Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Johnny Depp para poucos

Johnny Depp não está acostumado a fracassos de bilheteria. Ele é a estrela de três filmes na lista dos que mais arrecadaram em ingressos em todos os tempos (dois da série Piratas do Caribe e Alice no País das Maravilhas). Mas seu mais recente lançamento, que começa a ser exibido no Brasil neste fim de semana, um projeto em que ele se envolveu com grande paixão e entusiasmo, tem sido um insucesso absoluto em todas as praças. Trata-se da transposição para a tela do romance Rum Diary, do jornalista Hunter S. Thompson, criador e único praticante conhecido do que se chamou de “jornalismo gonzo”, uma forma estilística de escrever tão caótica e criativa quanto a mente de quem a concebeu.

Depp foi amigo de Thompson (morto em 2005) e parece ter certa fixação por ele: já o interpretou em Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998), derivado de um famoso livro não ficcional (na medida em que não ficção era possível no trabalho dele) do jornalista. Diário de um Jornalista Bêbado, título no Brasil de Rum Diary, por sinal, faz lembrar em diversas passagens Medo e Delírio, que foi dirigido por Terry Gillian (ex-Monty Python e diretor de Brazil – O Filme) e teve Benício del Toro como astro ao lado de Depp. Aliás, os dois filmes também têm similaridades de estilo e conteúdo com outro, mais antigo, também derivado de um livro de Thompson, Uma Espécie em Extinção (Where the Buffalo Roam, 1980), este com Bill Murray no papel do jornalista e Peter Boyle como coadjuvante.

Provavelmente é quase impossível criar alguma coisa muito nova a partir de qualquer texto de Thompson. Não há muito como evitar constantes referências às drogas, que ele usava de forma tão desregrada que é um milagre ele ter sobrevivido até os 67 anos e ao delírio que elas produziam em sua imaginação inflamada.

Humor nada convencional

Ainda mais quando a tarefa de dirigir o filme, como nesse caso, é entregue a outro adepto do uso de substâncias (nesse caso quase exclusivamente álcool) como Bruce Robinson, que estava aposentado como cineasta e Depp tratou de recrutar para este projeto. Robinson, de 65 anos, famoso pelo magnífico Os Gritos do Silêncio (Killing Fields, 1984, baseado na história real de um correspondente de guerra americano no Camboja), pelo qual foi indicado para o Oscar, abandonou o cinema em 1987 após fazer Os Desajustados (Withnail & I), que – não por acaso – se tornou um dos favoritos tanto de Depp quanto de Thompson, em que personagens psicóticos e drogados encenam uma comédia profana que, com os anos, virou cult movie até agora reverenciado em círculos culturais underground.

Em Diário, Depp é Paul Kemp, um repórter parecidíssimo em modos e hábitos com o verdadeiro Thompson, que chega a Porto Rico na década de 1950 para trabalhar num jornal precário, quase absolutamente corrupto, num ambiente de vale-tudo com autoridades, empresários e jornalistas, o qual o jovem e idealista Kemp parece tentar combater, mas de forma tão atabalhoada, em grande parte por causa de sua dependência do álcool e outras drogas, que qualquer possibilidade de êxito, mesmo apenas em termos individuais, parece – e se torna – impossível.

Apesar dos aspectos sombrios de devassidão moral generalizada que a história retrata, trata-se de uma comédia de costumes que, em diversos momentos, consegue ser bastante divertida, e Depp se sai com a costumeira competência. Quem conheceu Thompson diz que o ator consegue recriar sua maneira de falar e andar com perfeição. É um humor anárquico, nada convencional, dele não se pode esperar muita verossimilhança e o exagero dos personagens e na ação trafega numa área de realismo fantástico. Talvez por tudo isso não tenha agradado ao grande público.

As perspectivas de voar sob influência de estimulantes externos

Robinson, que também escreveu o roteiro, reconhece que o resultado não é fiel ao conteúdo do romance de Thompson, mas sim, ao espírito do autor. Talvez por isso, das três adaptações de seus livros para o cinema esta seja a mais cinematográfica e mais fácil de se gostar, não o suficiente, no entanto, para cativar o cinéfilo médio. O Thompson real também foi para Porto Rico em busca de emprego, no início dos anos 60, mas – ao contrário de Kemp – não chegou a trabalhar lá. Ele escreveu Rum Diary logo após ter retornado do Caribe, as lembranças ainda frescas, mas o livro só foi publicado em 1998, aparentemente graças a Depp, que encontrou o manuscrito e convenceu o autor a editá-lo.

Pode-se dizer que Kemp era o Thompson final em fase de formação: ainda tinha alguns ideais, achava que podia melhorar o mundo, mas já estava tão absorvido pelas experiências alucinógenas que os tóxicos proporcionavam que não tinha muito como colocar em pé qualquer projeto estruturado de vida. Em Kemp, ao contrário do Thompson de Medo e Delírio, fato e fantasia ainda estão mais ou menos separados um da outra. Embora Kemp caia com frequência em delírios, ainda parece não ter perdido por inteiro o senso de realidade, como Thompson na sua cobertura de Las Vegas no filme anterior.

Pelo menos é essa a impressão que o filme passa do seu personagem principal. E é possível ter empatia com ele, embora – infelizmente para Depp e apesar de todo o seu esforço – isso não tenha ocorrido com número suficiente de pessoas para impedir a débacle financeira em que o projeto se transformou. Depp fez uma excursão universitária nos Estados Unidos para promover Diário. Mas tudo indica que a juventude americana está atualmente muito mais preocupada com as agruras financeiras que o país e ela própria enfrentam do que disposta – como gerações anteriores estiveram – a ocupar a mente com as perspectivas de quanto ela pode voar sob a influência de estimulantes externos, mesmo que apenas hipoteticamente.

Por isso, provavelmente, Diário de um Jornalista Bêbado fracassou.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa]