Imagine um caminhão de carga. Num dia, ele transporta ovos; no outro, batatas. Em viagens separadas, a mesma infraestrutura – no caso, o caminhão –, é utilizada para levar diferentes conteúdos – ovos e batatas. Essas mercadorias, no entanto, são bastante distintas e exigem cuidados particulares, embalagens específicas e formas de acondicionamento. Em ambos os casos, o caminhão tem uma capacidade de transporte que considera o peso e volume máximo da carga.
Essa analogia, apresentada pelo pesquisador e especialista em telecomunicações Marcus Manhães, pode ser usada para compreender do que trata o terceiro ponto da Plataforma para um novo Marco Regulatório das Comunicações no Brasil: a separação de infraestrutura e conteúdo. Na Plataforma, propõe-se que: “A operação da infraestrutura necessária ao transporte do sinal, qualquer que seja o meio, plataforma ou tecnologia, deve ser independente das atividades de programação do conteúdo audiovisual eletrônico, com licenças diferenciadas e serviços tratados de forma separada. Isso contribui para um tratamento isonômico e não discriminatório dos diferentes conteúdos, fomenta a diversificação da oferta, e assim amplia as opções do usuário. As atividades que forem de comunicação social deverão estar submetidas aos mesmos princípios, independentemente da plataforma, considerando as especificidades de cada uma dessas plataformas na aplicação desses princípios.”
Para Manhães, no Brasil tendemos a convergir conteúdos e serviços, uma vez que no dia a dia dos grandes centros urbanos é comum assistir a vídeos, falar no telefone, navegar na internet e ter TV por assinatura. Os “caminhões” que transportam essas “mercadorias”, porém, ainda são muito diferentes. Essa é uma visão tecnicista que prevaleceu, ao longo dos anos, na forma como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) regulou a atribuição de serviços. “Compreender que todas as redes estarão aptas a transportar de tudo é uma meta a ser atingida. Outra questão importante é a da ubiquidade, em que todos os serviços estarão disponíveis em todas as redes e localidades. Infelizmente, no Brasil estamos longe de atingir isso. Portanto, é outra meta a ser atingida”, explica o pesquisador.
Uma das principais questões postas frente ao modelo atual de comunicação no Brasil é a de haver oligopólios no controle das estruturas físicas por onde passam as informações. O sociólogo Sérgio Amadeu aponta que, para não nos tornarmos dependentes de determinados grupos, devemos criar regras de divisão do controle dessas corporações, como propõe a Plataforma. “Quanto mais conseguirmos impedir que se estabeleça um poder total na comunicação a partir do controle da infraestrutura, melhor. Então, quem oferece determinado serviço não poderá oferecer outro. Se controlar o cabo, não poderá controlar o provimento de acesso ou conteúdo. Isso tem de ser desagregado”, defende o sociólogo.
Neutralidade
A partir do domínio da infraestrutura, permite-se que as empresas – e as de telecomunicações já perceberam isso – direcionem o fluxo de informação da forma que lhes for mais conveniente. Podem, assim, decidir que tipo de aplicações podem ser baixadas ou a quais dados pode-se ter acesso. Para Amadeu, essa situação impõe a pior das censuras: a privada. “A censura política, em uma democracia, pode ser revertida em uma eleição. Mas como você interfere numa empresa de telefonia? Comprando ações e indo na assembleia de acionistas? A sociedade fica refém da ditadura do capital”, argumenta.
O tratamento isonômico de diferentes conteúdos é um dos principais objetivos da separação entre infraestrutura e conteúdo. Isso garante a neutralidade da rede, que significa que todas as informações que nela trafegam devem ser tratadas da mesma forma, trafegando na mesma velocidade. Manhães destaca, porém, que essa reivindicação deve respeitar direitos. Para ele, a possibilidade de igualdade surge com o tratamento distinto. A neutralidade deveria manter-se no limite de não prejudicar serviços e usuários em favorecimento de outros. “Certamente, a reivindicação está baseada em evidências de transgressões a direitos. Mantenha-se nessa lógica e não se siga adiante. Melhor, exijam-se redes aptas ao atendimento sem que impactem na qualidade e velocidade. Isso exige investimentos elevados em redes. Na lógica atual, instaura-se uma elevada demanda, com agregação de muitos usuários e administram-se os limites até que se possa melhorar a rede”, afirma o pesquisador.
Nesse contexto, fica clara a necessidade de separação entre infraestrutura e conteúdo, uma vez que a combinação disso resulta em um poder grande demais para ficar sob responsabilidade de apenas um segmento ou companhia, seja de telecomunicações, radiodifusores ou qualquer empresa cujo negócio gire em torno das tecnologias, das redes e serviços. “Por baixo da reivindicação de separação de infraestrutura e conteúdo, demanda-se uma nova formatação dos modelos de negócio. Esse é, a meu ver, o ponto nevrálgico, onde dói mais naqueles que têm poderes e privilégios e não querem reduzi-los”, conclui Manhães.
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[Márcia Schuler, do FNDC]