Em maio de 2008, publiquei neste Observatório uma crítica à forma distorcida como o Bom Dia Brasil cobriu um fato que envolvia interesses de indígenas (ver aqui). Alguns dias depois, a Rede Globo levou ao ar entrevista com um antropólogo que interpretou a ação audaciosa e até violenta dos indígenas como algo positivo, uma prova da vitalidade de sua cultura.
No dia 19/04/2012 foi a vez da Bandeirantes silenciar os índios. Durante o Jornal da Band, a cobertura do conflito envolvendo Pataxós e produtores rurais no sul da Bahia foi feita de maneira bastante distorcida e tendenciosa. Primeiro o narrador da matéria anunciou que há um litígio judicial sem solução no STF há décadas e que a área disputada foi demarcada como reserva indígena mas algum tempo depois começou a ser invadida por agricultores. Os invasores brancos da área indígena teriam conseguido títulos de posse. Depois foram feitas entrevistas com índios e produtores rurais. A distorção começa neste ponto.
A questão será solucionada pelo STF. Portanto, a disputa é jurídica e feita não no campo da cultura indígena mas no campo da nossa civilização branca e segundo as nossas regras legais. Mesmo assim, o Jornal da Band entrevistou alguns índios, os quais, por razões óbvias, não estavam em condições de defender sua causa com o perfeito conhecimento das nossas regras jurídicas. Eles não foram capazes de usar argumentos racionais aptos a convencer homens brancos pasmos em frente de suas TV de plasma. Por que o Jornal da Band não entrevistou o advogado que defenderá os interesses dos Pataxó no STF?
Sem valor jurídico
O tempo destinado aos índios foi bem pequeno. Muito mais articulados do que os Pataxós, os produtores rurais apresentaram seu argumentos num tempo bem maior. Outra distorção. Ao dar mais tempo a um dos lados na disputa, o Jornal da Band deixou implícito que apoia os fazendeiros contra os índios. A Rede Bandeirantes explora comercialmente uma faixa de transmissão pública. Portanto, o telejornalismo que produz deveria primar pelo equilíbrio e isenção. Não foi o que ocorreu neste caso.
Os fazendeiros disseram que compraram as terras e se apresentaram como proprietários das mesmas. Afirmaram que foram obrigados a abandoná-las à força, que não podem mais produzir leite e que estão tendo prejuízos. Calculadamente ou não, eles se apresentaram como vítimas e foram apresentados como vítimas da agressão indígena. Em frente das TV de plasma, proprietários brancos certamente ficaram pálidos de raiva dos índios malvados. Ao fim da reportagem, Joelmir Beting endossou a tese dos fazendeiros afirmando que o direito de propriedade deve ser respeitado. “É claro que deve, Joelmir”, responderam mentalmente milhões de telespectadores estupefatos.
É verdade, o direito de propriedade deve ser respeitado. Mas não necessariamente em benefício daqueles produtores rurais que disputam a área com os Pataxós. Afinal, qualquer estudante de Direito aprende rapidamente que terras públicas e terras indígenas devidamente demarcadas não são suscetíveis de apropriação privada. Aprende também que os títulos que declaram a propriedade destas terras não têm qualquer valor jurídico. A boa-fé ou má-fé de quem comprou terras públicas ou indígenas é, aliás, irrelevante. O título é nulo e não vai produzir o efeito desejado para garantir a propriedade e a posse da área. A única coisa que resta ao comprador nestes casos é exigir a devolução do dinheiro pago e indenização pelos prejuízos (não contra o Estado, e sim, contra aquele que lhe vendeu a coisa que estava fora do comércio).
Distorção lamentável
A Rede Bandeirantes é uma grande companhia e certamente tem vários advogados. Poderia consultar seu departamento jurídico antes de levar ao ar uma reportagem tão recheada de equívocos jurídicos. Mesmo assim, o clã Saad parece ter preferido difundir o erro em detrimento dos Pataxós. É por estas e por outras que a mídia brasileira precisa ser urgentemente regulada. A liberdade de imprensa deve ser preservada sempre, mas não pode justificar todo tipo de abuso. Reprimir o abuso da imprensa, especialmente da imprensa televisada que explora banda pública de transmissão, pode e deve ser um dever do Estado. Os veículos de comunicação não têm e não devem ter o direito de confundir o telespectador, de divulgar deliberadamente um erro, de discriminar um grupo social em detrimento de outro, de desinformar o cidadão ou de difundir ideologias nefastas que atentem contra o multiculturalismo assegurado pela Constituição Federal.
Em 19/04/2012, ficou evidente que, para os responsáveis pelo Jornal da Band, os índios Pataxó não têm direitos, não merecem respeito jornalístico e, pior, estão errados mesmo que eventualmente ganhem a causa no STF. Lamentável. Mais lamentável ainda será, entretanto, se a Band deixar de corrigir a distorção que cometeu. Num passado recente, a Rede Globo deu voz aos índios através de um antropólogo. Como agirá a Band, só os Saad é que sabem.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]