conversando com as pessoas, dando a falsa impressão de que tem ampla visão da situação. Muitos contrataram repórteres iraquianos para ir às ruas por eles e depois assinavam “especial de Bagdá”. Ok, estavam lá, mas qualquer um com um telefone em Londres poderia fazer aquele trabalho. Eu e outros jornalistas circulamos de carro e, mesmo não podendo ficar mais que poucos minutos em certos lugares, deu para ter uma visão ao menos dos cacos da guerra.

E como foi cobrir a Primavera Árabe?

R. F. – Grande parte da vida de um correspondente no Oriente Médio se resume a escrever sobre sofrimento, violência, tortura, morte e injustiça. Suponho que o momento depois da queda de Mubarak, quando comemoravam e cantavam na Praça Tahrir, tenha sido a reportagem mais feliz que já tive oportunidade de escrever. Foi um breve momento de alívio. Mas penso que as raízes do despertar árabe estavam lá muito antes da revolta na Tunísia.

Que raízes são essas?

R. F. – A primeira revolta popular moderna foi no Líbano, em 2005, depois do assassinato do premiê Rafic Hariri. O povo exigiu a retirada das tropas sírias e foi vitorioso. Quando estava cobrindo a mobilização de milhões em Teerã, em 2009, pessoas me perguntavam como os libaneses tinham feito para mobilizar tanta gente. Os iranianos queriam aprender como fazer o mesmo. No caso do Egito, as sementes de uma revolução futura foram plantadas na cidade de Mahalla, em 2006, num protesto por aumento de salários da indústria. Anos antes das cenas de Tahrir, Mahalla foi uma “cidade-tenda”, com manifestantes com barras de ferro e gás lacrimogêneo por todo lado. Ainda estou tentando entender esse processo, e penso que a história terá que olhar para o papel que os sindicatos tiveram nos levantes árabes. Parece que nos países com sindicatos fortes, Tunísia e Egito, foi possível reduzir a violência quando o despertar eventualmente se consolidou, acelerando a queda do regime. Por outro lado, nos países onde não há sindicatos, Líbia e Iêmen, ou onde sindicatos foram cooptados pelo governo, Síria, as revoluções não foram imediatamente bem-sucedidas e mais sangue foi derramado. A grande pergunta agora é se a Jordânia, que tem sindicatos estruturados, vai pegar fogo ou não.

Como acha que as transições de regime podem se desenrolar na região?

R. F. – Há algumas possibilidades. Cada um desses países vai descobrir por si o que quer fazer e como construir seu futuro. Talvez aos líderes do passado seja permitido fazer parte do novo governo. No Iraque os americanos não permitiram, e veja só o que aconteceu. Talvez os Parlamentos sejam controlados pelos velhos regimes. No Egito, o Ministério de Interior ainda é controlado por afilhados políticos de Mubarak. Talvez seja preciso fazer concessões a fim de preencher os vácuos de poder e fazer a máquina de governo andar de novo. Talvez para isso seja permitido aos partidos com os melhores maquinários políticos dominarem as eleições, mesmo que não tenham trabalhado pela revolução. Vejo fotos desses líderes gordos e velhos da Irmandade Muçulmana negociando com os militares no Cairo e penso: onde estavam vocês na hora de revolução? Eu estava em Tahrir e nunca vi nenhum deles lá. A primavera-verão-outono árabe vai durar anos.

O que dizer do silêncio sobre o regime fechado saudita em que as mulheres nem podem dirigir?

R. F. – Aí você tocou no ponto chave. Todo momento decisivo de transição histórica no Oriente Médio envolveu a Arábia Saudita. A primeira revolução do profeta Maomé foi lá; o movimento religioso do wahhabismo, no século 18, brotou lá; os pilotos do 11 de Setembro eram sauditas (não havia nenhum afegão); Bin Laden era saudita; o Taleban foi criado com dinheiro saudita. Mas o petróleo também está lá, então eles são nossos amigos, certo? Causei desconforto para um diplomata americano numa coletiva de imprensa ao dizer: “Eu não estou perguntando sobre sua vida sexual, mas meramente sobre Israel e a Arábia Saudita”. Tal é o constrangimento atual de se questionar certas alianças. Aliás, o rei Abdullah suplicou a Obama para que ele deixasse Mubarak no poder. Israel enviou um telegrama aos americanos, dizendo que o egípcio era melhor para a “estabilidade” da região. Justamente os nossos dois aliados na região.

Quais as chances de os líbios consolidarem um governo de princípios democráticos?

R. F. – Sempre me preocupo com o papel da democracia enquanto fórmula para se atingir o que chamamos de “civilização ocidental”. Os líbios conhecem a história de seu país, a colonização tirana da Europa, lembram-se do corrupto rei Ídris e sabem que às vezes é preciso tomar cuidado também com o que vem do Ocidente. O verdadeiro perigo não é se os líbios aceitarão a democracia, mas quão corrupto será um novo governo. A corrupção, financeira e moral, é o problema fundamental do mundo árabe. O partido Baath é a instituição mais corrupta na Síria. No Egito é a polícia. Quanto tempo vai levar para que o conselho de transição seja comprado? Suspeito que já possa ter sido comprado pelos interesses do Ocidente.

Como viu a posição da comunidade internacional de intervir militarmente na Líbia e apenas emitir sanções contra a Síria?

R. F. – Duas palavras: petróleo e Israel. Obama deu sua grande cartada com as sanções, mas a Síria não exporta petróleo, aliás, importa dos iraquianos porque é mais barato que usar o próprio. Tem gente em Israel que considera Bashar Assad o único homem capaz de fazer paz pelas Colinas de Golã e por isso é melhor que ele fique no poder. Israel prefere ser cercado por ditaduras que conhece do que por democracias que não conhece. Melhor o inimigo que sabemos quem é. Obviamente tem uma questão moral envolvida aí. A família Assad é responsável pela morte de mais sírios do que Kadafi de líbios. Para ficar num exemplo só, lembre-se do massacre de Hafez Assad (pai de Bashar) na cidade de Rama, em 1982, em que 20 mil morreram. Os americanos não estão falando com Assad no mesmo tom com que os franceses falaram com Kadafi. São curiosos os termos usados pela administração americana para pedir a renúncia de Assad. Falou-se em “step aside”, dê um passo para o lado, mesmo que a certo ponto Hillary Clinton tenha cometido o deslize de dizer “step down”, mas logo se corrigiu. Essas pessoas não escolhem palavras aleatoriamente. Os EUA estão sinalizando para Assad que ele poderá continuar a existir, em alguma medida, na cena política da Síria, mas agora é o momento de sair dos holofotes e parar o massacre de civis.

A comunidade internacional tem algum papel a desempenhar de agora em diante na transição dos regimes?

R. F. – O grande problema da política externa do Ocidente para o Oriente Médio neste último milênio é que sempre nos oferecemos para proteger pessoas e construir liberdade e democracia, mas para isso desembarcamos com espadas, tanques e helicópteros, oferecendo o nosso tipo de liberdade. Os exemplos óbvio de fracasso disso são Afeganistão e Iraque. Nossa arrogância não é de agora, vem dos tempos da tomada de Bagdá pelo Império Britânico em 1917, quando andávamos pelas ruas como libertadores tiranos que diziam libertar os iraquianos da tirania do Império Otomano. George W. Bush retomou esse discurso em 2003. Mandem médicos e construtores de pontes, e economistas para fazer alianças comerciais, mas, por favor, mais nenhum soldado. Temos hoje seis vezes mais soldados ocidentais per capita no Oriente Médio do que na época das Cruzadas do século 12. Ainda não entendemos que a terra deles não é nossa, achamos que o petróleo deles nos pertence, mas não é verdade. Eles são nossos amigos, compartilhamos o planeta, mas não temos direito nenhum sobre seu destino.

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[Carolina Rossetti é jornalista do Estado de S.Paulo]