Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Viva o crime

O “milagre econômico” dos civis superou o dos militares. O Brasil se tornou rico como nunca antes, parafraseando Lula. Mas nunca o crime foi tão intenso e eficiente. Com mais dinheiro circulando, há mais quadrilhas empenhadas em desviá-lo.

O Brasil nunca foi tão rico em toda a sua história. Em compensação, a criminalidade nunca foi tão grave. É uma relação de causa e efeito? Pode ser. Não se tem ainda, no entanto, como demonstrar o nexo de causalidade. Mas pode-se chegar a uma conclusão surpreendente – e inédita: o crime se estratificou no Brasil.

O crime dito de colarinho branco se sofisticou na mesma medida em que passou a movimentar valores em dinheiro e símbolos de poder que colocam o Brasil no topo do ranking nesse segmento. Certamente numa posição mais avançada do que o 6º lugar em que o país está dentre os PIBs mundiais.

O recorde anterior era o 8º lugar, conquistado na década de 1970, com o “milagre econômico” do regime militar. Depois o Brasil regrediu quatro posições, até recomeçar a subir, superando seis países, depois do Plano Real, na busca da realização do sonho geopolítico do Brasil Grande, sócio do Primeiro Mundo.

Veículo da morte

Os criminosos de colarinho branco não têm mais por hábito matar. Ou não mais como primeira alternativa diante das dificuldades. Eles liquidam moralmente, ou financeiramente, graças às armas que a mais alta tecnologia lhes fornece. Podem ter que usar o recurso extremo, mas, quase sempre, só no desespero.

Litigam a partir de suas mesas, diante de um computador, com assessorias visíveis e invisíveis (estas, as mais eficientes, principalmente as não assumidas ou não declaradas). Usufruem de um dos maiores progressos feitos pela ditadura: o aperfeiçoamento dos mecanismos de investigação e de descoberta (ou produção) de provas de ilícitos. É a teia de espionagem, que multiplicou os arapongas, antigamente conhecidos por dedos-duros (sem dispensar o hífen)

O exemplo mais recente e acabado desse modo de proceder é o do suposto empresário Carlinhos Cachoeira. Ele não se enquadra no modelo de bicheiros como Anísio Abrahão ou Castor de Andrade. Conta com senadores, deputados federais, governadores, empresários, jornalistas, que comem em suas mãos, nem sempre de forma simbólica.

Está conectado a empresas muito maiores, dentro e fora do país. Mesmo alvejado por disparos verbais e ameaças materiais que derrubariam outro delinquente, se mantém calmo. Sua munição é tão vasta quanto imprevisível. Seu arquivo eletrônico é seu seguro de vida. Embora sem garantia certa ou cobertura definida.

Mas há o crime de rua, violento e sangrento, como “nunca antes”, para usar o bordão do ex-presidente Lula. O líder-guia do PT, aliás, contribuiu para esse “aperfeiçoamento” maligno com seu populismo de resultados, mais eficiente e mais inescrupuloso do que o populismo amador e romântico dos políticos da República de 1946. O do líder sindical é, et pour cause, profissional. Sublimemente (ou subliminarmente) mafioso. O Brasil dos nossos dias é uma recriação monumental da Chicago do entre as duas guerras mundiais do século 20.

Vem do Maranhão o mais recente exemplo dessa criminalidade. Na noite do dia 23/4 um homem desceu de uma moto, na qual era o carona, com a cobertura de uma segunda moto. Caminhou calmamente até um dos restaurantes da frequentada e admirada orla litorânea de São Luiz do Maranhão, ponto turístico nacional.

Foi até uma das mesas, tirou uma pistola calibre 40, a preferência policial por sua potência e eficiência. Mirou no ocupante de uma das mesas, que estraçalhava caranguejos, como costumam noticiar as colunas sociais.

Fez seis disparos com direção certa e objetivo definido: matar sem piedade, tripudiar sobre a morte. Duas balas atingiram a cabeça da vítima. Outras duas, o pescoço. E mais duas a região do coração. Sangue espirrou, carregado de massa encefálica, pele e osso. Os tiros não foram apenas para matar: a morte devia servir de mensagem a quem interessar pudesse. E advertência.

O assassino olhou em torno, disse palavras ameaçadoras para o garçom, que testemunhara estupefato o crime, guardou a arma e saiu com a mesma calma da chegada. Não escondeu o rosto nem teve pressa em fugir.

Subiu na moto e sumiu, sempre com a cobertura do segundo veículo (inspeções constantes a motocicletas devia ser uma estratégia sagrada no Brasil; elas se transformaram no veículo da morte). O criminoso não tinha receio em ser identificado nem, talvez, preso. Se for preso, acredita, será por pouco tempo. Tem cobertura – e da grossa.

Caranguejos cozidos

A vítima, Décio Sá, tinha 42 anos. Era jornalista havia muito tempo. Desde 2006 escrevia um dos muitos blogs criados por maranhenses que não têm onde se manifestar. Aqueles que querem se informar e informar os outros. É a alternativa à grande imprensa, dominada pelos grupos políticos e empresariais que mandam no Maranhão, o Estado mais pobre do Brasil (alguma relação com o fato de ser, geograficamente, Meio Norte, junto com o Piauí, metade Amazônia e metade Nordeste?).

Décio criou a imagem de jornalista investigativo, eficiente, audacioso e corajoso, graças ao blog, arma que exibe e esconde, revela e oculta, esclarece e confunde. Mas trabalhava havia tempo suficiente no maior grupo de comunicação do Estado para não ser definido apenas por blogueiro.

Sob essa outra veste, suscitava dúvidas quanto à sua independência e autonomia. Às vezes o tomavam por mensageiro da família Sarney, erro – ou confusão – quase inevitável. Ele era um repórter político especial do Sistema Mirante de Comunicação, afiliado à Rede Globo de Televisão. e, em particular, do jornal O Estado do Maranhão, líder dos impressos maranhenses.

Esses veículos são dirigidos de perto pelo maior político do Maranhão, o ex-presidente da república e presidente do Senado, José Sarney. Nada de importante sai nos órgãos de comunicação do também ex-governador sem sua aprovação. O noticiário político, então, é criação sua. Nem sempre para reproduzir a verdade. Às vezes, também, para mandar recados. Ou pespegar estigmas conforme a utilidade ou conveniência.

As oligarquias no Maranhão não costumam aparecer na literatura que Sarney, também imortal da Academia Brasileira de Letras, costuma cometer. Nem é preciso: a ficção do senador beletrista é acanhada demais para dar conta de realidade de tal magnitude. Tão impressionante que dispensa pitadas de invenção. Basta olhar com olhos de ver e sentir com mãos de reproduzir a cena para que ela surja com fidelidade temerária à realidade que constitui tarefa de um herói. Talvez logo depois herói morto.

Décio Sá falava ao celular, em frente aos caranguejos cozidos, seu prato de resistência. Quando recebeu os tiros, o jornalista falava com Aristides Milhomem, mais conhecido por Tatá, vice-prefeito do município de Barra do Corda e irmão de Carlos Alberto Milhomem, deputado estadual.

Sem conseguir restabelecer a ligação, Tatá acionou Fábio Câmara, suplente de senador e amigo de Décio, que estivera em contato com outro amigo, um personal trainer, executado pouco antes, no mesmo dia, num ponto mais distante da faixa valorizada da capital maranhense. E que também iria para o bar Estrela do Mar para a caranguejada.

Regra de ouro

A última postagem de Décio no seu blog foi sobre o assassinato de Miguel Pereira de Araújo, o Miguelzinho. Ele foi morto em 1997 e o julgamento seria realizado em Barra do Corda, que forma com Presidente Dutra e Grajaú, o principal reduto de pistoleiros no Maranhão.

O problema é que das 25 pessoas sorteadas para integrar o corpo de jurados, formado por sete membros, 25 eram ligadas a Manoel Mariano de Souza. Além de ser prefeito municipal, ele é pai do empresário Pedro Teles, acusado de ser o mandante do crime. Seria represália contra o alegado invasor de suas terras. Pedro é irmão do deputado estadual Rego Teles, do PV, o Partido Verde dos ambientalistas de ontem e de amanhã.

O advogado Leandro Sampaio Peixoto, defensor de Miguelzinho, pediu o desaforamento do júri para São Luiz no mesmo dia da morte de Décio, a quem forneceu cópía da petição. Nela, previu que o julgamento, se realizado em Barra do Corda, terá desfecho viciado. Os acusados serão absolvidos.

Ele sabe o que diz: é filho do ex-prefeito de Barra do Corda, Avelar Sampaio, do PTB. Foi Avelar, quando prefeito, quem cedeu do seu estoque os pistoleiros Moraes Alexandre e Raimundo Pereira para proteger Manoel Mariano. Na época os dois eram amigos. Rompidos, se tornaram inimigos. Manoel interrompeu a sucessão no poder da família do seu (ex) amigo. Delito sujeito à pena de morte.

Para as oligarquias que comandam o interior do Brasil, isso é crime imperdoável. Tem que ser quitado com outro crime, sem os refinamentos do pessoal do andar de cima, que circula de colarinho branco por esses ambientes. O encadeamento é óbvio. O problema é segui-lo.

Um leitor, que usou um nome falso (Madureira), fez o único comentário, postado momentos antes da consumação do assassinato do blogueiro. Concluiu: “tá na cara que é jogo de cartas marcadas. precisa mais detalhes que esses?? creio que não !!”

Apesar do acesso constante ao blog, ainda mais depois do crime, ninguém voltou a se manifestar. O silêncio é a regra de ouro desses acontecimentos, cada vez mais frequentes no Brasil oculto. Quem fala muito morre com a boca cheia de formiga, ameaça uma tirada de humor negro. Muito negro.

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Ora, a liberdade

O jornal O Liberal deu apoio ao Fórum Paraense em Defesa da Liberdade de Expressão Comercial, promovido na semana passada pela associação e o sindicato da propaganda no Estado para debater o tema “liberdade de comunicação”. O fórum consistiu em palestra de Alexandre Secco, de São Paulo, com debatedores de fora e moderadores nativos na mesa.

O fórum foi realizado no Teatro Estação Gasômetro, do Parque da Residência. A poucos metros dali, sete anos e três meses atrás, fui agredido por um dos donos de O Liberal, Ronaldo Maiorana. Na época ele era diretor-editor corporativo da empresa. Era presidente da comissão em defesa da liberdade de imprensa da secção paraense da Ordem dos Advogados do Brasil. Agora não é mais. Em compensação, se tornou diretor jurídico do jornal da família.

Por sua prática, deve achar que liberdade de comunicação se reduz a sopapos, quando o seu exercício desagrada um poderoso dono de jornal. Se os publicitários locais estão dispostos a jurar que existe liberdade de comunicação no Pará, não podem provar que ela está viva na imprensa. Talvez ninguém se tenha lembrado da proximidade física com um episódio que atestou a inexistência do direito à informação no Estado, regado abundantemente de publicidade, na estiagem da liberdade de expressão.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]