Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ivan saiu de cena

O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla, geral e irrestrita: o coração de Ivan Lessa parou de bater, em Londres. Ivan Lessa saiu do Brasil no fim dos anos sessenta. Passou as décadas seguintes sem pôr os pés na ex-Terra de Santa Cruz. Ainda assim, mantinha uma relação absoluta com o país. Ivan Lessa convivia com um país que, provavelmente, só existia na imaginação de Ivan Lessa: um Brasil que tinha com fronteiras a Ipanema dos anos sessenta e a Copacabana dos anos cinquenta.

Eis aí a beleza da atitude de Ivan Lessa: uma bela saída para o absurdo da vida talvez seja criar países imaginários e cultivá-los com todo cuidado por décadas a fio. De resto, Ivan Lessa era o avesso de tudo o que pode haver de risível em intelectuais e jornalistas: a taxa de pretensão, pompa e empáfia circulando na corrente sanguínea de Mr. Lessa era zero.

Aos que nasceram ontem: Ivan Lessa foi um talento reluzente na geração que criou um jornaleco que influenciaria as gerações seguintes: O Pasquim. Os textos de Ivan Lessa eram “inlargáveis”: quem começava ia até o fim. Era um espírito independente. Não seguia a boiada. Não implorava por aplausos. Escrevia estupidamente bem. O lamentável é escrever sobre ele no passado. C´est la vie.

Aqui, uma entrevista (extensa) que fiz com o homem:

O decálogo de Ivan Lessa

1. “Eu estou por fora de orixá, araçá azul, odara e mandacaru vermelho!”

2. “O Brasil deveria esquecer o cinema. Somos ruins.”

3. “Pateta, Mickey e o Pato Donald são vizinhos melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca.”

4. “Não há motivo algum para nos sentirmos à vontade do mundo! Os alienígenas somos nós.”

5. “O calor dá sono. o frio me civiliza.”

6. “Não quero entrar com meu plangente violão do saudosismo, mas o nosso jornalismo piorou. Muito mesmo.”

7. “Sempre fui muito mais velho e muito mais cético que Paulo Francis.”

8. “Ainda estou moço. só tenho 64 anos. Pode ser que a depressao ainda venha.”

9. “O que acho triste é o fato de o meu livro sair!”

10. “Uma das vantagens de estar fora é que só recebo o disco de Caetano Veloso: não sou obrigado a ouvir aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas das entrevistas.”

Atenção, arrivistas, subliteratos, emergentes, poetastros, politiqueiros, novos ricos, velhos baianos e poderosos em geral: já podeis respirar aliviados. Porque uma das mais ferinas penas já surgidas sob o sol da ex-Terra de Vera Cruz acaba de confessar, sem pompa nem solenidade: não voltará jamais ao Brasil. Acabou. Já era. Bye, bye Brasil – dessa vez é para sempre .O nome da fera? Ivan Lessa, claro. A confissão foi feita em Londres. (Que confissão? Que pompa? Que Londres? Que Brasil? – perguntará, em silêncio, nosso inquieto personagem, enquanto caminha, circunspecto, por suas florestas interiores).
Que ninguém pense que Mister Lessa – uma das mais reluzentes estrelas de uma geração marcada por monumentos jornalísticos do porte de Paulo Francis e Millôr Fernandes – foi acometido por algum surto extemporâneo de antibrasileirice aguda. Pelo contrário. Longe do país há ininterruptos vinte e um anos, desde que trocou o sol escandaloso do Rio de Janeiro pelo cinza made in Britain, Ivan Lessa cultua, a distância, suas paixões brasileiras. Todo dia dá uma navegada na internet à procura de notícias da pátria-amada-idolatrada-salve-salve. É especialista em MPB. Provocado, é capaz de recitar horas sobre os tempos (áureos? prateados?) em que as ondas da Rádio Nacional embalavam o Gigante-pela-própria-natureza, ali pelos anos quarenta, cinquenta. (Que sol escandaloso? Que cinza? Que navegada? Que gigante? Leave me alone! Deixem-me em paz! – repetirá, levemente irritado, enquanto desliza pelos corredores da estação de Holborn).

Todo dia sai de casa, em Londres, para cumprir expediente no Serviço Brasileiro da BBC. Depois de 7.665 dias sem rever o Brasil, deu-se conta de que não, não planeja voltar – nem em sonho. Deve estar, intimamente, se perguntando, como o poeta Drummond no verso famoso: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” Mas o Brasil de Ivan Lessa existe, sim: é pessoal e intransferível. Dispensa o contato físico. (Que 7.665 dias? Que sonho? Que Brasil? Que contato? Leave me alone, please! – bradará, por seus alto-falantes internos, enquanto passa a vista pela primeira página do Financial Times).

Uma vez por ano,Mister Lessa vai passar férias com a mãe, a cronista Elsie Lessa,em Portugal. A ponte aérea Londres-Lisboa, com eventuais escalas em Paris, lhe basta.

A visão de Ivan Lessa dedicado a fazer transmissões radiofônicas de Londres para o Brasil desperta uma dúvida inevitável: não será um caso escandaloso de desperdício de talento? Quem conhece um ouvinte regular das transmissões da BBC, em português, para o Brasil? Cartas à redação. Em todo caso, o sentimento de desperdício pode ser parcialmente atenuado: graças ao zelo da mãe – que guardou os originais das crônicas – e à dedicação de uma colega de trabalho – que organizou o volume – os leitores saudosos do Ivan Lessa dos tempos do Pasquim ganharam de presente um volume de crônicas, Ivan Vê o Mundo.

Aos 64 anos, amarga, sem dramatizar, a ausência da alma gêmea, Paulo Francis. “Eu estou tendo agora de lidar com um buraco enorme chamado Paulo Francis, que, de repente, sem mais nem menos, se abriu diante de mim. O estrangeiro é espantosamente real, irreversível. Não me há mais Brasil. Fim de papo. Não tem mais ninguém do outro lado da linha” – escreveu na revista Veja nos dias seguintes à morte do amigo de quase cinco décadas.

Senhoras e senhores: com a palavra,Mister Lessa – ferino,inquieto,irônico,brasileiro como nunca.

(Que zelo? Que desperdício? Que alma gêmea? Que brasileiro? Um Valium, urgente! – murmurará,enquanto se mistura,anônimo,aos frequentadores das livrarias da Charing Cross Road).

Você diz numa crônica que o mundo é um lugar estrangeiro,’’assim que a gente bota os pés na rua, fora de casa’’.O sentimento de estranheza diante do mundo é indispensavel á vida intelectual ou é algo que voce sempre teve?

Ivan Lessa – Você me faz ficar sério… A gente vai ao Camus, a O Estrangeiro, o encontro com o outro. Mas olhe aqui: nasci em São Paulo; garoto ainda, a primeira vez que entrei em colégio foi nos Estados Unidos; quando voltei, fui para o Rio. Depois, garotão ainda, fui para Paris. Isso não quer dizer nada, era viagem. Mas acho, sim, que o homem é estranho na terra. Deve manter, por uma questão de saúde mental, essa sensação de ser um estrangeiro aqui, no meio de árvores, pedras e seja lá o que for. Os alienígenas somos nós! É isso mesmo, é isso mesmo: manter a sensação de ser um estrangeiro tem um lado muito saudável. Não há motivo nenhum para você ficar muito à vontade no mundo! Não há motivo para que se diga “estou à vontade”. Não, não. Fique com uma certa timidez. Isso é bom: manter uma certa distância.

A essa altura,a ausência prolongada do Brasil (vinte e um anos) ja se transformou num acontecimento importante em sua biografia. Nâo vou perguntar por que é que você passou tanto tempo sem ir ao Brasil…

I.L. – (interrompendo): Que bom!

Mas vou perguntar: você planeja voltar um dia?

I.L. – Não planejo, não planejo mesmo! Não digo que não, porque aí parece implicância. Mas simplesmente não é algo que esteja em meus planos. O que planejo é passar novamente as minhas férias de julho, no ano que vem, em Portugal, porque tenho um apartamento lá. É uma coisa de rotina. Sou rotineiro. Gosto de rotina porque a rotina me ajuda a me situar no mundo e a me sentir menos estrangeiro. Eu sei que, em novembro, darei uma chegada a Paris. Disso tudo eu sei porque são meus planos. Mas voltar ao Brasil não está nos meus planos, simplesmente. Nisso não vai birra nenhuma, querela nenhuma, disputa nenhuma. Não estou reclamando da acústica da plateia, ao contrário de João Gilberto…

Sao irritantes para você essas teorias que se fazem sobre “por que é que Ivan Lessa não volta ao Brasil”? O motivo pode ser pessoal: a mãe mora em Portugal, você vai passar as férias lá e ponto final…

I.L. – Sou ruim de número. Quantos são na diáspora brasileira? Nós, que estamos no estrangeiro? Quantos somos nós, agora? Há um milhão de brasileiros no estrangeiro? Então, pergunta a eles também! Não estou sendo desaforado com você – e você sabe que não. Sou apenas um imigrante a mais que foi tentar uma vida melhorzinha no estrangeiro. Ponto.

Uma das coisas que o fizeram sair do Brasil foi a mania do brasileiro de assoviar dentro do elevador. Qual é a outra mania brasileira que lhe “dá nos nervos”,como voce gosta de dizer?

I.L. – Informalidade! Pra resumir numa frase: pegar na gente. Você sabe o que é que quero dizer? Inglês não pega em você! Mas se você me encontra ou se eu encontro você na rua e eu digo “Olá, Geneton, como é que vai?”, e fico pegando, fico catucando… É como aquele camarada que, ao falar com você, cola a boca no seu ouvido, como se você fosse surdo. Dá para fazer toda uma galeria de tipos desagradáveis, num plano leviano.

O inglês se limita a um aperto de mão, na primeira vez…

I.L. – Uma apresentação,um aperto de mão, como diz o samba de Francisco Alves. Mas às vezes apertam a mão outra vez, quando veem você novamente. Francês é que aperta a mão o tempo todo. É um motivo para não ir muito à França. Se eu trabalhasse com você num escritório e todo dia apertasse a sua mão na hora de chegar e na hora de ir embora… Há uma certa pegação. E essa pegação pode ser transcendental: podem querer pegar na sua alma também! Pegar no seu pé, pegar na sua alma, você pode estender a metáfora.

Uma das coisas que falam – bem – do brasileiro é esta efusão…

I.L. – Nunca vi ninguém falar bem! Não estamos saindo com as mesmas pessoas…

Quando comparam o brasileiro com estrangeiro…

I.L. – (interrompendo) Mas efusão para mim é barulho! Um dos motivos por que saí –mesmo! mesmo! – é que eu não podia nem conversar na sala com um amigo quando morava no décimo-primeiro andar na Avenida Atlântica, esquina com a rua Bolívar, no Rio, em cima de um bar chamado, veja você, “Transa”! Isso que você chama de “animação”… Lúcio Alves ia cantar lá em casa, eu tinha de fechar as janelas por causa do barulho – que criava um “funil acústico” capaz de enlouquecer qualquer João Gilberto! E sem ter um Caetano para mediar! [Ivan Lessa se refere ao episodio da vaia sofrida por Joao Gilberto na inauguração de uma casa de espetáculos em São Paulo, num show em que Caetano tentou conter a reação da plateia.]

De que maneira voce detectou, fora do Brasil, uma piora nos modos do brasileiro? Isso foi através do telefone?

I.L. – Nestas novas gerações de brasileiros com quem vou me encontrando por um motivo ou por outro, noto, cada vez mais, um excesso de informalidade. O cara que assoviava no elevador – e me irritava – hoje piorou muito mais. Hoje em dia, ele já entra assoviando dentro da minha alma, não apenas no elevador.

A vaia a João Gilberto criou um certo escândalo, porque abriu um precedente: um monumento da MPB levando uma vaia durante um show. Isso assustou você? Em que situação voce justificaria uma vaia a esses monumentos da MPB?

I.L. – Não me assustou. Com todos os “esses” e “erres”, não. Em 1958, eu, com vinte e três anos, economizo meu dinheiro para ir ver Billy Eckstine cantar no Fredy’s, na esquina da avenida Princesa Isabel com Atlântica. Peguei uma mesa quase ao lado do palco. Entre mim e o palco, havia uma mesa com Abrahão Medina e Sônia Dutra. Nesta época, Abrahão Medina patrocinava nada mais, nada menos que o programa Noite de Gala, em que Billy Eckstine iria se apresentar na segunda-feira. Eles falaram o tempo todo! Billy Eckstine, então, parou de cantar e pediu para eles calarem. Delicadamente. Eu estava ali vendo o Billy Eckstine fazendo aquilo, porque a importância de Billy Eckstein para mim é uma loucura. Para quem tem vinte e três anos e economizou para ver o show… Ele estava cantando Blue Moon. Se em 1958 este era o comportamento da plateia com um astro internacional, por que é que vão interromper o papo para um sujeito chamado João cantar ou tocar violão? Nós somos muito mal-educados! É o negócio do cara que entra assoviando no elevador. Há gente que não assovia no elevador, só assovia no show de João.

Caetano Veloso deu, depois, uma entrevista irritada dizendo que eram cinquenta imbecis…

I.L. – (interrompendo) Deu uma entrevista irritada, mas era uma daquelas falas demagógicas dele. Disse que os que vaiavam “não me estão no coração” ou algo assim. Em vez de chamar de filhos da puta! Rodou a baiana, mas rodou muito mal pra cima deles. Deveria ter dito assim: “Respeitem! JoÃo está reclamando da acústica! Parem de fazer barulho!” – e não ficar falando “meu coração não se alegra…” Não! Respeitem o artista, deixem-no cantar, mesmo que fosse uma merda! Mas deixem que ele cante! Fiquem quietos por cinco minutos. Não demora mais do que cinco minutos uma música!”

Um caso que foi lembrado, porque envolvia gente da estatura de JoÃo Gilberto, foi a vaia que Tom Jobim e Chico Buaque levaram naquele festival em que cantaram Sabiá…

I.L. – Mas ali havia torcida, era festival no Maracanãzinho, povão, todos eles insuflados, incentivados pela Globo. Aquilo vai adquirindo um clima de Fla-Flu, coisa que não havia no Credicard Hall. Era um pessoal que pagou – ou não – apenas para ver um cantor. O pessoal, no Maracanãzinho, estava torcendo, “eu torço por Tom Jobim”… Não era o ano de Geraldo Vandré? Ele todo de preto, naquela época só ele e o violão. Mas aí é pra torcer.Se você não torcer num Fla-Flu, se quer ficar sentadinho, deve ter algo de errado com você. É melhor vir para Londres, porra!

Quando publicou o primeiro romance,Cabeça de Papel, Paulo Francis ficou deprimido ao constatar a falta de repercussão cultural do que se faz no Brasil. Francis achava que o romance iria ter uma repercussão muito maior. Disse que ficou deprimido, deitado, olhando para o teto. Você tem também tem essa sensação? Assim como Paulo Francis, você acha que o Brasil vive num “sertão cultural”?

I.L. – Francis era meio ingênuo em certos troços. Eu disse: “Oh, rapaz, esse negócio de romance, livro, o pessoal fala pra burro, você dá entrevista de duas páginas pra Veja e pra IstoÉ, sai nos quatro jornais de sempre – Folha, Estadão, Globo e JB – e, depois, acabou! É isso mesmo, porra! Assim como aqui na Inglaterra, você vai e escreve um novo romance! Investe mais dois anos nisso! Mas Francis não pegou isso. Nesse ponto, eu sempre fui muito mais velho e muito mais cético do que Francis: talvez por este motivo é que ele tenha ido para Nova York e eu, para Londres.

Paulo Francis teve sucesso como romancista…

I.L. – Mas ele tinha o post-romance tristis… adaptando o post-coitum tristis, é o que tinha. Ficava deprimido. Mas não penso em sertão cultural nenhum, não. Eu acho que há sertão cultural sim, mas não por causa do livro de Francis. Ele estava partindo do livro que tinha lançado. Eu não tenho porra nenhuma. O que acho triste é o fato de o meu livro sair! Fiz as crônicas na esperança de que fossem se perder no éter… Nunca guardei cópia.

Mas você não guarda o que você escreve?

I.L. – Não! Quem guarda isso é mãe, tia…

Sua mãe não guarda?

I.L. – Mas essas crônicas só saíram porque minha mãe guardou! Eu escrevi entre 1978 e 1992 para o serviço brasileiro da BBC. Revezava, nos primeiros anos, com Vamberto Morais. Num domingo era eu, no outro era ele. Depois, fiquei eu. São quatorze anos de crônica. Eu escrevia em casa, entrava no estúdio, gravava, botava aquela fita amarela no começo e a vermelha no fim e deixava lá numa caixa azul, com uma cópia para que o sujeito que fazia o transmissão da noite soubesse o começo e o tempo. Depois, alguém arquivava lá. Mas nunca guardei cópia pra mim. Um dia, uma secretária escocesa estava limpando lá e me perguntou: “Voce quer isso aqui?” Era um punhado de crônicas, um cadernão daqueles grandes. Eu disse: quero. Por um acaso, era fim de ano, época em que minha mãe vem para cá, passar o Natal. Botei tudo dentro da pasta de trabalho, cheguei em casa e disse: “Elsie, você quer isso aqui?” Então, ela levou tudo com ela, para Cascais, Portugal. Helena Carone – que estava preparando um livro baseado em contribuições que eu fazia sem script para a parte cultural das transmissões do serviço brasileiro da BBC – iria fazer a transcrição do que eu tinha falado com ela. Mas aí eu estava em Cascais, como todos os anos, monotonamente, passando minhas férias, mexendo na caixa da Elsie depois do almoço. Terminei achando as crônicas. Desci, fui ao português lá de baixo tirar xerox do que sobrou. Desses quatorze anos, sobraram umas oitenta crônicas, só. Trouxe para cá. Dessas oitenta, Helena selecionou quarenta. As menores, as que não chegam a uma página, evidentemente não eram crônicas: eram transcrições da minha colaboração com o programa cultural.

Numa gravação que fez com você, na BBC, Paulo Francis disse que, diante da sociedade de massas, filistina e medíocre, ele se sentia “tecnicamente morto”…

I.L. – Agora eu me lembro…

Voce tem também essa sensação de ser um peixe fora do aquário?

I.L. – Absolutamente! Absolutamente! Talvez porque Francis vivesse muito mais no Brasil e dependendo do Brasil. Repare que o dinheiro de Francis vinha do Brasil. Então, muito corretamente, ele tinha de ir lá para regar a flor da carreira dele. De seis em seis meses, Francis estava no Brasil, não só para rever os amigos – e ele os tinha, muitos – mas para se acertar com o pessoal da Folha e, depois, o Estadão. Francis ganhava em dólar, mas era dinheiro que deixava o país. Eu, não. Eu ganho aqui mesmo, em Londres. O dinheiro quem paga é o contribuinte britânico. A verba da BBC é do Ministério do Interior. Em resumo: o que quero dizer é que não tenho necessidade de regar a flor da minha profissão. Como ia ao Brasil, Francis talvez sofresse com esse deslocamento. Dava o choque de ida e vinda. A cada vez que descia no Galeão, sentia uma emoção, possivelmente. A cada vez que descia no Aeroporto Kennedy de Nova York, também. Eu, não. Meus aeroportos são o Charles De Gaulle, o de Heatrow e o da Portela, em Lisboa, onde me mexo mais.

Mas quando Francis se declarava “tecnicamente morto” não estava se referindo apenas ao Brasil, mas a uma situação geral…

I.L. – Francis tinha uma variação nos moods. Eu não traduzi essa. Tinha as suas ruas. Como é que que se diz quando alguém sobe e baixa…

Era ciclotímico…

I.L. – Tecnicamente, era ciclotímico. Eu, não. Estou na média ponderada. Não sou muito entusiasmado, mas não tenho depressões, graças a Deus. Também estou muito moço ainda: só tenho sessenta e quatro anos. Pode ser que a depressão venha ainda.

Eu me lembro que você me disse uma vez que quer é ficar na arquibancada – olhando o jogo.

I.L. – Agora, nem na arquibancada! Quero ver o jogo pela TV a cabo.

Em breve, a TV brasileira vai chegar à Inglaterra, por assinatura.

I.L. – Tomei contato com o Brasil agora nas minhas férias em Portugal, porque tinha o GNT e o Canal Brasil. Vi filme que não acabava mais. Tudo o que podia. Fico muito tempo em casa, na piscina. Depois que saio da piscina, entro no apartamento e faço questão de ver tanto a programação do GNT como, principalmente, os filmes. Honestamente, pra ver chanchadas, essa coisa toda, eu não morria de saudades. Não tive surpresa nenhuma em constatar que eram muito ruins. Eu, na época, já achava ruim, mas via e gostava de ver. Já os filmes mais pretensiosos, esses foram uma luta para ver. Puta que o pariu! Eu acho que, em cinema, a gente é ruim. Cinema a gente deveria esquecer. Com uma exceção. Você vai brigar comigo: gostei muito de todos os filmes que vi do Julio Bressane. Vi Brás Cubas, Tabu, Matou a Família e Foi ao Cinema e Cara a Cara. Eu não tinha visto quando estava no Brasil. Quando morava no Brasil, eu não via filme brasileiro porque achava um saco. Gostei muito, achei muito pessoal.

Júlio Bressane tem um estilo…

I.L. – Exatamente! Um estilo urbano, safado – de citação. Eu sinto que ele faz para seis pessoas, seis entendidos, no bom sentido.

Você escreveu que aqui no Brasil são trinta pessoas vendo um o que o outro faz.

I.L. – Num artigo sobre 68, eu disse que eram quarenta pessoas fazendo coisas para quarenta pessoas assistirem: teatro, cinema, bossa-nova. Eram só quarenta pessoas. Aliás, eram quarenta fazendo e quarenta consumindo. De vez em quando, havia um troca-troca.

Um dos problemas do cinema é industrial. Se o Brasil não tem uma indústria de ponta, não vai ter um cinema. Se você não tem equipamento de última geração, não vai fazer, porque cinema não cai do céu. Vai haver sempre um problema técnico.

I.L. – Isso tudo completa o que estamos falando. Nós estamos ligadíssimos a tudo o que é americano. Então, a narrativa vai ser a convencional americana, com começo, meio e fim americano. Você pega um filme francês: eles tentam escapar. O nocivo que vem dos Estados Unidos não é a Barra da Tijuca que sofre não. É o próprio Central do Brasil.

O Brasil aparece como sonho ou como pesadelo em suas noites londrinas?

I.L. – Estou fora do Brasil há vinte e um anos enfileirados. Mas sonho é sempre desinteressante, é sempre bobagem. De vez em quando é ruim, é pesadelo. Hoje, segunda, por exemplo, eu entro na internet para imprimir colunas de Elio Gaspari, Carlos Heitor Cony, Janio de Freitas. Em resumo: passando os olhos, fico horrorizado com o Brasil. Claro que fico. Acho o jornalismo de muito baixa qualidade. O nosso jornalismo piorou muito. Muito mesmo. Não quero aí entrar com meu plangente violão do saudosismo, mas piorou mesmo. Quanto a sonho e pesadelo, digo o seguinte: até os dez, quinze anos de ausência do Brasil, um e outro acontecem. Depois, quando você completa dezoito anos fora, o Brasil fica longe, no tempo e no espaço. Nesta hora, você tem de botar Einstein na equação, porque o negócio fica totalmente imponderável. O Brasil fica mais distante do que um assunto como o tráfico de escravos e a Grã-Bretanha, tema de um documentário que gravei em vídeo ontem e hoje na TV. Por incrível que pareça, é um assunto que fica mais próximo de mim e dos problemas atuais que vivo no sentido de sair de casa, pegar o metrô e ir para o trabalho.

Você reclama de que o calor “prega peças em nossa sensibilidade, inteligência e discernimento”. Você faz alguma relação entre calor e incivilidade? Historicamente, parece que existe alguma…

I.L. – O calor dá sono. Você dorme, fica de calção ou até pelado. Fica ali pelo Rio, dá uma porrada no peixe. Mas o frio obriga você a ter roupa, a sair para matar um urso. É mais complicado matar urso do que matar peixe. “Matar urso” quer dizer fazer um guarda-roupa de inverno mais adequado. Com o frio, você tem de fazer casa, é obrigado a produzir calor. Não adianta estender a carne no sol – Pernambuco que me desculpe. Então, vou naquela que diz que o frio civiliza. Qual é o outro lugar comum? “Nunca houve uma civilização abaixo dos trópicos.” Não discordo muito. A mim, pelo menos, num aspecto pessoal, o frio me civiliza.

Há o lado estético também: o frio obriga as pessoas a se vestirem melhor.

I.L. – Exatamente! Eu, como estou engordando, disfarço melhor a barriga com roupa de frio.

Você escreve que desenhos e caricaturas de seus amigos, pendurados na parede de casa, parecem dizer: “era uma vez, era uma vez, era uma vez…”. É natural achar o passado sempre mais interessante que o presente?

I.L. – Não é questão de ser interessante. Há no livro – o que sobrou das crônicas que faço na BBC – um nítido saudosismo. Quem escreve crônica tem a tendência a se autobiografar, no sentido de se entender. Procuro evitar a babaquice, a nostalgia pela nostalgia, o saudosismo pelo saudosismo, mas é uma maneira de a gente se entender e se autobiografar. Todo mundo, numa certa altura da vida, quer se botar em ordem. Já que vimos, neste fim de milênio, que o sofá de Freud não deu certo, queremos nos botar em ordem, então. Mas há um detalhe que acho importante na ligação com o passado. É uma coisa muito, mas muito importante mesmo. Poucas pessoas entenderam o que vou dizer agora: o passado não só ajuda você (nós, a gente, um povo) a se entender, mas também nos ajuda a compreender aquilo a que aspirávamos! Isso é muito importante! Se você pegar a arquitetura do Recife ou da Bahia ou do Rio ou de São Paulo, há uma aspiração ali! Vamos para Brasília: há uma aspiração naquela arquitetura. Um dia, possivelmente, vão derrubá-la para fazer outra coisa em cima. Então, não é endeusar o repertório de Orestes Barbosa ou de Noel Rosa… Aliás, devemos endeusar sem esquecer jamais que aquilo é uma contribuição à cultura. Mas a conexão com o passado é também a conexão com a nossa aspiração como um povo, como um todo. O lugar comum é aquele: você vai ao passado para se entender. Mas é para entender aquilo a que a gente um dia aspirou, rapaz!

Quem olhar para a Barra da Tijuca, daqui a trinta anos, vai ver que aquilo é uma cópia de Miami. Hoje, então, existe um Brasil que aspira a ser Miami.

I.L. – Eu li, no New York Times, um artigo excelente sobre a Barra, escrito por um americano, dizendo exatamente isso. O autor do artigo vai enfileirando desde a arquitetura até os nomes dos lugares, feito este Credicard Hall. Eu acho até que ele errou um pouco, ao dizer que o Leblon e Ipanema estavam mais ligados à França. Dá como exemplo aqueles edifícios do Sergio Dourado, já nos anos setenta, com nomes franceses. Mas aí ele errou, porque nossa influência francesa é muito anterior, pode ser vista no Teatro Municipal – que é o Ópera.

Quando a Disneylandia Paris foi inaugurada, os franceses disseram que aquilo era o Chernobyl cultural. Ariano Suassuna escreveu que aquele era o maior monumento à imbecilidade humana. Você, que esteve lá,concorda com essas duas avaliações?

I.L. – Sem dúvida nenhuma! Mas acontece que, como tudo o mais, vai ficando natural. Os japoneses devem ter ficado muito mais chocados que os franceses, mas aceitaram docilmente. Os franceses já aceitaram também. Devem rir um pouco das pessoas que vão lá. Mas acabam aceitando, como parte da paisagem. Hampstead, aqui em Londres, é um bairro metido a besta, intelectual, mais ou menos como Ipanema nos anos sessenta. Não tinha McDonald’s lá. Para conseguirem abrir um McDonald’s lá, foi uma luta. Então, fizeram uma fachada meio disfarçada, mas abriram um McDonald’s em Hampstead, sim.Você acaba aceitando.Vai em frente! É a globalizacao, rapaz, a escrotidão! É essa Barra da Tijuca. O artigo do New York Times lembra que a Califórnia também aparece na Barra da Tijuca.

É americana nesse sentido: para viver e se deslocar na Barra da Tijuca, você tem de ter carro.

I.L. – Como na costa oeste americana! Se a polícia vê você andando, em Los Angeles ou Beverly Hills, ela para imediatamente para pedir documento. É o que estou dizendo: qual é a diferença entre a Barra da Tijuca e a Disneylândia? Apenas que a Disneylândia é mais organizada. Pateta, o camundongo Mickey e o Pato Donald são vizinhos melhores do que o pessoal que infesta a Barra da Tijuca.

Onde haverá uma réplica da Estatua da Liberdade…

I.L. – A história da réplica da estátua é que motivou a reportagem do New York Times.

As agências do Banco do Brasil exibem placas dizendo “personal banking” junto dos caixas eletrônicos. Sem patriotada: por que não escrever em português?

I.L. – Isso é grotesco. Eu abro o jornal. Todo mundo tem “personal trainer”. Não! É demais! Você aceita, na linguagem da economia, um “over’’aqui, ou uma “net”, ou palavras como “deletar”. Mas o presidente da República falar em “cenário” no sentido de hipótese, não! Um absurdo! A Academia Brasileira de Letras foi criada para proteger a língua e para ajudá-la a lidar com inovações. Então, ao invés de ficarem se premiando, deveriam dar uma mãozinha, porque supostamente são alfabetizados! Não digo forçar a barra como os franceses tentaram, ao baixar uma lei para que quarenta por cento de toda música tocada tem de ser francesa… Computador na França é “ordinateur”. O software é “logiciel”. Pelo menos tentaram. E essas duas palavras pegaram. O aparelho de gravar é “magnetophone”. O que quero dizer é o seguinte: deve haver um esforço no sentido de tentar traduzir. O jornalismo entra aí.

Um deputado brasileiro vem tentando criar uma lei que limite o uso de expressões inglesas em locais públicos.

I.L. – Não dá. Legislar a língua não pode. A Academia Brasileira, já que é um dos poucos lugares onde há supostamente intelectuais reunidos, e com algum poder, poderia tentar sugerir. Antonio Houaiss não estava lá com um projeto de reforma ortográfica que era uma besteira enorme? A Folha, o Estado de S.Paulo não têm manual de estilo? Sempre que possível, deveriam tentar traduzir as palavras, porque elas pegam.

Você – que é especialista em musica popular brasileira dos anos quarenta e cinquenta – acha que a MPB daquele tempo era melhor do que a de hoje?

I.L. – Não estou no Brasil para acompanhar, mas acho que, em matéria de música popular, a gente é danado de bom. O último que ouvi foi Ginga; qualquer coisa que Aldir Blanc faz eu acho sensacional. Honestamente! Outros, nunca ouvi. Anunciaram um concerto enorme aqui em Londres com a turma de sempre – Caetano, Gil, Chico Buarque – e uma de quem nunca ouvi falar: Virgínia Rodrigues. O que quero dizer, então, é que não estou acompanhando. Caetanices à parte, tiro o chapéu para Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque não sou idiota. Brinco com eles, mas não sou idiota para não ver o extraordinário talento que existe ali. Eu acho que estamos melhores em música do que em futebol. Vi trechos do Brasil e Holanda… Há o lugar comum que diz nós, brasileiros, sempre fomos bons de futebol e bons de música. Somos bons! Então, acho que a música não piorou.

Houve brigas com os baianos, herança da época do Pasquim, principalmente com Caetano Veloso.

I.L. – Jaguar os chamava de baiunos…

As brigas eram com Millôr Fernandes, o próprio Paulo Francis.

I.L. – Os baianos enchiam muito o saco, com muita autopromoção. Era odara, oxalá, como é aquele negocio azul? Araçá azul! Uma fase de Caetano Veloso. Então, Caetano tem aquele negócio de se reiventar. É a fórmula de David Bowie, a de ter personas artísticas. Implico um pouco com a parte promocional, mas o produto final, o que me interessa, é o disco. Uma das vantagens de não estar no Brasil é que só me chega o disco; não tenho de acompanhar as entrevistas, ver aquelas tolices enormes e aquelas bobajadas que as pessoas são obrigadas a dizer para promover. De certa maneira, estou dizendo minhas bobajadas aqui para ajudar a vender o meu “disquinho”, o livro. Mas quanto ao produto final não tenho dúvida nenhuma.

Durante anos houve aquela briga, entre aspas, entre o público de Caetano e de Chico Buarque, hoje inteiramente superada. Você chegou a tomar partido?

I.L. – Não, porque era bobagem tomar partido. Eu poderia gostar mais do que Chico fazia. Meu Deus do céu: eram anos em que Chico não errava uma! Com essa mania de fazer listas neste fim de milênio, se você tiver de fazer uma lista de cinquenta álbuns (vamos falar de álbuns conceituais, com começo,meio e fim), Construção, o álbum de Chico Buarque, é uma loucura, rapaz! Chico fazia uma atrás da outra. Pá, pá, pá! Havia, em Chico Buarque, uma consistência de qualidade que era absolutamente extraordinária. Então, eu apenas gostava mais de Chico, o que não significava que eu fosse brigar com Caetano Veloso. Os dois davam concerto, cantavam juntos aquela Bárbara … (cantarola a música do disco Chico e Caetano Juntos e ao Vivo’, lançado em 1972). Então, essa briga, para efeitos de Pasquim ou de sacanagem no botequim da esquina ou na mesa de bar, tudo bem, acho que vale. Mas – falando sério mesmo – acho que não vale não! Apenas Chico me falava mais. Sou mais urbano; estou por fora de orixá, aracá azul, odara e mandacaru vermelho! Eu estou por fora dessas porras! Letra de Aldir Blanc marca minha vida. Eu manjo o “dois pra lá, dois pra cá”. Eu estive lá!

Voce constata que o fôlego literário brasileiro é curto, com exceção de Euclides da Cunha. Enquanto o resto da América Latina produz escritores que você chama de “caudalosos”, nós seriamos “excelentes” no pingue-pongue do conto, com Machado de Assis, Dalton Trevisan,entre outros. Você não acha que um país que, pelo menos geograficamente, tem vocação para grandeza, como o Brasil, não deveria produzir também uma literatura mais épica?

I.L. – Se não produzir, há algum motivo. Cabe a pessoas mais bem qualificadas do que eu entender o por que. Mas há o reverso do que falei. Citei o conto, mas me esqueci de citar os nomes de três gigantes: Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade. O que é a poesia se não a linguagem em alta tensão? Você tem ai três poetas de estatura mundial em qualquer época! Já que vivemos esta febre de fazer listas neste fim de milênio, seguramente você pode botar esses três em qualquer lista dos maiores poeta do século! Você sabe muito bem que não sou ufanista nem nacionalista. Era apenas uma crônica o que escrevi. E crônica é para sair no jornal e, no dia seguinte, estar embrulhando peixe, aquela velha história. Se você parar e pensar, além de Dalton Trevisan, Rubem Fonseca ou dos cronistas que não citei, como Rubem Braga, basta citar estes três poetas. Nossa Senhora! O Brasil dá um banho em poesia! Do outro lado do Atlântico,você tem Fernando Pessoa.

A presenca do Brasil no exterior se deve basicamente ao futebol – em primeiro lugar – e à música popular, em segundo. O fato de o Brasil ser sinônimo de futebol e música é sempre um motivo de orgulho ou é um incômodo para você – que vive fora do país?

I.L. – Para efeito externo, faço assim (e sei que estou fazendo conscientemente de birra; senão, teria enlouquecido há muito tempo): “Ah,esse time não é de nada, é uma cambada de vagabundos, esse Ronaldinho não vale porra nenhuma, vai perder para o franceses, eu torco pelo Zidane e essa coisa toda…” Mas não. O que me chateia é o torcedor! O inimigo é o amigo. O inimigo é esse cara que vive dizendo “somos os maiores, o Brasil já ganhou, é o tetra, é o penta, Caetano Veloso é o maior do mundo, a música brasileira é a melhor!”. O inimigo é esse!

Qual é a grande música brasileira do século vinte? Qual é a canção que você vai passar o resto da vida ouvindo?

I.L. – O título do romance que não escrevi seria Nos Astros, Distraído. Então, por aí você tem uma ideia [o título vem da letra da musica Chão de Estrelas, o clássico de Orestes Barbosa e Silvio Caldas]. O livro que não escrevi fala de um camarada que, em 1949, vivia de biscate, um tipo que conheci muito no Rio de Janeiro dos anos quarenta e cinquenta. Era um sujeito que escrevia para Rádio Nacional, tentava escrever. Para cinema, ele estava tentando fazer uma daquelas cinebiografias terríveis da Atlântida, filmes de meio de ano, sobre Noel Rosa. Para rádio, ele vai tentar fazer a de Orestes Barbosa. Então, esse era o tema do romance: eu ia levando num tom de deboche. Resolvi escolher 1949 porque em 1949 não existia ditadura: era Dutra. Ainda não tinha Maracanã e, principalmente, não existia televisão. É por isso que o romance se passava em 1949 .Era um tipo que tinha como influência cultural os cinemas da praça Saenz Peña e o rádio que ele ouvia… Então, quanto à música, estou entre Noel e Orestes, entre asfalto e morro, se bem que, a rigor, Noel falava de morro mas não subia morro não. Era asfalto também.

Voce parou em que altura o romance? Chegou a escrever?

I.L. – A sinopse do Noel foi publicada no primeiro exemplar da revista dos meninos do Casseta & Planeta. Eu dei pro Reinaldo.

Quase tão irritantes quanto as cobranças sobre por que você na o vai ao Brasil deve ser a cobrança sobre por que você não escreveu até agora “o romance da sua geração”.Você não tem vontade?

I.L. – Nao tenho nenhuma vontade mais. Eu escrevi alguns capítulos, porque tinha um negócio bolado. Mas veio a preguiça. Bateu-me o Caboclo Macunaíma. Ai, que preguiça (dá uma gargalhada). Pura preguiça! Nada mais brasileiro que Ivan Lessa. Preguiça! Macunaíma!

Você confessa que sentiu mais uma manhã de sol em Copacabana, num banco com a namorada, do que o suicídio de Ana Karenina de Leon Tolstoi. Isso quer dizer que, invariavelmente, a vida é superior à literatura? Ou a literatura pode ter também o poder de marcar a gente pelo resto da vida, através de uma frase, uma passagem?

I.L. – Eu, levianamente, escrevi essa frase numa crônica. Mas, para ficar pretensioso, qual é o subtexto do que eu escrevi? É que talvez, ao ler Ana Karenina, você se empolga, acompanha a mulher até ela se jogar embaixo de um trem, mas, se você se lembrar dessa meia hora na praça ou num jardim, evidentemente essas experiências têm, em você, um impacto pessoal que a literatura jamais vai dar. Posso, agora, ler um poema terrível, terrível. Vamos ficar no João Cabral. Pego o poema O Rio, é um horror aquilo que ele narra, mas é tão bonito, é tão bem feito que você sai quase empolgado. Então, esse é um velho problema de arte: você pode despertar a atenção para uma coisa, mas termina filmando bonitinho… Tenho um tape guardado com o Morte e Vida Severina, dirigido por Avancini. Há umas nuvens bonitas. Nunca vai ser o horror que é a vida real. O que quero dizer é que um livro pode me ajudar para que eu busque, em mim, os meus próprios dados para entender certos problemas básicos, como vida, copulação e morte. Isso soa pretensioso. Minha crônica é leve.

Logo depois da morte de Paulo Francis, você deu um depoimento obviamente desencantado dizendo que já não tinha interlocutores: “Só sei que de repente passei a me sentir mais sozinho do que nunca, mais distante ainda de um Brasil que deixou de existir, talvez nunca tenha existido. O estrangeiro é espantosamente real, irreversivel.” A sensação permanece?

I.L. – (depois de um breve silêncio) Permanece. Permanece. Mas tudo bem.

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[Geneton Moraes Neto é jornalista]