Assistiu-se recentemente a uma feroz investida internacional das autoridades contra os sites de compartilhamento de arquivos (P2P) e downloads “ilegais” em geral. Foi uma iniciativa de vários governos em vários continentes, incentivados e apoiados pela MAAFIA, sigla que representa a fantasiosa combinação entre as associações das indústrias de música e filmes nos Estados Unidos. Significa “Associação das Indústrias de Música e Filme da América”. Estas indústrias acreditam que compartilhar arquivos na web é o crime mais hediondo da terra.
Sites que proporcionam downloads de músicas, como o Pirate Bay, criado na Suécia, foram invadidos pela polícia. Seus donos foram condenados à prisão. Seu mentor, líder-mor, maior autoridade mundial em blindagem de sites e ex-colaborador do WikiLeaks Per Gottfrid Svartholmm (o “Anakata”), de 27 anos, já havia deixado a Suécia muito tempo antes de sua sentença ser proclamada. E levou o site junto…
Mas o golpe no site do pirata foi duro. O fim (temporário) dos downloads que usam seu protocolo foi uma derrota. Uma batalha perdida. Mas não a guerra. Uma pesquisa feita na Universidade da Carolina do Norte revelou que os downloads via BitTorrent (o tal protocolo) na realidade não dão prejuízo à indústria da música nos lançamentos de novos álbuns de música. Ao contrário: aumentam suas vendas, funcionando como uma espécie de vitrine que anuncia o produto para uma audiência mundial que aumenta a cada dia.
A ideia já havia sido sugerida até mesmo por artistas do meio musical, mas nunca havia sido testada em meio acadêmico. Até que chegou a hora da proposição ser posta a prova em condições acadêmicas. O professor de economia Robert Hammond, pesquisador da Universidade da Carolina do Norte, fez uma pesquisa que pela primeira vez contou com uma base estatística desejável sobre downloads do BitTorrent e as vendas de álbuns novos e concluiu que o download dos mesmos na realidade ajudavam nas vendas dos discos.
Protocolo de transferência
Uma descoberta desconcertante e que contraria todos os interesses estabelecidos pelas indústrias da música e pelos estúdios de Hollywood. O blog so suplemento “Link”, do Estado de S.Paulo, e outro blog especializado em compartilhamento de arquivos, o Torrent Freak (17/05), publicaram matéria sobre o estudo. O site americano trouxe a fonte original da pesquisa e apresentou uma abordagem mais completa. Mas a reportagem do Estadão deu conta do recado e o fez muito bem: com uma excelente tradução, conseguiu simplificar um assunto muito interessante, mas meio complicado: desvendar o processo pelo qual o professor provou que os downloads de álbuns ainda não-lançados ajudam nas vendas dos mesmos.
Para conseguir testar a proposição que afirma o suposto prejuízo dado pelos downloads que ‘vazam’ antes de seu lançamento, o professor contou com uma grande amostra de dados estatísticos. Foram reunidos, entre maio de 2010 e janeiro de 2011, “dados de 1095 álbuns novos de 1075 artistas, do maior servidor BitTorrent do mundo”, explicou o blog brasileiro. Hammond chegou a essa conclusão ao “isolar” o efeito do compartilhamento nas vendas de um álbum, “mapeando o alcance do disco nas redes antes de ser lançado”. Em outras palavras, ele localizava e quantificava a presença na web de alguns álbuns ainda não lançados, o número de downloads correspondentes realizados, e comparava depois com os resultados das vendas do mesmo para o público. Assim, ele conseguiu provar que os discos com mais presença e maior número de downloads na rede tinham um desempenho melhor nas vendas, no fim das contas.
Outra informação complementar importante, apresentada pelo Link: na França, a infame Lei Hadopi (o cão de guarda gaulês dos direitos autorais), ao fazer cair “drasticamente” os downloads “ilegais” provocou um prejuízo de 3,9% em 2011 na indústria musical, informou o blog tecnológico do periódico paulista.
A Torrent Freak, publicação mais especializada em compartilhamento de arquivos na web, apresentou um artigo escrito pelo seu editor-chefe, um professor holandês que quer manter a privacidade (e o emprego) e escreve sob o pseudônimo “Ernesto Van Der Sar”. Simplesmente “Ernesto”, no site. Seu site é referência para todos que precisam saber alguma coisa sobre compartilhamento de artigos na web. Ele fundou o blog em 2005, e vem sendo citado nos principais jornais norte-americanos, graças a seu trabalho baseado em notícias sobre BitTorrent e tudo relacionado a este protocolo de transferência de arquivos. O Torrent Freak é o melhor no assunto na web de língua inglesa sobre compartilhamento de arquivos.
Uma pequena vitória
Mas o Torrent Freak é um site para especialistas e usuários avançados. Por isso, a explicação apresentada pelo site do mecanismo usado pelo professor Hammond para provar que os downloads não prejudicavam lançamentos de discos ainda não lançados soa muito acadêmica. A linguagem usada é a de um laboratório de pesquisas. Não é a linguagem apropriada para o usuário comum dos downloads. Mas o blog informou bastante, apresentou link para o estudo original e avisou que é prejuízo perseguir esses sites de downloads. Eles funcionam como vitrines para os artistas e seus lançamentos. O blog do Estadão também incluiu este comentário.
O Torrent Freak fez algumas considerações e interrogações importantes sobre este estudo. Não passou a informação dos “downloads benéficos” apenas. Aprofundou o tema e questionou alguns resultados obtidos. Fez sua própria análise de dados da pesquisa usando fonte original. Nada como fonte original.
Ele mesmo iniciou a crítica do seu artigo. Declarou que o efeito descrito no estudo é moderado. “Levando-se todos os fatores em consideração, um álbum que ‘vaza’ com um mês de antecedênciaequivale a um aumento de 56,9 nas vendas adicionais.” O editor interrogou-se também sobre a validade e representatividade dos dados da pesquisa. Teriam eles a representatividade desejável? Ele mesmo respondeu: “O servidor em questão tem mais de 150 mil usuários, mais do que a média dos fãs de música”, defendeu o professor.
Neste momento de “arrocho” ao compartilhamento de arquivos na web, esta foi uma pequena vitória. Os resultados de uma pesquisa universitária suportada por uma vasta base de dados estatísticos provou que os downloads “ilegais” não prejudicam as vendas dos lançamentos musicais. Ao contrário, ajudam a promovê-los.
Autoridades não compreenderam o que acontece na web
E no Brasil, como vamos, no campo dos direitos autorais? Andamos mal. Legislação antiquada, ultrarrigorosa e inflexível. O professor Carlos Affonso Pereira de Souza, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, considera nosso marco legal “um dos mais restritivos do mundo”. O acadêmico também citou uma ONG, a Consumers International, que pesquisa sobre direito dos consumidores no mundo todo. Na classificação deles, a nossa lei de direitos autorais aparece sempre entre as dez piores do mundo (ver aqui).
A questão dos direitos autorais é estratégica e envolve coisas muito mais sérias do que downloads recreativos que não visam ao lucro e supostamente diminuem ganhos de gravadoras. A antiquada lei brasileira de direitos autorais não protege ou contribui para a conservação e prevenção dos acervos de obras de arte protegidas por direitos autorais, por exemplo. Muito pelo contrário, atrapalha. Muitas delas são perecíveis, ou não podem mais ser expostas, mas nossa lei impede sua digitalização. Alteração de formato de mídia é pirataria, segundo a legislação corrente. Downloads de professores com fins educativos também são proibidos pela nossa lei. Nossa lei é inadequada, injusta e inadaptada às novas evoluções na web.
Quanto ao download nosso de cada dia, não há problema. Felizmente estamos no Brasil, terra onde a lei é uma coisa e a prática jurídica é outra bem distinta. A lei escrita é sempre subjugada pelos costumes da sociedade. E a nossa é bastante tolerante com os downloads ilegais. O advogado especialista em direito digital Omar Kaminski declarou ao portal Terra Tecnologia (23/02) que “ações contracompartilhamento e download de músicas e filmes são exceção no país”. As autoridades ainda entendem pirataria como algo que acontece em meio físico, como DVDs e similares vendidos pelas ruas das cidades. Ainda não compreenderam muito bem o que acontece na web.
Downloads “ilegais” vão continuar
Temos muitos poucos casos que realmente foram parar na justiça. O artigo do portal informou ainda que em 2003 um internauta de Curitiba foi formalmente acusado de lucrar ao cobrar por downloads e envio de CDs para clientes. Houve também o caso de uma associação de empresas da indústria fonográfica que, em 2008, conseguiu retirar um software livre de compartilhamento de arquivos (P2P) da web porque este continha anúncios e gerava lucro para os programadores. Nos dois casos, houve lucro envolvido entre as partes. Não é como um simples compartilhamento privado para fins recreativos.
A lei aqui é dura e antiquada, leitor, mas tem sido flexível quanto aos downloads “ilegais” (pelo menos até o momento). Brasileiro adora um download. Quem pode negar? A cada dia que passa é uma prática cultural mais aceita e praticada em todo o mundo. Vamos ter que encontrar novos meios para monetizar música e filmes na web, principalmente. Porque, gostem ou não os advogados da velha realidade analógica pré-internet, eles vão continuar. No mundo todo sem exceção.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]