Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“O lucro é secundário, importante é difundir cultura”

Por que, catrâmbias, o Brasil – meios de comunicação, universidades, editores… – esquece escritores do calibre de Hernâni Donato? A pergunta zumbiu na cachola do repórter, este, assim que acabou de ler o romance Selva Trágica, sobre a penosa situação dos trabalhadores nas roças de erva-mate do Mato Grosso no início do século 20. Trata-se, palavras do crítico mineiro Fábio Lucas, colaborador dO TREM, de um dos “mais altos momentos da novelística de conteúdo social no Brasil”.

Além de romancista, Hernâni Donato é jornalista, contista, ensaísta, roteirista de cinema, biógrafo, historiador, professor e tradutor. Nascido em Botucatu (SP) em 1922, é autor de cerca de oitenta livros, entre os quais Chão Bruto, Rio do Tempo, O Caçador de Esmeraldas e Filhos do Destino. Lançado em 1960, Selva Trágica foi relançado em 2011, depois de décadas esgotado. Filmado em 1963 por Roberto Farias, é considerado por críticos como um clássico do Cinema Novo.

O TREM, que insiste em só entrevistar quem tem o que dizer, puxou papo com o paulista. A pedido do jornal, as duas perguntas iniciais foram feitas pelo escritor e editor Nicodemos Sena, do selo LetraSelvagem. A entrevista:

Em seus romances, há uma cumplicidade entre o narrador e os personagens de “baixa extração” social, desde os índios de O Caçador de Esmeraldas(1978), usados pelos colonos-bandeirantes portugueses na coleta de produtos da selva e no preamento a outros índios, até Selva Trágica(1960), no qual o narrador algumas vezes deixa sua postura de observador imparcial, à moda flaubertiana – o que, aliás, é dos pontos fortes desse extraordinário romance –, e derrama-se num olhar poético e compreensivo sobre a tragédia humana dos “mineiros” da erva-mate reduzidos à condição análoga à de escravo. Fale, por favor, sobre esse liame.

Hernâni Donato – A motivação essencial desses textos seria bem expressa pelo título geral Sal da Terra. O sal, no caso, é o suor do homem no trabalho. O primeiro dos romances, Filhos do Destino, levaria esse rótulo, sendo o suor aquele dos colonos das fazendas de café que bem as conheci ao redor da minha Botucatu. Estava eu por larguras mato-grossenses e o livro em começo de impressão, na editora Cupolo, quando um famoso gramático divulgou trabalho focado no cultivo da partícula expletiva se e lhe deu o título de Sal da Terra. O editor, sem poder me consultar, entendeu necessário mudar. E como era também o editor da Gilda Abreu, famosa então na TV, nos romances via rádio, rebatizou-o Filhos do Destino, sinonimizando os imigrantes levados para os cafezais. O segundo texto, Chão Bruto, espécie de reverência aos caboclos que, estando de há muito vivendo nas posses ao longo da estrada boiadeira no oeste paulista, viram-se agredidos, batidos, expulsos por grileiros, estes definidos pelo Michaelis como “indivíduos que, mediante falsas escrituras de propriedade, procuram apossar-se de terras alheias”. Foi terrível o que então sucedeu. O título expressa só um pouco do muito suor escorrido em meio a sangue. Sabe de algo curioso? Um bom amigo pediu-me cedesse a edição a um livreiro que começava, ou tentava, passar a ser editor: Rede Latina, com livros focados nas questões sociais neste subcontinente. Cedi, certo de um seguro quase anonimato, mas foi um belo sucesso de vendas: edições sucessivas, dois filmes e o mais do cardápio próprio dessa situação. Menotti del Picchia assinou em A Gazeta crítica incluindo esta loucura: “A maior criação novelística que a inteligência de São Paulo deu até agora ao Brasil”. Um advogado festejado insistiu em um almoço-encontro, o que me deixou desconfiado por suas intenções. Ao fim do qual se explicou: com o Chão Bruto como testemunho, ganhara volumosa questão de terras lá na Alta Sorocabana. Descobri que tocara num ponto nevrálgico. Nada poderia ser corrigido: os pobres estavam dispersos, mais pobres ou despachados. Os que não foram mortos encontravam-se engaiolados nas periferias das cidades e da vida. Os que haviam enriquecidos, mais ricos, pontificavam, elegidos, poderosos. Pequei por orgulho ao supor que com o livro havia justificado o suor e o sangue dos que, por seu trabalho pioneiro, haviam recebido a paga salgada da expulsão. Nessa altura, dominado por uma compulsão de várias décadas, enganando a uns amigos sobre o propósito da incursão, para que não me dissessem doido, e recebido um apoio da Melhoramentos, fui e voltei, voltei e fui ao Mato Grosso, seguindo trilhas débeis e referências gráficas na busca de retraçar a estrada do Peabiru que centenas de anos antes de Cabral ligaria o litoral santista ao litoral peruano. E uma pletora de personagens e dramas e mistérios robustecedores desse atrativo. Procurando o caminho, encontrei sugestão para mais dois romances à base de homens semiescravizados no trabalho: o dos ervateiros do sul-mato-grossense e o dos tiradores de poaia no extremo norte do mesmo estado. O dos ervateiros é o Selva Trágica. O da poaia não se concretizou. Quando esmiuçava pesquisas, soube de um argentino que me precedera de meses no alto daquele terrapleno, atraído pelo mesmo assunto. Para evitar futura tentação de mesmo assim voltar ao tema, rasguei as anotações. A poaia ou ipecacuanha já não se usa ou muito pouco na medicina caseira, mas no tempo das águas atraía multidão de arrancadores da plantinha. Isolados por meses sofridos, colhiam e muito pouco lucravam. Abrindo parênteses: continuo fascinado por um tema. Acho que não deveria revelar tal segredo-sugestão, mas, vá lá, num trem cabe de tudo, não é? Vou cultivando, polindo, discutindo comigo mesmo, fruto de vivência na mesma região: o Jardim do Éden, os restos da Arca de Noé estariam por ali, entre rios, campos e florestas. Fantástico, mas muita residência antiga tem, ou tinha, quando toda casa dispunha de um pote para a água de beber, uma lasca de um barco que na foz do Inhandui foi tomado como restos da arca. Que tal? Não posso descer desse trem antes da estação, não é?

Selva Trágicaé clássico da literatura e do cinema no Brasil – o filme é considerado dos melhores do Cinema Novo. No entanto, a última edição do romance, de 1976, esgotou-se há cerca de três décadas, relançado em 2011 em primorosa mas modesta tiragem de mil exemplares, pelo selo LetraSelvagem. Por que um livro que encantou gerações, com inegável apelo popular, ficou fora das prateleiras por tanto tempo?

H.D. – Tem razão, cuido muito pouco da família literário-histórica. Meu empenho é fazer, produzir. Confio haja outros heroicos Nicodemos Sena à frente, que sustentem hoje o ontem filosófico dos editores por vocação cultural: o lucro é secundário, importante é difundir cultura. Sou grato pela insistência em reeditar o livro e cogitar nos demais romances. Agora, por exemplo, desfio um volumoso arquivo sobre o Peabiru, sobre o Sumé, sacerdote viquingue cristianizador do nosso índio muito antes da vinda de Cabral, para completar nova edição do antigo Sumé e Peabiru. Acrescentei 345 verbetes à quarta edição do Dicionário das Batalhas Brasileiras, atualizei o Brasil Cinco Séculos para uma editora que o reclama faz tempo; concluo novo volume para a crônica da Fundação Colégio de Porto Seguro; dirijo a biblioteca e a revista da Academia Paulista de Letras; recolho material para um livro pró-juventude sobre a importância cívico-histórica do rio Tietê, pedida pela Melhoramentos, que também pediu e já recebeu a atualização e ampliação do Uso e Costumes do Brasil etc… Vencidos chatíssimos exames e tratamentos, parece-me ter exorcizado achaques e vou me acercando dos 90 anos.

O senhor nasceu em Botucatu (SP), um centro ferroviário. Quais são suas lembranças marcantes com trem? 

H.D. – O som do apito, o silvo do vapor, o ir e vir de quem chega e de quem parte ainda estão comigo. Eu sabia, ou pretendi saber, o número da locomotiva que cortava o silêncio das madrugadas: essa é do ramal de Bauru, essa vem do tronco… Mais da metade da cidade dependia da estrada. Desta, o time de futebol, a banda mais rumorosa, os empregos mais cobiçados, os horizontes de ir e de vir. Velhas máquinas queimavam carvão. Sinto, agora mesmo, o cheiro, diria aroma, dessa caldeira – opa! Sabe que me senti meio insultado quando o moderno trem elétrico arquivou as marias-fumaça? Quantas vezes, entre São Paulo e Botucatu ou outras cidades, preferi o ronceiro trem misto que parava longos minutos em todas as estações. Dava para descer e auscultar o ambiente local. Foi como colhi muitas construções culturais folclóricas publicadas na revista Folclore ou na minha página no veterano e desaparecido Correio Paulistano. Neste momento, me vem uma inquirição curiosa: será que nesse fazer não houve um pouco da minha devoção a Tolstoi, que fazia quase o mesmo, sendo que ele praticamente entrevistava os passageiros descidos, para descanso, na estação mais próxima de sua casa?

O senhor passou por importantes redações jornalísticas do país. Conheceu o jornalismo da fase romântica e conhece o atual. Se o jornalismo brasileiro fosse melhor, o Brasil seria melhor?

H.D. – Se o Brasil fosse melhor, o jornalismo seria melhor. O jornalismo épico, não o meramente comercial (até o jornal brasileiro lá de Londres), começou empobrecendo o editor com a fidelidade a um ideal. Por exemplo, veja no livro O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil, de Carlos Rizzini, como o jornal da corte sob o regente dom João, em sua modestíssima impressão, servia a um ideal. Agora serve a uma economia. Paga por isso, mas há heroísmo ainda, por aí, ao fazer jornal. Mais próximo aos nossos dias, lembramos os nanicos sob a ditadura. E os jornais literários? O TREM Itabirano, o Linguagem Viva, o da Anae, o Rascunho, o Nicolau, por exemplo.

O senhor trabalhou com televisão. A TV brasileira – refiro-me aos grandes canais – não lhe parece insuportável?

H.D. – Está mesmo insuportável, ou quase. Sendo um velho, não entendo o novo em TV. O programa que produzi, Do Zero ao Infinito, girava em torno da história, da cultura. Significativo ter sido o único a reunir as três maiores emissoras e as três rádios respectivas. Teria caído o interesse por aqueles assuntos? Agora, quando ligo, vou direto ao canal ou canais ditos culturais. O todo, porém, é de desesperar. E pode piorar.

Como um homem nascido em 1922 vê o mundo atual. Claro, com os olhos, mas me refiro às transformações tecnológicas e às mudanças comportamentais. 

H.D. – Tão diferente que filhos e netos me impuseram o lembrar ao leitor de hoje e o de amanhã, se houver, como foi o viver dos anos centrais do século passado. Recordando, anotando, frequentemente quedo-me espantado – puxa, foi mesmo assim? Uma carta de Botucatu a São Paulo demorava uma semana; ligação telefônica pedia-se logo cedo para, com sorte, falar à noite; crianças do povo entravam em casas onde houvesse pessoa morta para beijar a mão direita do defunto, mão que no céu apagaria as faltas terrestres do beijador. Se bem me lembro, só nos anos 40 as pessoas comuns puderam ter uma lâmpada em cada quarto. Quanto livro li, deitado, uma vela em um prato equilibrado sobre o peito. O prédio mais alto de São Paulo contava desafiantes oito andares; o trem da Sorocabana rodava a menos de quarenta quilômetros serra acima. As contas de pão, carne e empório eram pagas uma vez ao mês e a criançada acompanhava a mãe pagadora, pois a cada caderneta cobrada correspondia a uma mãozada cheia de balas que a própria criança tirava de um latão. Não se pronunciava a palavra gravidez, mas as mulheres, e só elas podiam fazê-lo, colocavam as mãos em concha sobre o ventre para indicar o estado dito interessante. Foi um assombro o aparelho de rádio. E o ferro elétrico? A panela de pressão? A aproximação homem-mulher seguia um esquema inviolável: “tirar linha” era troca discreta de olhares. “A senhorita permite lhe dizer boa-tarde?”, estando ela necessariamente acompanhada pela melhor amiga. “Entrar na casa” da moça era assumir um compromisso inicial. Comparemos isso com as abordagens de hoje. Mas, sim, sou velho. Gozo do melhor que há, porém sou fiel ao passado. Transcrevo meus textos numa Lettera 22, comprada em 1947, nos entendemos bem. Minha esposa, Nelly, e a rapaziada são craques na internet e me ajudam a continuar longe do computador… Resumindo, há algo ótimo nessa modernidade: nenhum coronel de esquina pode nos impor o seu filho ou o genro como nosso preferido nas eleições.

Como analisa a obra do itabirano Carlos Drummond de Andrade?

H.D. – Em 1945 e arredores, eu vivia no interior, trabalhava em jornais recebendo algo quando sobrava dinheiro no fim do mês. Era uma imprensa de precisar existir e dizer – algo assim como O TREM. Época trepidante na cidade, ainda capital de zona. Liam-se jornais de São Paulo e do Rio. Havia três jornais, sociedades literárias, bibliotecas. Discutiam-se prosa e poesia. Drummond já era astro. Apaixonei-me por Tolstoi. Viria a cometer o delito de intentar uma Iasnaia Poliana em Botucatu. Imagine se deu certo. Não deu. E li desbragadamente os russos, os americanos ditos socialistas e descobri Ignazio Silone, o do magnífico Fontamara, que em uma tarde-noite, sentado num meio-fio de calçada, li de cabo a rabo. Com surpresa e muito entusiasmo, descobri autores de pouca projeção comercial, mas de profunda penetração social, fazendo literatura na América Latina. Homenageando-os, cito Jesus Lara, boliviano, autor de um impressionante Surumi – será este mesmo o título? Faz quase 80 anos. Um professor que se retirava me legou uns quantos livros. Entre eles, o drummondiano A Rosa do Povo. O título me atraiu. A mensagem me apressou. Na biblioteca da Escola Normal, identifiquei a virgindade absoluta de um exemplar de Alguma Poesia. Rosa do Povo não me veio com o furor revolucionário esperado, mas como revelação de quem tirava poesia do ar e fazia malabarismos circenses com as palavras – e com os sentimentos. Bastariam os seis versos de Os Mortos para fazê-lo imortal. E aquele sufocante fecho do Science Fiction: “E fiquei só em mim, de mim ausente”. Percebeu que não mencionei a pedra do caminho? Mais tarde, com o Claro Enigma, entendo que o poeta deu guinada radical para meus desatentos sentidos. De mim, muitas vezes invoquei o poeta e o saudei murmurando, por exemplo, o “Deus me deu um amor no tempo de madureza”. Mas, sendo o romancista dito social que me sei e quero ser, quando me falam de Drummond ou a ele afluo, é por Neco Andrade, vítima da faca que “relumiou no campo”. Que poesia! Que poder descritivo e partitivo de emoção. Não diria que esse é o meu Drummond, mas quase que… Enfim, “estou vivo na luz (drummondiana) que baixa e confunde”.

Em Itabira, temos um governo obscurantista, inimigo dos livros, da leitura, do saber. Não quero incomodá-lo com nossos fracassos, é só gancho para perguntar: qual a importância dos bons livros para uma cidade, para um estado, para um país?

H.D. – Certo dia de certo ano, na Florença de quando ali se tropeçava em gênios a cada metro, abriu-se uma janela, um homem assomou, gritando: “O mundo está perdido, os alemães inventaram máquina capaz de reproduzir uma verdade ou uma mentira em questão de minutos. Soltaram o diabo com a sua astúcia. Já não se poderá mais governar”. Disse e atirou-se para a rua. Era o tirano de plantão. Quero dizer: dê livro ao povo e ele se fará culto. Livros, livros a mancheias, queria o poeta. Lembremos o muito que o jesuíta obteve do guarani ao lhe dar rudimentos de arquitetura, música e as primeiras gráficas do interior da América do Sul.

Hipótese: inventaram uma máquina pela qual é possível falar e ser escutado por todos os brasileiros. Se fosse usar esse instrumento para falar algo urgente aos brasileiros, o que todos escutaríamos?

H.D. – Depende de quem dominar o tal aparelho. Imagine se o controle do mesmo caiba ao pessoal que faz a maioria dos programas vespertinos da televisão…

Conte-nos, por favor, uma história bonita, inspiradora, pelo senhor vivida na estrada da literatura. 

H.D. – Tomei um bonde, quando eles existiam em São Paulo, no parque da Água Branca, rumo ao centro da cidade. Um só lugar vazio ao lado de colegial entretida em ler um livro. A meio caminho, ela diz provavelmente à mãe, sentada no banco fronteiro: “Quero ler mais um livro desse escritor, ele se chama Hernâni Donato”. O que me parece ser o bonito da história é que resisti ao impulso de ronronar: “Sou eu!” Fui dormir satisfeito. Havia alguém que me estimava. O que minimamente se compara ao grande romano que, no leito de morte, vendo entrar os enviados para apressar seu fim, pediu que o deixassem terminar a redação de um poema em louvor à vida.

Como é ser escritor num Brasil que ainda não é um país de leitores. Considera-se injustamente esquecido?

H.D. – Há escritor e escritor. Livros de duvidosa qualidade podem arrebanhar milhões de leitores. Um rapaz que conheço deixou de viajar ao México, pagando com o dinheiro da viagem a impressão de um livro de versos. Está distribuindo-o em reuniões festivas. Nada vendido. Avoluma-se o número de editoras exclusivas, ou quase, de edições pagas pelo autor. Vejo isso como louvável impulso criativo à espera de uma política mais positiva de apoio à criatividade. Quer dizer, livro é livro, mas há livro e livro. Nem só qualidade avoluma vendas. Ajuda muito o ter conhecidos nos jornais, percurso nas emissoras, editora com equipe promocional, etc. Acho tudo isso válido: o do moço que não viajou e o dono de programa popular que escreve romances. O que importa é botar o livro na mão do provável leitor. A leitura pode ser como droga: viciar. Posso contar a história do Lobato? Pois ele sentiu o que você está sentindo: é preciso criar leitores. Redigiu circular, pagou gráfica, o selo postal e mandou o rogatório a todos, ou quase, os vereadores do país. Pois supôs: todos devem ler essa circular ou não seriam vereadores. Se souberem ler, sabem o bem que o livro fará para seus eleitores. Mais tarde, confessou: acho que eles mesmos não leem. Mas quer saber? Brasileiramente, orgulho-me e muito do número de escritores, que até se filiam a associações de classe, das editoras estrangeiras que estão vindo, do número de títulos publicados anualmente, da empolgação de livrarias formidavelmente instaladas e que começam a sair de São Paulo, do Rio de Janeiro e de outras poucas capitais. Por muito pouco que um livro de receitas secretas da vovó ou da titia circule por amigos da autora, será um livro sendo lido. A febre se espalha. Mês a mês há mais editoras, títulos oferecidos, facilidades aquisitivas. Estamos crescendo. Um pouco também graças à dedicação radical de verdadeiros amantes do livro, tipo Nicodemos Sena. Se o governo tentar ajudar, pode – conforme costuma – atrapalhar. Editores, livreiros, veículos de comunicação só podem ajudar. O terreno a desbravar é tão amplo que o bem informado escritor Alaor Barbosa revelou no Diário da Manhã (Goiânia) que, segundo um editor daquela praça, o estado de Goiás conta com seiscentos leitores. Confio num erro gráfico. Devem ser seiscentos mil, no mínimo.

Para criar, é imprescindível ao escritor ter liberdade? Por favor, fale-nos sobre esse importante assunto. 

H.D. – Há quem diga – e muitos textos ontem e hoje famosos foram escritos sob opressão, coação – que a restrição pode ser inspiradora. Nesses casos – e dicionários o confirmam –, liberdade pode ser sinônimo de ousadia. Livros e jornais fundamentam a crônica de muitos grandes movimentos de massa. No ontem do nosso país, podemos listar vários exemplos, independendo do regime, da época, do clima político. Necessário, sim, é o escritor decidir ser livre. Muitos o fizeram e duramente pagaram por tê-lo feito. Impressiona o número de jornais, livros, panfletos pregáveis em postes e portas que existiram por todo o Brasil nas crises da pré-independência, da abdicação, da introdução das ideias radicais surgidas no país. Desapareceram rápidas, na maioria, mas, sempre, depois de haver feito a sua sementeira. O Rizzini, no livro citado, elenca-as e homenageia-as.

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[Marcos Caldeira Mendonça é editor do TREM Itabirano]