Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Deus e o Diabo na redação

O texto a seguir serviu de base para um dos capítulos do livro que Mylton Severiano escreveu sobre a história do jornal O Estado de S. Paulo. Nascidos para perder, é o seu título. Espero que meu texto seja útil a uma reconstituição correta da parte da história do jornal a que me referi.

– Já acabamos com repórter, editor e dono de jornal. Vamos acabar agora com o pauteiro.

Era o recado do todo-poderoso Antônio Delfim Netto. Dias antes, naquele já distante 1973, O Estado de S. Paulo dedicara sua última página a denunciar a manipulação do índice de inflação pelo ministro da Fazenda do general-presidente Emílio Garrastazu Médici. O mago do “milagre econômico”, graças ao crescimento da riqueza nacional acima de dois dígitos por ano, fora flagrado no contrapé.

Impusera ao IBGE rebaixar a inflação, para acomodá-la num padrão incomum de harmonia com o crescimento do PIB, que atingiu seu maior índice (11,4%) exatamente nesse ano. Confirmaria que estávamos na “ilha de tranquilidade num mar revolto”, conforme a alegoria comparativa entre o Brasil afluente e o mundo em crise.

Um técnico do instituto vazara a inconfidência. Com uma pauta detalhada e um acompanhamento rigoroso a partir de São Paulo, a sucursal do Rio de Janeiro levantara toda a história. Checada minuciosamente, a matéria foi entregue ao editor e submetida à direção da empresa. Os Mesquita também estavam convencidos que Delfim Netto era um gênio da raça.

A seção econômica de seu jornal, comandada pelo austríaco Frederico Heller, incensava o formidável professor da Universidade de São Paulo. O francês Robert Appy era um dos seus mais íntimos interlocutores na imprensa. Heller e Appy eram conservadores e governistas, mas também eram respeitados por seu saber, sua biografia (Appy combateu os nazistas durante a ocupação da França) e a lisura pessoal.

Novo dia

Era um fim de noite e Appy acabara de retornar de mais uma das constantes viagens a Brasília. Seguiu direto para a redação do Estadão, onde encerrávamos a edição com aquela satisfação pós-coito que o fechamento do jornal diário proporciona. Estava na minha conversa de balanço final do dia com Raul Martins Bastos, meu chefe no Departamento de Sucursais e Correspondentes, quando Appy chegou. Tirou o casaco do paletó, desafogou a gravata, sentou ao nosso lado, ouviu por algum tempo e interveio na conversa para transmitir a mensagem do ministro, com quem mais uma vez conversara em off. Repetiu as palavras de Delfim e permaneceu sereno, me observando. Depois de algum tempo de silêncio, respondi ao mensageiro:

– É o maior elogio que já recebi na minha vida.

Eu era o principal pauteiro das sucursais e correspondentes do jornal dos Mesquitas. Estava por trás daquela pauta, como de várias outras – antes e depois – que provocaram ou ainda viriam a provocar irritação ao governo federal. A matéria sobre a manipulação no índice anual de inflação provocara grande impacto. Não só pelo seu conteúdo. Também por ter saído no Estadão – e com destaque, ocupando toda a última página.

Como deixaram passar essa bomba os Mesquita, tão ligados a Delfim? E, ainda por cima, a seção econômica, monocórdia no apoio ao ministro, símbolo da aliança entre os tecnocratas e os militares. Nada entendendo de economia, grave lacuna no currículo das escolas que os formavam, o chefes militares se sujeitavam a se tornarem cegos guiados pelos sacrossantos técnicos.

Era um governo centralizador e autoritário. Praticava uma forma de populismo sob controle estrito: o presidente era fã de futebol e se compadecia do povo, que empobrecia enquanto o país enriquecia. “A economia vai bem, mas o povo vai mal”, admitiu o general num discurso famoso, escrito pelo general Octávio Costa. Mas também seguia a com ortodoxia técnica. Combinava formalismo jurídico com a pior repressão política da república brasileira em todos os tempos.

A surpresa e a raiva dela resultantes foram tão fortes que o ministro sucumbira à reação emocional descabida – e desproporcional. A exibição de força traía também fraqueza. Inteligência privilegiada, que a aplicação aos estudos afiara, Delfim ficara sem resposta. Por isso recorreu a outra face do regime: a ameaça.

Appy pegou o paletó, vestiu-o com calma, passou ao meu lado, tocou meu ombro e, antes de se ir, deixou uma observação plácida:

– Vá em frente.

Parecia satisfeito.

Raul e eu ainda ficamos um pouco mais. Ruminávamos e saboreávamos o episódio desconcertante. Depois fomos embora, cada um na própria direção. Terminara mais um dia de trabalho pesado. O novo dia ainda estava escondido na noite, mas logo surgiria para nos tirar da cama e nos recolocar na redação, no 7º andar da rua Major Quedinho, na transversal da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro antigo de São Paulo.

Versos de Camões

Mesmo com aquele acontecimento imprevisto (e imprevisível), não sentíamos que a rotina tivesse sido interrompida. Se o czar da economia descera dos seus tamancos para atirar contra nós os raios da sua ira, o problema era dele, não nosso.

Fizemos nossa obrigação: fornecer informações de relevância para os nossos leitores. Informações precisas, verdadeiras. Se o ministro não podia desmenti-las nem desacreditá-las, o recurso à força, através dos labirínticos bastidores do poder, naquela época soturnos, formados por numerosas esquinas e desvios, era inócuo. Não podia nos assustar nem nos demover do compromisso de repetir aquele tipo de trabalho.

No entanto, estávamos fazendo uma história particular também de relevância, que só agora coloco no papel para este livro. Era uma disputa que Gláuber Rocha podia acrescentar como anexo ao seu Deus e o Diabo na Terra do Sol, a mais profunda alegoria do cinema brasileiro. O conservador e plutocrata O Estado de S. Paulo enfrentava a poderosa engrenagem do “sistema”, o aparato da segurança nacional, integrado por aqueles personagens dos “bolsões sinceros, porém radicais”, na definição conveniente e conivente do futuro general-presidente Ernesto Geisel (que “defenestraria” Delfim para a embaixada brasileira em Paris).

Como nunca antes, o governo federal montara um vasto aparato de produção de informações, que se desdobrava pelos desvãos da burocracia federal, como camadas de gordura pegajosa. A “comunidade” incluía o SNI, as segundas seções, os CIEs e CIEXs, Cenimar, DOI-Codi, Dops e muitas outras siglas. Todos a bisbilhotar diretamente ou através de dados secundários, com a colaboração de terceiros ou pela via direta dos seus agentes.

Um paquiderme que canalizava seus dados para o topo do poder. Nem todos os produtos eram de qualidade ou confiáveis, mas a massa saída dessas centrais era considerável. A imagem do Grande Irmão de George Orwell, na sociedade totalitária, não era bem recebida pelo governo. Mas era justíssima para simbolizar o que ele era.

O governo tudo sabia e podia. Mas e a sociedade? A sociedade estava amedrontada e imobilizada. Uns poucos também sabiam de muita coisa, mas o grosso da informação que circulava não passava de boatos, dados não consolidados ou inconclusos. Mais confundiam do que permitiam a reconstituição – e a compreensão – da realidade, do que efetivamente acontecia por trás do mais intenso processo de manipulação desde os tempos do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945).

O SNI foi criado em 1965 pelo general Golbery do Couto e Silva, o maior intelectual com espada do regime militar. No início, não provocou muito respeito. Carlos Lacerda, o mais brilhante civil do golpe militar de 1964, no governo da Guanabara (o atual Rio de Janeiro), dizia que o serviço não funcionava às segundas-feiras. Nesse dia a maioria dos jornais brasileiros (e justamente os principais) ainda não circulava. Os agentes não tinham o que ler para recortar e carimbar como sendo produto próprio.

Com o tempo, os arapongas foram se adestrando. Era uma das atividades prioritárias do governo, que investia pesado para ser bem informado e não deixar que os outros, sobretudo os adversários e inimigos, se informassem ou prestassem informações à sociedade. Enquanto coletava dados, que circulavam através desse circuito secreto ou mesmo clandestino, tratava de censurar os veículos de comunicação.

De 1968 a 1975 O Estado de S. Paulo foi censurado pelo governo. Mas não se dobrou à força: continuou a acompanhar os acontecimentos como se não houvesse um censor instalado na redação para cortar tudo que desagradasse aos donos do poder. Para glória dos que combateram a tentativa de amordaçamento, o posta-restante de matérias censuradas se avolumou enormemente.

Para cobrir os buracos deixados nas páginas do jornal pela censura, todos os versos de Camões nosLusíadas foram publicados duas vezes. Mesmo que essas informações não chegassem ao leitor, mostravam ao censor (o seu representante físico ou a entidade mais ampla por trás dele) que não só o jornal continuava a saber a verdade como estava disposto a continuar a buscá-la.

Os melhores

Se fosse possível comparar o que o Estadão e o SNI apuravam sobre o mesmo assunto, provavelmente o resultado seria favorável ao jornal. A empresa conseguiu montar uma rede de informantes melhor do que a dos órgãos oficiais, ainda que menor e muito menos onerosa, em todos os sentidos. Os repórteres das sucursais e os correspondentes tinham uma média de qualidade superior à dos arapongas. E estavam mais motivados do que eles.

Não usavam os dados para perseguir, punir ou violentar. Nem precisavam recorrer à força para arranjar bons informantes. Sua motivação era profissional, combinada com um tanto de dedicação à “causa”. Eram recompensados por esse empenho. Seu salário costumava ser melhor do que o padrão do local onde atuavam e tinham ao seu lado a força da mística, da credibilidade e da influência de O Estado de S. Paulo.

Uma vez, quando se encontrava assediado por microfones de jornalistas por todos os lados, o então senador Jarbas Passarinho, o militar que mais vezes ocupou ministérios durante a ditadura militar, saiu-se com uma de suas “blagues”:

– Na época dos IPMs [Inquéritos Policiais Militares, instaurados às centenas após a deposição do presidente João Goulart], nós devíamos ter contratado jornalistas para obter as informações dos indiciados.

Velho conhecido do coronel acreano, criado no Pará, respondi no ato:

– Pelo menos não seria necessário torturar ninguém para isso.

Os condôminos do poder militar, que recebiam cópia do material censurado ou dele tinham notícia, às vezes se surpreendiam com o que liam. Como é que o jornal conseguira saber daquilo, que era considerado secreto, fora do alcance mesmo de gente bem posicionada no topo do poder?

O grande jornalista Jack Anderson escreveu certa vez que nenhum fato resiste a uma boa investigação. A partir do início dos anos 70 do século passado, os repórteres do Estadão passaram a ter as melhores condições para apurar os fatos. Os salários foram continuamente reajustados para cima e mesmo os correspondentes instalados nos extremos da Amazônia passaram a ter relação profissional estável com a sede paulistana da empresa. Sabiam que podiam contar com o calor da matriz sempre que alguma frente fria os ameaçava.

Lembro só um episódio, dos mais exemplares. O governador do Acre, Geraldo Mesquita, contrariado com a cobertura jornalística do seu estado, vinha ameaçando o correspondente em Rio Branco, Élson Martins. Com a aprovação do diretor-responsável pelo jornal, Júlio de Mesquita Neto, e a autorização de Raul Bastos, marquei um encontro em fim de tarde com o governador, no palácio do governo, levando Élson comigo.

Pedi que Mesquita apresentasse suas razões e as contraditei. Quando, sem argumentos, ele quis recorrer à tradicional “carteirada” dos poderosos, disse-lhe que qualquer ato contra o correspondente seria um ataque direto ao jornal, que reagiria com seus meios. Se quisesse medir forças, o governador ia ter o Estadão do outro lado. Mesquita desistiu e Élson prosseguiu no seu trabalho.

Essas coisas só se tornaram possíveis porque o “doutor Júlio”, como todos o tratavam, avalizou esse tipo de cobertura jornalística. Sempre que chamado a decidir se uma matéria devia ser produzida ou não, ele dava sua aprovação, mesmo que a atitude implicasse em nova fonte de atrito com os militares.

Chegava a confrontar os tecnocratas, que na redação receberam o título de “engenheiros”, pautados pelas estatísticas e os critérios de rentabilidade, querendo impor normas de uma empresa genérica, inaceitáveis numa organização jornalística. Uma boa reportagem, que exige tempo e dedicação integral, não pode ser enquadra numa relação estreita de custo/benefício. O Estadão dessa época bancava o custo elevado de produzir matérias de primeira, ainda que parte ou a totalidade dela não chegasse às páginas impressas.

Sob o comando de Raul Bastos, montou-se a melhor rede de sucursais e correspondente que uma empresa jornalística já teve. Foi preciso mudar muita gente, que se acomodara, transformara o jornalismo num “bico”, o subordinara a outros interesses ou era incapaz de se ajustar à nova diretriz editorial, que exigia independência e capacidade crítica. Uma das mudanças mais difíceis foi em Vitória, no Espírito Santo.

O correspondente, José Luiz Hollsmeister, estava na função há muitos anos. Quase não enviava matérias para São Paulo. Convidei-o para um almoço e lhe disse que iríamos contratar um novo repórter. Ele começou a lacrimejar. Agoniado, fiz todas as ressalvas possíveis.

Vitória era o terminal do maior trem de minérios do país, que extraia ferro de Minas Gerais, e as coisas cresciam a partir do porto de Tubarão. Tínhamos que acompanhar os acontecimentos de perto. Por isso era necessário contar com uma pessoa mais nova e mais disposta a olhar no olho do leão – no caso, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce.

No entanto, o jornal forneceria o modelo de uma ação trabalhista para que Hollsmeister cobrasse todos os seus direitos trabalhistas que não haviam sido reconhecidos, inclusive a ausência de relação de trabalho. O jornal não recorreria da decisão, que seria favorável ao empregado. Ele limpou os olhos com o lenço, muito digno, e disse que jamais faria isso. Fora honrado pelo trabalho para o Estadão. Não reclamou nada.

Como quase todos os que foram substituídos. Do Rio Grande do Sul a Roraima, sem uma só falha, passamos a ter alguns dos melhores repórteres do país. E a maior e melhor rede amazônica, com uma sede regional em Belém, ocupada por quatro pessoas, mais dois correspondentes no interior do Pará, e repórteres em todas as oito outras capitais da região.

Pautas antológicas

A verdadeira história amazônica, rica em detalhes e reconstituições, está nas páginas do jornal na bem arrumada coleção da sede paulistana, à espera de pesquisadores argutos e sem preconceito contra o jornalismo.

Era preciso dar o devido crédito a esse pessoal e manter o torniquete da cobrança em evolução. Nossas pautas eram detalhadas e exigentes. Mas a relação não ficava nas mensagens transmitidas por telefone ou telex, o meio de comunicação mais moderno de então. Cobrava-se o prazo estabelecido. E como cada matéria era lida com atenção, detalhes confusos ou sua falta impunham ao repórter que reescrevesse o texto. Não era raro que devolvêssemos textos insatisfatórios, acompanhados por nova pauta. Ou, como a ferramenta ficaria conhecida, a contrapauta.

Esse diálogo foi se ampliando e sendo detalhado. Era um material rico, o que hoje poderíamos chamar de intranet. Surgiu então a ideia de um jornal interno, que circulasse na sede e por toda a rede de sucursais e correspondentes. O próprio Raul Bastos se incumbiu da tarefa, tornando-se, a rigor, o primeiro ombudsman da imprensa brasileira, conforme o conceito moderno. Ele aproveitava as contrapautas e outras observações produzidas durante o processo diário de edição, costurava tudo com seu texto enxuto e perspicaz, fazia suas próprias considerações sobre o jornal já impresso e mandava em frente. Logo, o JR (Jornal do Raul) se tornou leitura obrigatória, tão ou mais aguardada, ao menos pelo “público interno”, que o próprio jornal dos Mesquita. E fonte de algumas polêmicas e contrariedades também.

Estávamos dispostos a comprar as boas causas e travar o bom combate. Íamos à mesa dos editores ouvir suas queixas e pedidos, mas também transmitíamos a voz da rede nacional. E quando a edição mutilava ou prejudicava o aproveitamento de matérias, que tinham resultado de um longo e intenso processo de produção, fazíamos nossas críticas ao resultado obtido.

Às vezes esse trabalho era realizado sobre o leite derramado. Às vezes mudava o curso da edição. Alguns editores, acostumados a decidir com absolutismo, como donos do terreiro, não gostavam. Nessas horas a autoridade de Raul se impunha. Se precisasse, ele batia na mesa com energia e se algum editor ameaçava com o tradicional “sabe com quem está falando”, Raul lhe dobrava a cerviz. Exigia que a decisão fosse tomada pelo melhor critério e o argumento mais convincente, não pelo princípio da autoridade. Vencia quem era o melhor. Porque se fosse para gritar, Raul gritava mais alto.

Ele é o maior jornalista de retaguarda que já conheci na imprensa brasileira. Na linha de frente, para onde eu me atirava sempre que podia, mesmo quando ainda era pauteiro nacional em São Paulo, ou já como correspondente em Belém, deslocando-me constantemente para os confins amazônicos, sempre era encontrado pelo Raul a partir da sede. Nunca ele deixava o enviado especial sem uma orientação, além de muito estímulo e conforto. Vibrava com o que o repórter fazia, tanto que também dava seus pulos ao front, fazendo excelentes matérias. Pena que tenha ficado mais tempo na “cozinha” do jornal. Seria também um puta repórter, como se costuma dizer em São Paulo.

Esse contexto ajuda a entender a raiva do todo-poderoso Delfim Netto com o pauteiro, figura antiga na redação, mas que certamente só atingiu importância capaz de irritar os deuses do Olimpo fardado com a reforma interna do Estadão. Os pauteiros anteriores eram quase burocratas, que apareciam nas redações com a manhã, cumpriam sua missão até a primeira reunião de pauta e depois voltavam para seus afazeres outros. Não participavam da edição nem tinham uma relação tão intensa com repórteres e editores. Havia exceções, mas eram poucas.

Pautas antológicas só eram produzidas em ocasiões especiais, como na famosa edição sobre a Amazônia da revista Realidade, da Editora Abril, em 1971. A pauta foi criada por Raimundo Rodrigues Pereira. Alguém, algum dia, deverá recolher essas peças e reuni-las num livro inédito sobre o tema. Certas pautas soam melhor do que as matérias que suscitaram.

Alegria pura

A importância da pauta nesse novo contexto também foi marcante em relação ao surto de meningite meningocócica em São Paulo, em 1973. Foi a maior epidemia de meningite urbana de todos os tempos, com mais de duas mil mortes. Todos os dias o Estadão publicava material sobre a meningite e contrariava o que o governo dizia sobre a doença. A versão oficial era de que a doença estava se espalhando por causa do frio, que prolongava a sobrevida da bactéria no ar, possibilitando o contágio através da saliva no contato direto entre as pessoas.

Com o pouco conhecimento geral a respeito, no início essa tese foi aceita. O aprofundamento da cobertura revelou que não era nada disso. A causa era a miséria de São Paulo. E São Paulo tomou consciência, pela primeira vez, que era a cidade mais rica e mais pobre do Brasil ao mesmo tempo. O que levou o arcebispo, Paulo Evaristo Arns, a fazer aquele famoso inquérito sobre pobreza em São Paulo, em 1975, junto com o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa), do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que nem sonhava ainda em ser político. Foi a partir das matérias do Estadão.

Durante esse período, minha mesa ficava atulhada de matérias sobre meningite. Comecei a comprar livros e a lê-los. De vez em quando aparecia alguém para me pedir uma… consulta. E eu, como autêntico esculápio, ouvia o paciente e dava-lhe meu diagnóstico. Também uma caixa de pastilhas Fronton. À base de limão, elas estavam nas bocas dos enfermeiros que trabalhavam no único hospital de isolamento, o Emílio Ribas. Segundo os enfermeiros confidenciaram aos repórteres, a pastilha aumentava a resistência na garganta à entrada da bactéria. O jornal comprou caixas e caixas da pastilha para seus funcionários, parentes e aderentes, no auge do pânico.

Uma sexta-feira, antes de ir para sua fazenda, como fazia nesse dia, o doutor Júlio Neto parou, sentou à minha mesa, que era uma coisa raríssima de acontecer, e me disse que o jornal Excelsior, do México, queria uma matéria sobre meningite. Seriam seis ou até oito laudas. O dono do jornal mexicano lhe pedira para mandar essa matéria, que seria publicada com destaque na edição dominical.

“Escreva o que quiser e mande em meu nome. Está autorizado”, disse e se foi. Comecei no mesmo instante e acho que escrevi a mais completa reportagem publicada sobre a meningite. Infelizmente, só saiu no México. No Brasil, a grave doença continuava no índex da segurança nacional.

Os arquivos comprovam que a direção do jornal mantinha uma atitude de combate à censura, de resistência ao autoritarismo, de defesa do interesse nacional. Tentava de todas as maneiras publicar as informações e não desistia quando a censura se colocava no meio. Éramos inimigos declarados e dispostos ao combate. O que contrasta com o momento atual, quando é possível, em tese, publicar tudo e a autocensura é muito forte no Brasil.

Às vezes a autocensura é imposta pelo dono da empresa jornalística, pela corporação empresarial, mas um número assustadoramente alto de vezes é uma autocensura individual do jornalista, nem sempre coincidindo com os interesses da empresa. É o jornalista que se acovardou. É claro que ninguém haverá de querer passar por duas experiências de ditadura e de censura política estatal. Já basta uma geração, uma ditadura. Mas cabe perguntar se não é quase tão nociva a autocensura que se pratica hoje no Brasil quanto a censura do governo no passado.

Os mecanismos do poder público castrador persistem, mas outros entraram em vigor silenciosamente nos últimos anos e foram criados pela própria empresa jornalística. Primeiro foi a Abril que criou o CDA, cessão de direitos autorais, mecanismo que permitiu à empresa não se vincular ao jornalista. Depois, a TV Globo aperfeiçoou esse mecanismo nocivo, quando transformou cada jornalista numa empresa, substituindo a pessoa física pela pessoa jurídica, para não pagar os direitos sociais.

O jornalista se tornou uma empresa individual, com seus custos, encargos e responsabilidades. Muitos bons jornalistas são empresas. E pra se manter como empresas deixaram de considerar como alvo do seu trabalho a opinião pública. Passaram a considerar como patrão as palestras que fazem em circuito fechado, as assessorias que dão, as relações públicas que prestam.

O próprio jornalista tem sido privatizado por essas assessorias, por esses caminhos desviados da opinião pública. Para compensar, seus nomes são promovidos pelos veículos de comunicação nos quais trabalham, assegurando a valorização dos cachês que cobram dos contratantes privados ou oficiais.

Essa relação gera dois mecanismos. Um é a autocensura, não escrever sobre determinados temas ou seguir determinados enfoques. A outra é o desvio da informação da opinião pública para segmentos. Na palestra que dá aos empresários, e que custa caro, o jornalista diz tudo o que sabe, mas não publica essas informações no jornal onde trabalha.

O compromisso com o público, que manteve o Estadão em confronto com a ditadura militar, se tornou corporativo, foi privatizado. O jornalista ficou mais influente e afluente. A sociedade ficou órfã de informações. O que é de um paradoxo amargo: justamente na fase de mais longa democracia da república brasileira, que já dura um quarto de século (contra 18 anos da república de 1946).

Não haveria razão para essa contradição se a imprensa como instituição e os jornalistas como os elementos vivos da engrenagem da informação não tivessem renunciado ao papel que lhes cabe. Quando o inimigo estava do outro lado do balcão, todos que o combatiam pareciam iguais. Depois que a ditadura se foi, as diferenças se revelaram brutais e os caminhos se tornaram involutivos. A grande imprensa renunciou a fazer o jornalismo de combate e resistência dos anos da censura.

Tive a prova na pele. Consegui convencer o dr. Júlio Neto que o jornal devia adotar uma forma nova de sucursal. Seria a sucursal regional da Amazônia, com sede em Belém e ramificações por todos os Estados, com repórteres da competência de Élson Martins, Walter Rodrigues, Raymundo Costa, Raimundo Pinto. Toda cobertura ficaria por conta deles e a edição seria feita em Belém. São Paulo continuaria a decidir sobre a publicação, mas o texto final seria nosso.

A intenção era acabar com a visão do exotismo, que distorcia o enfoque sobre a Amazônia, e garantir as consequências da prioridade que se dizia atribuir à região, apenas formal e da boca para fora. Iríamos dar continuidade e tornar rotineiras as reportagens especiais que realizamos enquanto eu fui pauteiro em São Paulo e que deram autoridade ao jornal quando tratava do tema. Bem a propósito, ganhamos a menção honrosa do Prêmio Esso nacional por uma série sobre o problema fundiário, em 1977, ainda no regime militar.

A repórter da sucursal de Brasília que recebeu a pauta, sem a ler, deixou-a no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para que o presidente a respondesse. Alarmado com o conteúdo das 10 laudas dessa pauta, o presidente do Incra a remeteu de imediato ao Conselho de Segurança Nacional. Os integrantes da câmara que tratava dos problemas de terras e da Amazônia me convocaram para uma reunião com eles na sede do CSN, que era o principal dos órgãos de orientação do governo, balizado pela doutrina de segurança nacional.

Fui o primeiro repórter a receber esse convite. Pensava-se no pior que podia me acontecer. Um advogado ficou de plantão para me socorrer com um habeas corpus caso eu não saísse do encontro até certa hora. Não só saí: convenci os coronéis, majores e comandantes que me submeteram a uma sabatina de que sabíamos do que estávamos falando.

Mais difícil foi convencer o porta-voz “da casa” para questões amazônicas. Os Mesquita também ficaram impressionados pelas informações da matéria, algumas das quais atingiam bandeirantes paulistas quatrocentões, que abriam a fronteira amazônica com seus velhos métodos de depredação. O editorialista Rubens Rodrigues dos Santos foi escalado para me sabatinar. Era considerado o maior especialista em Amazônia na sede. Tentou derrubar as nossas informações e vetar a série. Por incrível que hoje possa parecer, não conseguiu.

O texto integral, que ocupou uma ou duas páginas a cada dia durante uma semana inteira do jornal, saiu sem cortes, exceto por um pedido quase pessoal de que as tintas não fossem carregadas sobre um fazendeiro, personagem absolutamente secundário, que seria apenas referido.

No dia em que a série começou a sair, éramos o assunto do editorial principal da página 3, escrito por Rubens. Ele só faltava dizer que a direção nada tinha a ver com aquele material, que era produto de comunistas e que não era verdadeiro. Saíra por metapsicose, ou bruxaria qualquer. Ao ler o editorial, depois de contemplar a primeira das sete páginas da série, não sabia se lia ou chorava. Da mais pura alegria profissional.

Caminho sem volta

Vinte e oito anos depois eu teria motivos para chorar da mais pura tristeza. Em 21 de janeiro de 2005 fui agredido pelas costas por um dos donos do maior império de comunicação do norte do país, o grupo Liberal. Ronaldo Maiorana me atacou com a cobertura de dois policiais militares, por ele usados como capangas. Queria se vingar de um texto que eu escrevi no meu Jornal Pessoal daquela semana. Não respondeu ao artigo, que não podia ser desmentido. Insatisfeito, porém, recorreu à chamada “vias de fato” para me intimidar e calar.

O jornalzinho quinzenal de 12 páginas em formato A4, eu comecei a fazer em 1987, quando o projeto da sucursal amazônica já havia sido cancelado pela direção do Estadão, já então dominada pelos tecnocratas da engenharia. As reportagens em profundidade sobre os complexos temas da região iam para as gavetas.

Os melhores jornalistas eram deixados de lado: São Paulo mandava enviados especiais de sucursais ou da própria sede. Quando um desses repórteres foi despachado para tratar de conflitos de terra, uma das nossas especialidades, reconhecida internacionalmente, mandei um telex de protesto ao então diretor de redação, o ministro do Desenvolvimento do governo petista, Miguel Jorge. Trocamos mensagens apimentadas, ao fim das quais ele me desafiou: “Demita-se”. Retruquei com um “demita-me, se for capaz”.

Ele não me demitiu. Com 18 anos de trabalho ininterrupto, eu era móveis & utensílios “da casa”. Só sairia se quisesse. Em 1989, com o Jornal Pessoal cumprindo seu compromisso de apregoar a verdade, sobretudo as que incomodam os poderosos, pedi demissão. Sempre atencioso para comigo, dr. Júlio me telefonou de São Paulo para me demover da decisão. Eu ia jogar fora um lugar estável, no qual podia me aposentar. Como não mudei de ideia, ele mandou pagar todos os meus direitos. Foi o capital que apliquei para que o meu alternativo pessoal se mantivesse naqueles primeiros anos, resistindo às ameaças e agressões.

Não imaginava que as hostilidades chegassem àquele ponto, de um espancamento diante de 150 pessoas, num restaurante, onde eu almoçava, localizado num parque público. Consegui me manter sereno e fiz o que me cabia: queixa à polícia e denúncia pública. Poucos jornais deram, dando pouco. Mas em nenhum outro a matéria foi tão ruim quanto no meu antigo jornal. Nota de 10 linhas que falava em “briga”. Como se eu tivesse reagido e trocado sopapos com o agressor. Não tive nem tempo de reagir, recebendo socos e pontapés pelas costas. E quando me levantei, o PM enorme e armado estava ao meu lado, disposto a tudo.

Escrevi uma carta ao jornal, como simples leitor, corrigindo o erro elementar e lamentando que tal coisa fosse possível no Estadão de hoje. No jornal dos tempos heroicos, jamais aconteceria. Sabíamos que estávamos fazendo a história cotidiana e respeitávamos essa missão. Minha carta não foi publicada e ninguém respondeu às minhas cobranças.

Desisti e voltei ao meu estilingue, arma com a qual me vejo obrigado a matar um leão todos os dias. Nem sempre de forma simbólica, conforme podem servir de prova os 33 processos judiciais propostos contra mim desde 1992 e alguns calos no corpo. É um caminho sem volta, entremeado de pedras para lá de drummondianas. Mas que vale a pena percorrer. E por isso nele persisto.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]