Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os cegos, os surdos

Desde que estourou o escândalo do mMensalão, este colunista sabia da existência de um empresário zoológico conhecido como Carlinhos Cachoeira, que entre outras atividades se dedicava ao ramo da contravenção penal. Tantos anos depois, descobre-se que Carlinhos Cachoeira atuava em diversos outros ramos, alguns dos quais legítimos; que os jornalistas sabiam disso; e que, apesar deste conhecimento, foram todos surpreendidos quando a Polícia Federal mostrou o relacionamento do cavalheiro com políticos importantes, entre eles o mais feroz oposicionista defensor da moral e dos bons costumes, senador Demóstenes Torres.

Goiânia é uma cidade agradável, ajardinada, bonita, com cerca de 1 milhão de habitantes; jornalistas, políticos, empresários frequentam os mesmos lugares, e todos se conhecem. Há jornais e emissoras de rádio e TV de muito boa qualidade. Não é possível imaginar que ninguém soubesse do relacionamento tão próximo do senador Demóstenes Torres com Carlinhos Cachoeira; nem se admite que a estranha proximidade entre um promotor público, fiscal da lei, e um, na melhor das hipóteses, contraventor penal, não provocasse nenhuma estranheza. Jornalistas, pelas características da profissão, precisam transitar com desenvoltura pelos mais diversos setores da sociedade, inclusive os menos recomendáveis (afinal de contas, de onde sairão as informações sobre o baixo-mundo?). Promotores e procuradores, como também os magistrados, não: têm de ser imaculados, têm de parecer imaculados.

Em determinado momento, o senador Demóstenes Torres muda de aparência, perde algumas dezenas de quilos, passa a usar roupas mais bem talhadas. Seu casamento foi discreto, mas é muito improvável que ninguém soubesse que o amigo Carlinhos Cachoeira lhes havia dado fogão e geladeira importados, iguais aos existentes na Casa Branca, em Washington.

Cadê as notícias? Notícia só existe depois que alguma autoridade vaza as investigações? Sem que a informação seja distribuída por alguma fonte oficial os meios de comunicação não comunicam?

Empresários, jornalistas, políticos, todos se relacionam bem, todos se conhecem, todos comem a boa feijoada do restaurante Pequi. E ninguém sabia de nada? O senador não sabia nem que o amigo era contraventor? Então, tá.

 

Afoitos amigos

Como não disse a comediante Kate Lyra, a imprensa brasileira é tão boazinha! Pois, tão logo surgiram as primeiras notícias sobre o envolvimento do senador Demóstenes Torres com o contraventor Carlinhos Cachoeira, 44 senadores de todos os partidos se apressaram em hipotecar-lhe solidariedade. A notícia foi publicada na ocasião; depois, foi convenientemente esquecida pelos meios de comunicação. Os senadores foram afoitos – mas cá entre nós, num país em que se sabe nome e sobrenome de amantes de pessoas importantes, em que se acompanha o crescimento dos filhos resultantes desses relacionamentos, em que se sabe o país em que vivem e as escolas que cursam, alguém acredita que ninguém soubesse do relacionamento Demóstenes – Cachoeira, ou desconhecesse a origem do império econômico montado pelo contraventor?

Enfim, para que os fatos sejam sempre lembrados (e, homenageando a cultura jurídica do senador Demóstenes Torres, a frase vai em latim: ad perpetuam rei memoriam), segue-se a lista de nomes de Suas Excelências que se solidarizaram com ele antes de saber direito do que é que se tratava, e que preferiram fugir à análise das acusações pelo caminho fácil da solidariedade corporativa:

Eduardo Suplicy (PT-SP); Luiz Henrique (PMDB-SC); Ana Amélia (PP-RS); Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE); Pedro Simon (PMDB-RS); Antonio Carlos Valadares (PSB-SE); Eduardo Braga (PMDB-AM); Lobão Filho (PMDB-MA); Randolfe Rodrigues (PSOL-AP); Vital do Rêgo (PMDB-PB); Álvaro Dias (PSDB-PR);Waldemir Moka (PMDB-MS); Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP); Cristovam Buarque (PDT-DF); Alfredo Nascimento (PR-AM); Romero Jucá (PMDB-RR); Cyro Miranda (PSDB-GO); Lúcia Vânia (PSDB-GO); Jayme Campos (DEM-MT); Blairo Maggi (PR-MT); Pedro Taques (PDT-MT); Inácio Arruda (PCdoB-CE); Vicentinho Alves (PR-TO); Aécio Neves (PSDB-MG); Roberto Requião (PMDB-PR); Mário Couto (PSDB-PA); Eunício Oliveira (PMDB-CE); Rodrigo Rollemberg (PSB-DF); Cássio Cunha Lima (PSDB-PB); João Ribeiro (PR-TO); Benedito de Lira (PP-AL); Casildo Maldaner (PMDB-SC); Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR); Flexa Ribeiro (PSDB-PA); Francisco Dornelles (PP-RJ); Paulo Paim (PT-RS; Jorge Viana (PT-AC); Marta Suplicy (PT-SP); Kátia Abreu (PSD-TO); Ricardo Ferraço (PMDB-ES); Armando Monteiro (PTB-PE); Antonio Russo (PR-MS); José Agripino (DEM-RN); e Ivo Cassol (PP-RO).

 

Questão de respeito

O volante Wesley, que surgiu no Santos e se transferiu, sem grande êxito, para o Werder-Bremen da Alemanha, acabou contratado pelo Palmeiras, de São Paulo. Foi uma contratação complexa, em que o clube brasileiro teve de buscar dinheiro com investidores para fazer o primeiro pagamento, e que demorou a concluir-se. Logo nos primeiros jogos, Wesley sofreu uma lesão grave: ruptura dos ligamentos, que exigiu uma operação e que, ao que tudo indica, irá mantê-lo por oito meses afastado dos gramados.

Uma tristeza para todos: Wesley, obrigado a uma cirurgia difícil; o Palmeiras, que arca com os salários, o custo do tratamento, e não pode utilizar o jogador; o investidor (ou grupo de investidores), que vê seus recursos imobilizados e só pode avaliar a possibilidade de retorno no final deste ano ou no início do ano que vem. Há, sobretudo, a tragédia pessoal, do jogador jovem que chega ao país cheio de esperanças e tem de adiá-las até que esteja recuperado.

Não se admite, portanto, que alguém faça piada com isso. Muito menos a imprensa. Um grande jornal publicou, como manchete desrespeitosa, sob uma foto do jogador, duas palavras: “No brejo”. É coisa que não se faz: antes de jogador, Wesley é gente, é pouco mais do que um menino. E poucas coisas são tão ruins como usar de escárnio ao tratar de problemas pessoais.

 

Brincando com preços

Em sua visita ao presidente Barack Obama, a presidente Dilma Rousseff levou-lhe uma garrafa de pinga. A informação oficial foi de que a cachaça, acondicionada numa garrafa revestida de brilhantes, custava R$ 220 mil.

Esquisitíssimo: primeiro, porque o Brasil não deveria distribuir mimos de tal valor a todos os chefes de Estado visitados por nossos presidentes (e escolher um presente mais caro para Obama pode pegar mal: só porque os EUA são mais ricos?); segundo, porque o presidente dos Estados Unidos, se receber um presente de alto valor, deve incorporá-lo aos bens da União – em vez de lotar onze caminhões para levá-los à sua casa quando encerrar o mandato.

A Assessoria de Imprensa da fabricante da caninha distribuiu nota assumindo o erro e dizendo que, embora exista uma garrafa com aquele preço, a que foi levada ao presidente Barack Obama custa um pouco mais barato: R$ 160.

Claro, foi a Assessoria de Imprensa que cometeu o erro de multiplicar por mais de mil vezes o preço da garrafa, né? Este colunista é bonzinho e acredita.

 

Ivan, o incrível

Começa agora e só termina em novembro o Projeto Paiol Literário, organizado em Curitiba pelo jornal Rascunho (com apoio da Federação das Indústrias, do Sesi e da Fundação Cultural de Curitiba). A abertura não poderia ser melhor: o escritor Ivan Ângelo, de texto impecável, delicioso, e uma pessoa ótima. Ivan, hoje colunista de Veja São Paulo, fala nesta quarta, 18, às 20h, no Teatro Paiol.

A palestra é transcrita no mês seguinte no jornal Rascunho; e pode ser lida no site do jornal. Vale a pena: este colunista trabalhou com Ivan no Jornal da Tarde de São Paulo, mas nunca lhe contou que foi um conto dele, publicado na revista Alterosa, que o convenceu de que escrever poderia ser sua profissão. O cursinho para Medicina foi abandonado pelo exercício do jornalismo.

 

Moya, o polivalente

Por trás do sucesso da TV Excelsior, há muitos e muitos anos, estava Álvaro Moya – que, entre outras coisas, dirigia um programa de grande audiência em que os astros eram um maestro, Enrico Simonetti, e sua orquestra.

Por trás do sucesso da Primeira Semana de Quadrinhos, de São Paulo, excelente promoção da Escola Panamericana de Arte, dirigida por Enrique Lipszyk, estava Álvaro Moya. Na revista Cult, de histórias em quadrinhos, estava lá Álvaro Moya.

Agora, o polivalente Álvaro Moya lança, pela Criativo Editora, A reinvenção dos quadrinhos. No livro, apresentado por Will Eisner (Spirit) e Jerry Robinson (Cartoonists & Writers Syndicate), Moya traz depoimentos e desenhos de mestres dos quadrinhos, a memória de seus encontros com eles, as histórias dos tempos em que os quadrinhos eram perseguidos por pais, professores e até o clero.

Um livro que merece estar na estante.

 

Arte cigana

Não há nada igual no país: o fotógrafo Rogério Ferrari percorreu 40 municípios baianos, registrando o dia a dia dos ciganos e suas diferentes condições de vida. Lançamento neste 21 de abril, às 19h, no Centro de Estudos Universais, rua Araçari, 218, SP. Haverá música (cigana) com quatro instrumentistas.

 

A humilhação da crase

Ferreira Gullar, grande poeta, meu antigo colega de Redação, cunhou uma frase clássica: “A crase não foi feita para humilhar ninguém”. O problema é que aquele acento agudo ao contrário está sendo humilhado pela imprensa escrita. E é tão fácil, gente! Se no masculino se diz “ao”, no feminino é “a” craseado. “Eu vou ao mar”, “eu vou à praia”.

Mas vamos a dois grandes jornais impressos, daqueles que em que a gente antigamente aprendia a ler, aprendia a norma culta do idioma, e que se intitulam, com orgulho, formadores de opinião:

** “(…) que foram à leilão”

** “Votação no STF terminou nesta quinta com 8 votos a favor e 2 contra à interrupção da gravidez”.

E em matérias assinadas!

 

Como…

De um press-release sobre a Restaurant Week de Curitiba:

** “Receita Linguado com crosta de creenchease”.

A receita deve ser “de” linguado”, este colunista imagina. Quanto ao “creenchease”, há várias possibilidades: talvez seja “Green cheese”. Aí há outras possibilidades: Green Cheese pode ser queijo recém-fabricado, que ainda não secou; pode ser queijo de cor verde, como o Schabziger suíço ou o búlgaro Cherni Vit. Ou talvez o tal “creenchease” seja “cream-cheese”, aquele parecido com requeijão. Você decide.

 

…é…

De um grande jornal impresso, comentando as últimas façanhas do médio volante Felipe Melo (aquele que foi expulso no Brasil x Holanda, da Copa, depois de pisar o adversário caído, e que agora bateu num colega de equipe):

** “Volante gosta da fama de mal”

Qual será o prêmio para jornal que publicar uma edição inteira sem confundir “mal” com “mau”?

 

…mesmo?

De um grande jornal impresso, de circulação nacional:

** “Só 2% dos municípios no Brasil teve boa administração financeira (…)”

A gente não pode nem reclamar. O mentor do livro dos “nós pega os peixe” não se considera merecedor de uma ascensão política?

 

Mundo, mundo

Uma das coisas mais incríveis dos meios de comunicação é o moralismo quase religioso que permeia o setor “celebridades”, seja lá isso o que for. Ao mesmo tempo em que buscam notícias de traições conjugais e insinuam, nem sempre corretamente, a formação de novos casais, esmeram-se os paparazzi da notícia em trabalhar como guardiães do comportamento humano. Digamos,

** “Miley Cyrus se distrai e acaba deixando parte do seio à mostra”

Nada que um biquíni comum, sem qualquer ousadia, não mostre com mais fartura.

Ou:

** “Estrelas tropeçam, se envolvem em escândalos sexuais, brigas e mostram mais do que deviam”

E quem decide o quanto deviam mostrar?

O que espanta, às vezes, é a ingenuidade: será que só eles não sabem que com muita frequência a exposição sem calcinhas, “por acaso”, ou um seio pulando fora do vestido, “por acaso”, de acaso não tem nada, só de golpe de publicidade?

Ou ainda:

** “Gisele Bündchen aparece só de biquíni em foto tirada nas Ilhas Virgens Britânicas”

A moça está na praia. Queriam que vestisse uma burca?

E pensar que houve época em que os jornalistas integravam a vanguarda das mudanças de comportamento!

 

E eu com isso?

E vamos ao que interessa (se duvida, veja o que está sendo discutido na sua sala de visitas, no escritório, na mesa ao lado do bar: dificilmente será a complexa situação política da Síria). Penteados rendem muito mais conversa.

** “De trança, Sandy se apresenta em São Paulo”

** “Kate Perry escurece os cabelos mais uma vez”

** “Emanuelle Araújo desfila com novo corte de cabelos pelas ruas do Rio”

** “Ashton Kutcher passeia ao lado de loira nos Estados Unidos”

** “Famosos circulam com seus cães, vão às compras, às praias e jantam fora”

** “Famosos curtem a noite de sábado no show de Maria Gadu”

** “Apresentadora Daniela Suzuki aproveita passeio em família”

** “Musa do UFC usa camisa do Pink Floyd”

** “Dado Dolabella está proibido de viajar por mais de um mês”

** “Da cantora Cláudia Leitte, sobre a gravidez de seu segundo filho: ‘Vou trabalhar até parir’”

 

O grande título

Parafraseando a frase clássica do deputado Roberto Jefferson, há títulos que despertam os instintos mais primitivos. Um deles, sobre Bobby Darin:

** “Sua esplendorosa volta ao palco aconteceu antes de sua morte”

Ainda bem – ou teríamos uma notícia sensacional.

Outro, sobre a jornalista Sônia Abrão, que tirou uma foto de maiô e a viu na internet (aliás, era um maiô inteiriço: foto recatadíssima, comportadíssima, superdiscreta, embora tenha sido tratada pela imprensa de fofocas como um escândalo). Frase de Sônia Abrão:

** “Achei que ninguém fosse ver”

Mas, depois de toda a propaganda em torno da foto, quem não a tinha visto, viu. E viu o maiô da jornalista cobrindo tudo o que o voyeur queria ver descoberto.

O grande título vem do vôlei:

** “Venturini diz que levantadora boa demora dez anos para aparecer”

Fernanda Venturini que nos perdoe, mas boa levantadora certamente aparece em grande quantidade. É só procurar um pouco.

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[Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados]