Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Liberdade é a liberdade dos outros

O governo acaba de mostrar o que é que entende por liberdade de expressão (ou, se alguém preferir, liberdade de imprensa): o Palácio do Planalto informou que o CQC está proibido de acompanhar as viagens da presidente Dilma Rousseff. O Ministério das Relações Exteriores anunciou que o CQC está proibido de entrar no Palácio do Itamaraty.

É antidemocrático, claro. E é burro: a grande reportagem não precisa ser feita no prédio onde vivem ou trabalham seus personagens. Quando fez a série das mordomias, Ricardo Kotscho não precisou ir à casa ou ao escritório de Sua Senhoria nenhuma para contar como funcionava a bandalheira. E, num regime autoritário, em sua fase mais dura, o repórter Ewaldo Dantas Ferreira foi proibido de viajar com o presidente Emílio Médici aos Estados Unidos. Viajou sem ele, longe da comitiva, fez reportagens antológicas para o Jornal da Tarde e não teve de conviver com aquela gente gosmenta que cercava Sua Excelência.

O governo atual, com as proibições ao CQC, mostra sua face autoritária e desconhecedora do que seja a liberdade de expressão. Já o Sindicato dos Jornalistas de Brasília, que propõe que o governo tome mais medidas contra o CQC, é pior: eles sabem, ou deveriam saber, que liberdade é a liberdade de quem pensa diferente de nós. Eles sabem, ou deveriam saber, que jornalismo é oposição: ficar pedindo favores ao governo é coisa de pelego, não de jornalista. E querer monopolizar a coleta e distribuição de informações é coisa de pelego corporativista.

A propósito, este colunista acha que o tipo de cobertura feito pelo CQC é um horror; aliás, nem o considera jornalismo. Mas quem é que vai definir o que é jornalismo não é este colunista, nem o pessoal que se julga de esquerda e não conhece o pensamento essencial de Rosa Louxembourg: é o público, é o consumidor de informação. Ou é o público que define o tipo de informação que prefere ou o jornalismo acabou: teremos de volta a ditadura militar, que de vez em quando implicava com o “baixo nível da TV” e obrigava as emissoras a transmitir concertos e ópera. Podemos ter, talvez, o Pravda ou o Izvestia, determinando qual a linha justa de pensamento; ou o Die Sturm, o favorito de Hitler.

Onde já se viu, sindicato de jornalistas pedindo censura?

 

As voltas que o mundo dá

Este colunista não se queixa de baixo nível de TV: se não gosta do programa, troca de canal. Se não houver nada de bom, abre o computador, pega um livro, vai passear. Que mania é essa de achar que os meios de comunicação são obrigados a publicar só aquilo de que gostamos? Seremos o umbigo do mundo?

Mas, voltando ao CQC, seu pessoal enche o saco dos entrevistados, usa técnicas desleais de entrevista (por exemplo, na edição, coloca nariz de palhaço em quem quer ridicularizar etc.) São escrachados, mesmo. E, talvez por isso, este colunista raramente dedica seu tempo a vê-los.

Mas o Sindicato dos Jornalistas de Brasília se queixa de que eles atrapalham as entrevistas, recebem o mesmo tipo de credenciamento dos jornalistas, embora sendo humoristas, e que o tipo de comportamento do CQC “gera vergonha e conflitos que frequentemente prejudicam o bom desempenho dos profissionais de imprensa”.

Vejamos o humorismo. Nem sempre há protestos contra o humor na imprensa. Por exemplo, quando o marechal Costa e Silva, com sólida fama de ignorante, foi diplomado presidente da República, o Jornal da Tarde cravou a manchete: “Costa e Silva tira diploma”. Tirando os militares, ninguém achou ruim, não. Quando o marechal Castello Branco, feio de doer, impôs uma lei de imprensa castradora, o Jornal da Tarde publicou uma série de manchetes, as únicas que, com a nova lei, seriam permitidas: “Castello é bom de bola”, “O presidente é bonito”, e algumas outras (os desenhos de Hilde Weber foram antológicos). Mais uma vez, tirando os militares, ninguém se queixou.

Quanto ao tipo de comportamento, basta ir a uma CPI em que o indiciado não esteja nas boas graças da imprensa para assistir a cenas que fazem o CQC parecer um grupo de freiras. Certa vez, houve suspeitas de que funcionários públicos estivessem presentes num interrogatório, para aplaudir o chefe. A mesa determinou então que os funcionários públicos presentes levantassem a mão. Uma repórter gritou várias vezes: “Manda eles ficarem de pé, que a gente escracha!”

É, há comportamentos que geram vergonha e conflitos que frequentemente prejudicam o bom desempenho dos profissionais da imprensa.

 

Quem é quem

Agora analisemos o aspecto prático do problema. A proibição de trabalhar envolve apenas o CQC? Então, a censura é, além de tudo o mais, discriminatória. Atingirá outros programas? Sabrina Sato não poderá mais convencer o senador Eduardo Suplicy a vestir cuecas vermelhas por cima do terno para aparecer na TV? E Jô Soares, será também proibido de fazer entrevistas, já que não apenas iniciou sua carreira como humorista como foi um dos grandes astros do humor brasileiro?

Pelo que este colunista tem lido, para o sindicato brasiliense jornalista é quem tem diploma de jornalista. O diploma resolve tudo: seu portador é competente, ético, profissional. E se alguém do CQC tiver diploma, que é que acontece? Vale o diploma, e ele é jornalista, ou vale o CQC, e ele deixa de ser jornalista para tornar-se humorista?

Sejamos precisos: o que este pessoal da tal regulação social da imprensa quer mesmo é dizer, um por um, soberanamente, quem é jornalista. “Jornalista é quem eu digo que é jornalista”. Simples assim. Antidemocrático assim.

 

Os mestres

Não é possível conhecer o tango sem saber quem foi Gardel, não é possível conhecer futebol sem saber quem foi Pelé, não é possível conhecer jornalismo sem conhecer o trabalho dos grandes jornalistas, do Brasil e do exterior. A Folha de S.Paulo lança um concurso dos mais oportunos: o “Folha Memória”, com bolsas de pesquisas patrocinadas pelos laboratórios Pfizer, para estudos sobre a História de Jornalismo. O vencedor terá o trabalho publicado e ganhará um laptop. Mas, na verdade, o vencedor do concurso é o jornalismo brasileiro, que se debruçará um pouco sobre sua história; e o público consumidor de informação, que terá, fornecendo notícias, profissionais mais bem equipados.

Nomes propostos pelo anúncio da Folha como objeto de pesquisa: só mestres, gente consagrada, de primeiríssimo time. Ali estão Nahum Sirotsky, fundador de Visão, Senhor, jornalista que levou a Manchete a realizar o sonho impossível de desbancar O Cruzeiro; Tarsila do Amaral; Angelo Agostini; Mário de Andrade; Francis Crick. Todos, mesmo os que se tornaram mais conhecidos em outros setores de atividade, tiveram o jornalismo como uma de suas maiores áreas de atuação.

Há outros nomes que certamente serão escolhidos por pesquisadores interessados no concurso: Alberto Dines, por exemplo. E Ewaldo Dantas Ferreira, Hermínio Saccheta, Janio de Freitas, Murilo Felisberto; e Reynaldo Jardim, Fernando Gabeira, Paulo Patarra, José Hamilton Ribeiro.

Para inscrever-se e ter mais informações, o endereço é www.folha.com.br/folhamemoria/ Inscrições até o dia 30 de abril.

Só falta mais um item para tornar tudo impecável: a divulgação de todas as pesquisas, premiadas ou não, para facilitar os estudos de jornalismo.

 

Cadê o Manual?

Há quase dez anos, com contrato e tudo, o bom jornalista Marco Zanfra hospedou seu Manual do Repórter de Polícia no Comunique-se. Um manual, diga-se, eficiente, completo. Agora o Manual foi retirado. Tudo bem: se uma das partes deixa de ter interesse por ele, encerra-se o vínculo. E, como tudo era de graça, mesmo, não há discussão financeira em torno do assunto.

O problema é que Zanfra quer os arquivos de volta – o que também é justíssimo. E não está conseguindo sequer obter uma resposta do pessoal burocrático do portal. Aí a coisa desanda: um bom relacionamento de tantos anos não pode ser encerrado com um gesto de descaso.

 

Imaginemos que

Em outros tempos, a imprensa se comportava como policial, promotor e juiz: o cavalheiro suspeito de cometer um crime era tratado como criminoso, e pronto. Não dava para continuar assim: a regra passou a ser tratar o suspeito como suspeito. Só que o pêndulo oscilou para o outro lado. O sujeito entra armado num bar, atira em meia dúzia de pessoas na frente de testemunhas, é filmado, preso com a arma na mão, diz que matou porque estava se vingando, e é chamado de “suposto atirador”. E, no entanto, não é difícil fazer uma boa reportagem, sem fugir da vida real: basta usar o bom senso e tentar descrever o que houve da melhor maneira possível, sem adjetivações.

Exemplo 1:

Uma advogada abriu uma conta judicial falsa. Em seguida, passou a procurar pessoas que estavam com dificuldade de pagar veículos financiados. Prometia revisar os financiamentos, prometia reembolso de parte da quantia paga, prometia reduzir drasticamente as últimas 12 prestações. Quem fornecia os boletos para depósito de seus honorários na conta falsa? A própria advogada – que, a propósito, evaporou-se. E como a imprensa noticia o caso? Trata a advogada como “suspeita”, que “supostamente” fornecia números falsos de processo – bem, o número do processo é questão de fato. Se o número é falso, não há nada de suposto na história.

Exemplo 2:

** “Estudante que teria xingado índios pelo Facebook pede desculpas; MPF vai investigar suposto racismo”

Bem, se o cavalheiro xingou índios pelo Facebook, há registro do fato. Logo, não “teria” xingado. Ou xingou ou não xingou. E seria normal que pedisse desculpas por algo que não fez?

Lembra aquela história do mensalão. O presidente Lula disse que foi traído e afirma que o mensalão não existiu. Se não existiu, como é que foi traído?

 

Última Flor do Lácio

Há coisas em que é difícil até acreditar. Um grande jornal, em matéria com assinatura de prestígio, noticiando as condições carcerárias de Carlinhos Cachoeira no presídio de segurança máxima de Mossoró, onde esteve antes de ser transferido para Brasília, diz que ele ficava trancado sozinho numa “sela”.

Este colunista já viu excelentes cavaleiros que pareciam pregados à sela, mas trancados, jamais. Aliás, seria muita maldade trancar alguém numa sela.

 

Livros a mancheias

Lázaro Piunti foi várias vezes prefeito de Itu, SP, teve influência política no estado, mudou totalmente de vida: transformou-se em escritor. Lançou poemas e agora entra na área do livro infantil, com Baile na Casa da Gramática. O lançamento ocorreu em Itu em 18/4, data de nascimento de Monteiro Lobato; haverá novos lançamentos em outras cidades, em datas a marcar. A renda do livro será totalmente entregue à Casa da Criança Paralítica de Campinas, à Escola de Cegos Santa Luzia, de Itu, e à APAE de Iperó.

 

Como…

Do portal noticioso de um grande jornal, referindo-se ao caso do jogador Oscar, disputado por Internacional de Porto Alegre e São Paulo:

** “De modo que o empasse está gerado e o atleta, por lei maior, tem o direito de exercer sua profissional”.

“Empasse” deve ser aquilo que acontece quando o passe sai errado e a bola é disputada por dois ou mais jogadores que querem “exercer sua profissional”. Como diria Pelé, entendje?

 

…é…

De um grande jornal, de circulação nacional, noticiando a expropriação da YPF pelo Governo argentino:

** “Venezuela, Equador, Bolívia e Equador já haviam tomado ações semelhantes”

E, pelo jeito, o Equador é reincidente.

 

…mesmo?

De um grande jornal, que se orgulha da precisão do noticiário:

** “(…) os 15 bilhões oferecidos pelo BNDES para financiamento do giro (…) representam apenas 0,5% das necessidades de financiamento do setor industrial”.

“Para financiar seu giro, a indústria de transformação gasta R$ 156 bilhões por ano, que correspondem a 7,5% do preço dos produtos industrializados”.

Agora vamos fazer as contas: se os R$ 15 bilhões do BNDES representam 0,5% das necessidades de financiamento, o total necessário seria de R$ 3 trilhões. Se R$ 156 bilhões por ano correspondem a 7,5% do preço dos produtos industrializados, o total da produção é de R$ 2 trilhões. Somando isso, R$ 5 trilhões. Há ainda a agricultura, a mineração, os serviços – e como é que o PIB nacional é bem menor do que os R$ 5 trilhões já calculados?

Alguém está brincando com os números.

 

Mundo, mundo

Um ministro do STF disse que o outro só foi nomeado pela cor da pele, o atacado revidou pesadamente, elogiando sua própria formação jurídica, a imprensa ouviu um, ouviu outro, deliciou-se com a troca de críticas entre os meritíssimos (talvez fosse melhor, tratando-se de gente tão refinada, de falar em “troca de doestos”), um ministro deu longa entrevista em que aproveitou boa parte do tempo para falar do outro, teve a devida e ácida resposta.

Só uma dúvida: apesar das dificuldades de lidar com o Olimpo, não caberia a algum repórter, ou pelo menos algum editorialista, discutir a falta de modos de pessoas tão importantes? Para usar a feliz expressão de José Sarney, a liturgia do cargo terá sido respeitada? Este é o exemplo que oferecem a juízes, advogados, estudantes de Direito e à população em geral?

 

E eu com isso?

E chega: para discutir o que vem sendo discutido, vale mais seguir os conselhos da então ministra Marta Suplicy, relaxar e divertir-se.

** “‘Não tenho temperamento para ser loira’, diz Paloma Duarte”

** “Mike Tyson diz ter engravidado policial quando esteve preso”

** “Apresentador do ‘Bem Estar’ vira piada após dançar kuduro”

** “Demi Lovatto dá entrevistas e posa para fotos antes de se apresentar no Rio de Janeiro”

** “Jesus Luz passa vergonha ao lado do seu novo affair”

** “Heidi Klum publica foto de adolescência no twitter”

** “Daniela Cicarelli fica loira antes de estrear na MTV”

** “Victoria Beckham brinca com aeromoça em voo para Pequim”

** “‘Descobri o sexo há quatro anos’, diz Mara Maravilha”

** “Camila Pitanga diz que mostrou ‘a alma da personagem’ em nu frontal de um novo filme”

Para mostrar a até a alma, deve ser um nu fantástico.

 

O grande título

Temos coisas notáveis: duplo sentido, enigma – aliás, enigmas. Comecemos com um dos enigmas:

** “Túlio encara ‘banho tcheco’ e bêbado atirador na busca por gol 1.000”

Deve ter sentido, claro. Alguém certamente entenderá o que está escrito. O que não tem sentido é levar a sério a busca do gol mil de Túlio: na conta, está valendo até gol do time de botão do Mauro Beting.

Aí vem aquele duplo sentido, levemente malicioso:

** “Mulher de dirigente põe marias-chuteiras da Inglaterra no chinelo”

Não, não há uma disputa entre a mulher do cartola e as marias-chuteiras. Apenas a moça é bonita, era modelo e tem marido rico – o empresário Anton Zingarevich, que comprou o clube inglês Reading. Isso significa roupas caras, boas joias e um toque de elegância. E só vai trocar o marido por um jogador de futebol no dia em que ficar maluca.

E cheguemos ao grande título enigmático:

** “Nem chuva, nem oceano: tocha olímpica é declarada à prova d'água”

Claro, claro .E não esqueçamos que o Titanic, cujo naufrágio acaba de completar cem anos, era à prova de naufrágios.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados Comunicação]