A Suprema Corte dos Estados Unidos deve decidir este ano assunto de vital importância para o futuro da liberdade de expressão naquele país.
No governo de George W. Bush, a Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês), órgão regulador das atividades de comunicação, impôs o que chamou de “padrões de decência” às emissoras de rádio e TV aberta num código que, descumprido, pode levar a punições financeiras pesadas aos infratores.
A rede de TV aberta Fox (não confundir com a Fox News, emissora de notícias 24 horas na TV paga) ganhou um recurso há dois anos na segunda instância da Justiça federal. O governo recorreu; o caso FCC vs. Fox Television Stations está agora diante da Suprema Corte.
O código de padrões de decência não se aplica à TV paga nem a meios de comunicação impressos ou à internet porque ninguém acha possível nos EUA que os poderes públicos possam interferir no conteúdo desses veículos.
A discussão cabe no caso do rádio e da TV aberta porque o espectro físico pelo qual as mensagens desses veículos chegam à sociedade são bens públicos escassos e limitados, cuja exploração com fins comerciais o Estado resolveu permitir por meio de concessões por períodos de tempo limitados e sob certas condições especificadas em leis.
Mais liberais
Em 1978, a Suprema Corte já havia decidido que a FCC podia punir emissoras pelo uso de linguagem ou imagem “vulgares” durante horário nobre, quando a audiência infantil é mais provável.
Mas sob aquele estatuto, a FCC agiu pouco e com punições pequenas, com critérios que levavam em consideração a intencionalidade do emissor, por exemplo. Na era Bush, o padrão mudou e emissoras receberam pesadas multas por mostrarem em eventos transmitidos ao vivo parte de nádegas ou de seios de alguma artista – ou a voz de algum atleta ou artista pronunciando um palavrão.
A decisão da Corte de Recursos que a Suprema Corte está julgando se baseia no argumento de que o código da FCC é “indesculpavelmente vago”.
O problema com qualquer regulamentação de conteúdo é exatamente esse: é impossível elaborar um código capaz de abranger todas as infinitas possibilidades de variáveis na comunicação humana e a interpretação sempre acaba sendo subjetiva.
Pode ser fácil proibir a nudez na TV. Mas como definir a nudez? Por exemplo, quando no show de intervalo do jogo final do campeonato de futebol americano de 2004 o seio direito da cantora Janet Jackson apareceu por alguns segundos, isso constituiu nudez? A imagem atentou contra a decência? A artista disse que foi um acidente e pediu desculpas. A CBS, que transmitia o evento, tirou a cena do ar numa fração de segundo. Mas a FCC multou a emissora em 555 mil dólares.
Se o mesmo incidente tivesse ocorrido durante o governo de Bill Clinton, por exemplo, quando os integrantes da FCC eram menos conservadores do que os que compunham a comissão na era Bush, será que a multa teria sido aplicada, mesmo se o código já existisse?
Quem indicou os juízes
Para a FCC de Bush, palavrões gritados no filme O Resgate do Soldado Ryan, a apologia que Steven Spielberg dedicou aos pracinhas americanos da Segunda Guerra Mundial, não constituíam indecência e podiam ir ao ar em horário nobre na TV; mas os mesmos palavrões proferidos por um guitarrista de blues durante a execução de uma música no documentário A História do Blues, de Martin Scorsese, eram indecência e a emissora que os colocou no ar tinha de ser multada. Palavrão patriótico pode, palavrão musical não pode.
Nudez frontal por vários minutos no filme A Lista de Schindler, também de Steven Spielberg, foi considerada apropriada pela FCC, mas parte das nádegas de uma mulher por alguns segundos num episódio da série policial NYPD Blue foi taxada de indecente e rendeu multa à emissora. Nudez humanitária pode, nudez policial não pode.
Nas primeiras discussões sobre o caso na Suprema Corte, a juíza Elena Kagan, nomeada pelo presidente Barack Obama, resumiu a questão: “Parece que esse código funciona assim: ninguém pode usar palavrão ou nudez, com a exceção de Steven Spielberg”.
Kagan faz parte da minoria não conservadora na atual composição da Suprema Corte dos EUA. Três dos atuais nove integrantes foram apontados por George W. Bush e seu pai, que caracterizaram suas escolhas por caráter fortemente ideológico, dois por Ronald Reagan, também bastante conservador, dois por Bill Clinton e dois por Obama.
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[Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista]