Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Toda chuva molha, mas nem sempre transtorna

Estava prestes a sair para trabalhar. Ao abrir a janela do apartamento, deparei com uma chuva densa e intermitente. As águas corriam caudalosas rentes ao meio-fio da calçada. Era mais uma dessas cenas comuns na grande São Paulo nesse início de ano e que tem causado transtornos na vida de muita gente. Do outro lado da rua, um grupo de adolescentes brincava com a água. A chuva parecia não ter dificultado em nada suas vidas. Eram uma exceção, provavelmente, e seus risos e brincadeiras me fizeram parar para pensar por que alguns de nós costumamos rir quando estamos na chuva.

Arrisquei um palpite: quando ficamos reféns dessas gotas d’água caídas do céu lembramos que nosso poder sobre o mundo e sobre as coisas é finito. Viramos crianças novamente. Desse jeito, excetuando-se casos de maiores tragédias, só nos resta nos molhar e rir daquela situação inusitada, às vezes constrangedora. Foi aí que pensei o quanto tenho lido, nos jornais, reportagens tensas – porém necessárias – sobre as tragédias da chuva Brasil afora. Mas também lembrei que Fred Astaire cantou na chuva e que, especialmente em São Paulo, o ar fica mais puro depois dos temporais. Pensei que os jornalistas bem que poderiam, além das reportagens sobre os transtornos causados pela chuva, escrever crônicas para contar histórias como a dos adolescentes que eu via pela janela.

Ao lembrar as reportagens que tinha lido e lamentar a ausência de crônicas, percebi que exercitava meu pensamento no âmbito dos gêneros jornalísticos. E, assim como observar a chuva, esses gêneros podem ser um caminho curioso para aprender e fazer jornalismo.

Ensaios que aprofundem a discussão

Em uma obra recente, os pesquisadores José Marques de Melo e Francisco de Assis (2010) – articulados a outros autores cujos textos constituem capítulos da obra – sistematizam cinco gêneros jornalísticos na imprensa brasileira e estabelecem, em cada um, formatos específicos. Segundo os autores, o gênero informativo, por exemplo, apresenta pelo menos quatro formatos: nota, notícia, reportagem e entrevista. Os demais gêneros – opinativo, interpretativo, diversional e utilitário –, por sua vez, também guardam suas modalidades.

Entretanto, essa classificação não é estanque. Gêneros e formatos podem variar espacial e temporalmente. Ou seja: ao ser um caminho para se compreender o jornalismo praticado em uma sociedade de um determinado tempo, os gêneros são também uma pista para se compreender cada grupo social. Essa já é, em si, uma razão para se ensinar e se estudar os gêneros jornalísticos como parte da formação do profissional da imprensa.

Mas há outras. O entendimento dos gêneros é uma forma de o jornalista compreender e qualificar a sua própria atuação. São o estudo e o ensino dessas questões que permitem pensar, na hora de conceber uma pauta e construir uma informação, questões do tipo: qual o melhor gênero e, dentro desse gênero, qual o formato mais coerente para elaborar a informação que pretendo transmitir? Dentro da rotina jornalística, muitas vezes, o que se pensou que poderia informar por meio de uma reportagem pode funcionar melhor se for publicada como uma entrevista pingue-pongue em que a fala de um dos entrevistados ganhe força, autonomia.

Do lado do público, pensar questões desse tipo pode ser fundamental para resolver outras equações, como por exemplo: qual o melhor gênero e formato para estabelecer uma comunicação mais qualificada com o público? Às vezes, o público está tão ávido por informações abalizadas sobre um assunto que uma reportagem não é suficiente esclarecê-lo. Jornalistas experientes sabem disso. Eles sabem que pode ser hora de, às reportagens das páginas noticiosas, articular, nas páginas de opinião, ensaios escritos por especialistas que aprofundem a discussão.

A chuva ensinou

O ensino dos gêneros jornalísticos pode ganhar conotação especial no webjornalismo. Como articular os recursos multimidiáticos para elaborar a informação e atingir, de forma mais qualificada, o público da web? Mesclar jornalismo informativo com jornalismo opinativo e articular reportagens em profundidade e testemunhos em vídeo, por exemplo, pode ser um caminho para a construção da informação online. Mas para isso, precisa-se também estudar e compreender os gêneros.

Alguns minutos depois, as gotas d’água insistiam em cair do céu. Tomei o elevador do prédio e saí de casa em direção ao trabalho. Na rua, voltei meu olhar, mais uma vez, para as pessoas que caminhavam por ali. Observei que a rotina delas estava definitivamente alterada. Não apenas pelos inconvenientes de tanta água, mas também pelos risos, hora constrangidos, hora quase infantis, que as gotas faziam brotar.

Toda chuva molha, mas nem sempre transtorna. E a chuva que, naquela tarde, caía em São Paulo, ensinou-me um pouco mais sobre jornalismo. Aprendi que o ensino dos gêneros é importante para lembrar que o jornalismo tem muitos outros lados de histórias para contar!

Referências

BELTRÃO, Luiz. A Imprensa Informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969.

CHAPARRO, Manuel Carlos. “A Eficácia das Formas não se opõe à Arte de Escrever. O Xis da Questão”. Disponível em: www.oxisdaquestao.com.br. São Paulo: sd.

MARQUES DE MELO, José. Jornalismo Opinativo. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003.

MARQUES DE MELO, José: ASSIS, Francisco de. Gêneros Jornalísticos no Brasil. São Paulo: Metodista, 2010.

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[Enio Moraes Júnior é jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo eprofessor dos cursos de Jornalismo da ESPM-SP e da ECA-USP]