Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nada a comemorar

Vimos publicada, em diversos meios de comunicação do país, a notícia de que o Clube Militar pretendia celebrar na sexta-feira (30/3) o golpe militar de 1964, que completou 48 anos.

Vou romper, neste momento, a busca pela objetividade na redação do meu texto porque as questões que a ditadura militar no Brasil envolve têm, na minha vida, um enorme destaque. Explico: se, de qualquer forma, eu me indignaria profundamente com o golpe de 1964 e suas consequências para uma geração inteira, ainda que uma jovem nascida anos mais tarde, tenho uma indignação ainda maior com relação a esse fato porque meu pai, Luiz Antônio Sansão, e muitos dos seus amigos e colegas, foram presos políticos, o que propiciou uma aproximação minha com essa questão desde a infância. Assim, embora não tenha vivido o horror da ditadura, tive a oportunidade de conviver com pessoas que lutaram e sobreviveram ao período, após prisões, torturas e verem amigos serem assassinados.

Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu seu período mais negro. O governo de João Goulart (Jango), eleito democraticamente e vigente entre 1961 e 1964, foi derrubado pelos militares. Com o golpe militar de 1964, o povo sofreu forte repressão, pessoas que se opunham à ditadura, lutando contra o governo que lhes foi imposto autoritariamente, eram perseguidas, “desapareciam” da noite para o dia, sendo torturadas, muitas vezes até a morte, por militares que usurparam o poder. Os presos políticos eram, geralmente, levados a órgãos de tortura como os DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), de onde, muitas vezes, jamais retornaram.

Felizmente, muitos desses presos políticos sobreviveram para, hoje, contar a real história dos porões da ditadura.

Comissão da Verdade

Juiz de Fora (MG), cidade onde eu nasci, é conhecida por ser a cidade onde o golpe teve início. É também conhecida por um histórico de militância, fortíssima na geração dos meus pais, que lutou com força contra a ditadura. Por conta disso, houve, entre os companheiros dos meus pais que sobreviveram à prisão, uma mobilização para que fosse aprovado o projeto de criação da Comissão Nacional da Verdade, proposto durante o governo Lula (2002-2010) com o objetivo de escancarar os crimes cometidos em violação aos direitos humanos durante a ditadura, divulgando os nomes de militares que prenderam, torturaram e mataram centenas de militantes políticos no país.

Assim, no dia 27 de maio de 2011, eles, ex-presos políticos, e muitas outras pessoas interessadas no debate, se reuniram no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil de Juiz de Fora (OAB-JF), para discutir a questão da abertura dos arquivos referentes ao período da ditadura militar no Brasil (vigente entre 1964 e 1985). Foi a fundação da Comissão Pró-Comitê da Verdade, que contou com a presença de Gilney Viana, coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Assim, foi criado também em Juiz de Fora, o primeiro Comitê da Verdade em Minas Gerais.

Para discutir as questões relativas ao direito da nação de conhecer a história real do período, na fundação da Comissão da Verdade estiveram presentes ex-presos políticos, como o professor de História Ricardo Cintra, o fotógrafo Luiz Antônio Sansão (meu pai), o advogado reabilitado pela Anistia Clodesmidt Riani (presidente da Confederação Geral dos Trabalhadores em 1964, tendo sido preso e confinado na prisão de Fernando de Noronha na época), dentre outros ex-presos políticos e militantes do período.

Os crimes e o horror

Na ocasião, conversei com o meu pai e com Ricardo Cintra, que foi preso com ele. Reproduzo abaixo parte da entrevista.

“A partir do momento em que se discute a violação constitucional, a tortura, e se tipifica isso como crime, evita-se que esse tipo de coisa volte a acontecer na história”, disse Luiz Antônio Sansão, preso em 1971 (governo Médici) como militante de organização clandestina. “A abertura dos arquivos e a divulgação dos nomes daqueles que cometeram crimes como prisão, tortura e assassinato de militantes sob a custódia do Estado, ainda que não ocasione a necessária punição dos responsáveis por esses crimes (até porque muitos já morreram), demonstra um reconhecimento, pelo Estado democrático atual, da barbárie que dominou esse período da história brasileira.”

O professor de História Ricardo Cintra, preso em 1968 e em 1971, afirma: “É importante a gente discutir o passado para apagar qualquer possibilidade de uma nova ditadura. Nós já tivemos várias ditaduras no Brasil, mas aquela foi a mais sangrenta, a mais violenta. E é preciso pelo menos recuperar os corpos das pessoas que foram torturadas e assassinadas. Apagar isso? Não há como apagar isso. A gente nem fala em punição porque acho que a maior parte das pessoas já passou do período de serem punidas. Mas, pelo menos, que a verdade apareça.”

Também na ocasião, foi distribuído o livro “Habeas Corpus: que se apresente o corpo – A busca dos desaparecidos políticos no Brasil”, de Vladimir Sacchetta (coord.), lançado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2010, apresentando histórico da ditadura e da busca pelos desaparecidos políticos no período (listando-os), a história da defesa dos Direitos Humanos, dentre outros registros. O resgate possibilita que as novas gerações conheçam verdadeiramente os crimes cometidos pelos militares e o horror da ditadura.

A celebração do Clube Militar

Os setores conservadores da sociedade se posicionaram e vêm se posicionando contra a abertura dos arquivos da ditadura. Obviamente, quem defendeu o autoritarismo e a tortura não deseja ser punido nem ter punidos seus representantes. “Os setores conservadores querem apagar esse período, mesmo porque eles se envergonham do mesmo. Eu não digo todos os conservadores porque alguns até tiveram prazer de torturar, eram sádicos, mas na verdade eles querem esconder esse passado”, disse Cintra [entrevista realizada em maio de 2011]. Muitos dos que se opõem à abertura dos arquivos apresentam o discurso de que “a anistia foi para os dois lados” (ditadores e presos políticos). “Eu não sei se a anistia foi para os dois lados. Eu e os companheiros fomos presos, punidos por crimes que não cometemos, fomos torturados, perdemos emprego, tivemos muitas vezes que sair da cidade onde morávamos. E eu não vi nenhum torturador ser punido por nada. Então que anistia é essa, que é esquecimento? Esquecer os criminosos e deixar de lado quem já sofreu?”, questiona o professor. “Não entendo como, por exemplo, pode se falar em perdão para crime de tortura, se o Brasil assinou o protocolo da ONU (Organização das Nações Unidas) que diz que crimes de tortura são imprescritíveis.”

A ditadura durou duas décadas. Quarenta e oito anos depois do golpe, o Clube Militar anuncia que vai comemorar essa página sangrenta e criminosa da História do Brasil, apesar da proibição da presidente Dilma Rousseff. Honestamente, é difícil descrever o que senti quando li as diversas publicações sobre o assunto.

É uma revolta que está aqui, latente, desde que lá na infância, que mencionei, conheci os valores humanos que nortearam os militantes que se opuseram com coragem, força e com o próprio corpo e o próprio sangue, aos crimes cometidos pelos ditadores e seus representantes, que violaram gravemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e marcaram, a ferro, fogo, pau-de-arara e muito sangue, uma geração inteira. E a prova de que essa geração resistiu e venceu não está somente na transformação política ocorrida após a queda do regime autoritário, mas, principalmente, nos filhos dessa geração, muitos dos quais fazem questão de resgatar a história e fazer jus à luta de seus pais.

Se os militares querem comemorar os atos desumanos e fascistas de que foram capazes entre 1964 e 1988, que comemorem em casa, bem baixinho, para que ninguém fique constrangido com sua manifestação. Em espaços públicos, eles não têm o direito de celebrar crimes cometidos contra a humanidade. Digo, grito: abaixo a ditadura! Que se sobreponha aos anos pesados, de chumbo, de sangue, a democracia, cheia de cor e vida. Conheçamos a História e passemo-na a limpo, para que tenhamos certeza do que queremos e, sobretudo, do que não queremos nunca mais. Força ao ato contra a comemoração do golpe de 64.

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[Luiza Sansão é jornalista, São Paulo, SP]