Já se tornou rotineiro ler nas páginas do jornal O Liberal que o senador Jader Barbalho comandou uma quadrilha que roubou dinheiro dos incentivos fiscais administrados pela Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia).
Aproveitando-se da circunstância de ter nomeado um dos superintendentes da instituição, José Arthur Tourinho Neto, o ex-governador teria se beneficiado pelo desvio de recursos aplicados por “laranjas” em projetos fantasmas. Assim, aumentou seu patrimônio pessoal através de enriquecimento ilícito.
Por causa de irregularidades comprovadas, o ex-ministro foi preso e algemado pela Polícia Federal ao ser transportado para outro Estado. Mas foi solto e responde a processos em liberdade, agora novamente perante o Supremo Tribunal Federal, em virtude de ter recuperado o foro privilegiado por sua condição de senador da República.
Os irmãos Ronaldo e Romulo Maiorana Júnior não chegaram a ser presos, mas também foram denunciados à justiça federal pela Procuradoria Regional da República. Ao contrário de Jader Barbalho, cujos processos se arrastam sem chegar ao final, já foram julgados – e absolvidos. Mas ainda não podem comemorar.
“Um engodo”
O Ministério Público Federal apresentou o primeiro recurso (o chamado recurso em sentido estrito) contra a decisão que favoreceu os irmãos e dois dos seus diretores, Fernando Nascimento e João Pojucan de Moraes Filho. A instância superior apreciará agora a questão.
Os donos do grupo Liberal foram salvos por uma controversa decisão do juiz da 4ª vara da justiça federal em Belém. Em “apertada síntese”,como ironicamente a definem os procuradores Igor Ney Figueiredo Viana e André Sampaio, o juiz Antônio de Almeida Campeloentendeu que a Sudamnão poderia ser considerada instituição financeira.
Por esse motivo, desclassificou os crimes contra o sistema financeiro nacional,descritos peloMPF como praticados pelos Maioranas.Feita a desclassificação, o magistrado declarouextinta a punibilidade das condutas, já quea pena máxima em abstratopara esse tipo de delito é de dois anos.
Os dois recorrentes consideraram “equivocada a desclassificação operada na sentença, bem como a consequente declaração de prescrição dos ilícitos”. Reiteram o pedido para a punição dos autores das fraudes, que lhes permitiram ter acesso a 3,3 milhões de reais (em valores históricos, até 1999) do orçamento do Finam.
Apesar de tomar uma decisão com base em preliminar, o juiz chegou a fazer considerações sobre o mérito do tipo descrito na ação penal “apenas para argumentar”.Sempre em favor dos réus, apesar da sólida argumentação e das provas juntadas aos autos pelos representantes do Ministério Público Federal para caracterizar que fraude no uso de incentivos fiscais, “com taxas de juros menores que as do mercado financeiro”. é, de fato, crime contra o sistema financeiro nacional (os de “colarinho branco”).
Com esse enquadramento legal, o crime tem pena máxima de 6 anos de reclusão, aumentada de um terço, gerando prazo prescricional de 12 anos. Como as fraudes praticadas pelos Maioranasocorreram em 7 de novembro de 1996 e 10de setembro de 1997, e a denúncia foi recebida no dia 25 de agosto de 2008, “nota-se que não se operou a prescrição, na espécie”, dizem os dois procuradores no recurso.
Essas fraudes consistiram na simulação da aplicação de recursos próprios pelos dois irmãos para se credenciarem a receber a contrapartida dos recursos administrados pela Sudam. Só que o capital próprio não passava de empréstimo levantado pelos Maioranas junto ao BCN. O dinheiro dormia um único dia na conta da empresa beneficiada, a atual Fly Açaí do Pará (anteriormente, Tropical Indústria Alimentícia), justamente quando a Sudam liberava a sua parte, que representava metade dos recursos totais.
No dia seguinte o dinheiro era devolvido ao banco emprestador. Mas não, evidentemente, os recursos públicos, originados de renúncia fiscal da União. É o imposto que, ao invés de ser depositado no caixa do tesouro nacional, foi parar na conta de empresários inescrupulosos, como os dois Maioranas.
Assim se fechava o ciclo “em que os recursos que caberiam aos sócios não permanecem na empresa e nem deixam sinais de que teriam sido aplicados no projeto”, denunciam os representantes do MPF.
No entendimento deles, ficou claramente demonstrado “que a integralização de ações próprias exigida para a obtenção dos recursos do Finam [Fundo de Investimento da Amazônia] não derivou das disponibilidades financeiras dos acionistas e não se aperfeiçoou na época legítima, resultando de um mútuo bancário fraudulento, devolvido no dia seguinte. Tal operação foi um engodo, preordenando-se exclusivamente a simular a injeção de capital privado”.
“Capital dito próprio”
A fraude cometida na agência do BCN foi completada por outra fraude, através da simulação feita nas atas do Conselho de Administração da empresa dos Maioranas, “que determinaram a emissão e a subscrição desses (falsos) aportes de recursos próprios”, relatam os procuradores da República. Na simulação, os envolvidos chegavam ao requinte de suspender a reunião, para preparação do boletim de subscrição das ações emitidas, com o consequente aumento do capital social da empresa.
Essa ata apenas concretizou, como mostram os procuradores, “uma simulação do aporte de capital, e foi elaborada tão somente para dar ensejo à liberação da parcela que cabia ao Finam destinar ao projeto”.
A manobra foi confirmada pelo auditor fiscal da Receita Federal Alan Marcel Warwar Teixeira, ouvido como testemunha no curso da instrução processual. Ele participou das fiscalizações realizadas na Tropical. Na primeira, em 2002, disse que no endereço da empresa “existia apenas um galpão, que a empresa não existia de fato, que a partir daí passou a analisar a contabilidade da empresa e a rastrear os recursos liberados pelo Finam para a empresa para verificar eventual desvio de recursos neste repasse; que não constatou desvio dos recursos do Finam, contudo, verificou que os valores que deveriam ter sido apontados pelos sócios da empresa no investimento em realidade não haviam sido implementados, conforme exigido pela liberação do repasse; que o procedimento de liberação de verba verificado era sujeito a fraudes, que para essa liberação era exigido, além de outros requisitos, apresentação de extrato bancário comprovando o depósito do valor equivalente ao montante a ser liberado pelo Finam pela empresa; que tal procedimento era de fácil burla, pois a empresa poderia, por exemplo, realizar um empréstimo bancário no valor exigido para depósito, apresentar o extrato comprovando o depósito do valor na conta da empresa, e no dia seguinte retirar o valor da conta para a quitação do empréstimo (…) que na ocasião da fiscalização verificou que os projetos estavam atrasados e os recursos destinados para a empresa não tinham permanecido na conta (…) que os registros contábeis não correspondiam aos resultados contábeis apresentados (…) que independentemente do resultado do projeto, o fato é que a empresa não comprovou o aporte de recursos necessários no momento em que deveria tê-lo feito; que ratifica o relatório a que se refere a denúncia”.
Em suadecisão,o juiz Campelo, “apenas para argumentar”,já que se limitou a apreciar as questões preliminares,passoua fazer considerações sobre o mérito do tipo penal corretamente aplicável ao caso. Embora sempre ressalvando que o seu entendimento era no sentido da desclassificação do delito, que permitiu absolver os acusados pelo MPF. Ou seja: foi além da sua função judicante, funcionando quase como advogado de defesa dos réus.
Nesse exercício – digamos assim – filosófico, o magistrado fez questão de destacar que os Maioranas, no decorrer da implantação do projeto, injetaram recursos privados em valores superiores ao inicialmente previsto, “ainda que se admita, como referenciado pelo Ministério Público Federal, a falta de efetividade nos três primeiros aportes de capital privado”.
Assinalou, em seguida, que “não houve qualquer desvio de recursos recebidos pelo Finam, por parte da Tropical”. E concluiu garantindo que “o fato típico, ainda que se admita, para argumentar, configurado num primeiro momento, esvaziou-se”. Para o magistrado, essa situação retirou o caráter ilícito das condutas imputadas, por ausência de ofensividade, podendo-se configurar o arrependimento eficaz, que levaria à atipicidade do fato.
Os promotores consideraram tais conclusões do julgador “juridicamente insubsistentes”. Destacaram que a denúncia “deixou bem claro que não se imputa aos réus, na espécie, o desvio dos recursos liberados pela Sudam”. Se tivesse havido desvios, além do crime no qual os Maioranas foram enquadrados na ação, eles estariam incursos também no ilícito da conduta de quem aplica, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, os recursos provenientes do financiamento.
“Aliás – completam os procuradores – a ausência de desvio dos recursos foi o que levou ao arquivamento dos autos no âmbito da improbidade administrativa, embora tal constatação não gere qualquer consequência em relação ao tipo criminal da fraude na obtenção do financiamento”. A imputação feita pelo MPF “cinge-se, assim, à obtenção do financiamento com o uso de fraude”, enfatizam os dois procuradores.
Para eles, o que houve foi que os Maioranas e seus diretores “driblaram” os requisitos para receber os incentivos fiscais, “uma vez que, sob o signo de aumento de capital com recursos próprios, contrataram, por duas vezes, empréstimos com prazo real de um dia, no valor correspondente aos anunciados aumentos de capital, para dar ensejo às liberações da Sudam. Comprovado o depósito dos recursos na conta do Basa (com o que garantiam a respectiva liberação do Finam), retiravam, imediatamente, o capital dito próprio e, com ele, pagavam o empréstimo contraído junto ao BCN”.
Ou seja, repisam os autores do recurso: “não houve, no momento adequado e exigido pelo sistema Finam, ingresso de recursos próprios na empresa. Ao menos nesse momento, a empresa navegava com capital da Sudam descoberto da contrapartida de capital privado”.
“À disposição dos intérpretes”
Contestam a ressalva do juiz, que, sempre argumentando em tese (e a favor dos acusados), alegou que, de qualquer maneira, o arrependimento eficaz podia anular o delito: “Se, anos depois, os sócios, pelos mais diversos motivos que lhes possam ter ocorrido (arrependimento, solvabilidade, confiança na lucratividade do empreendimento etc.), colocaram recursos pessoais no projeto, até mesmo em montante superior ao que, no passado, fora exigido pela Sudam, essa circunstância é desimportante para a consumação dos crimes em destaque. Em uma palavra: a fraude na obtenção das liberações já se consumara nos dias 07 e 08 de novembro de 1996 e nos dias 10 e 11 de setembro de 1997”. Algo elementar em direito, mas que não impressionou o juiz Campelo.
“A levar-se a efeito a tese esposada na decisão recorrida – continuam os procuradores – as instituições públicas estariam fazendo tábula rasa de todo e qualquer requisito previsto para um financiamento público. Bastaria que o interessado fraudasse, a mais não poder, a entidade concedente no momento do pedido do financiamento, driblando os requisitos exigidos com dados simulados, e, em seguida, aplicasse os recursos assim recebidos no fim previsto no contrato, para que os ilícitos iniciais se apagassem”.
Apontam ainda “o absurdo dessa construção, que retira qualquer eficácia do art. 19 da Lei 7.492/86. Foi exatamente isso o que ocorreu no caso em exame: os denunciados ilaquearam o sistema Finam, simularam requisitos notórios para obtenção dos recursos públicos, obtendo o financiamento. Anos depois, aí sim, colocaram o capital próprio no projeto. Para a argumentação lançada na decisão, as fraudes iniciais, cabalmente comprovadas, teriam desaparecido, teriam perdido a relevância penal”.
A conclusão do juiz Campelo, “bem se vê, não pode ser agasalhada”, arrematam os representantes do MPF. “Como cediço, o arrependimento, nas condições deste caso, não apaga o crime presente nas condutas, recebendo, do direito penal, outros significados, como alguma possível valoração positiva na fase do art. 59 do CP”,o Código Penal.
E concluem: “A empresa Tropical, ao driblar, fraudulentamente, as rígidas regras de obtenção de financiamentos do Finam, obteve recursos num momento em que a eles não fazia jus, tornando menor a disponibilidade do sistema para atender a outras empresas e frustrando o interesse nacional de promover-se o desenvolvimento equilibrado do país”.
Sustentam, por fim, que a jurisprudência brasileira “está à disposição dos intérpretes e deixa escancarado que, para a consumação do delito do art. 19 da Lei 7.492/96: a) não é necessário que o agente tenha a intenção de inadimplir o contrato de financiamento; b) não é necessário que ocorra prejuízo à instituição financeira, pois o prejuízo não integra o tipo penal; c) é indiferente a consolidação de benefício em favor do agente do crime”.
Resta saber por quem se inclinará o poder judiciário em Brasília.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]