Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem algemas

A internet se encontra numa encruzilhada. Construída de baixo para cima, impulsionada pelas pessoas, ela se tornou um poderoso motor econômico e uma força social positiva. Mas seu sucesso produziu uma reação preocupante. Em todo o mundo, regimes repressores estão implementando ou propondo medidas que restringem a liberdade de expressão e afetam direitos fundamentais. O número de governos que censuram o conteúdo da internet aumentou agora para 40; em 2002, eram apenas quatro. E este número continua a aumentar, ameaçando acabar coma internet como conhecemos até o momento.

Algumas destas medidas são uma reação aos vários males que podem ser e vem sendo propagados pela rede. Como praticamente todas as grandes infraestruturas, a internet pode ser abusada e seus usuários, prejudicados. Entretanto, precisamos tomar cuidado para impedir que a cura para tais males seja mais prejudicial do que benéfica. Os benefícios da internet aberta e acessível são quase incalculáveis e a sua perda causaria um grande estrago econômico e social.

Diante deste contexto, uma nova frente na batalha pela internet está sendo aberta na União Internacional das Telecomunicações (ITU, em inglês), organização das Nações Unidas que tem 193 países membros.

Ela está promovendo uma revisão dos acordos internacionais que governam as telecomunicações e pretende expandir sua autoridade reguladora para a internet numa reunião de cúpula marcada para dezembro, em Dubai.

Tal decisão traz implicações potencialmente profundas – e, segundo creio, potencialmente prejudiciais – para o futuro da internet e todos os seus usuários.

Direitos humanos

No momento, a ITU se concentra nas redes de telecomunicações e na alocação de frequências de radiodifusão, e não na internet em si.

Alguns membros pretendem expandir a abrangência do tratado que rege a organização de modo a incluir a regulação da internet. Cada um dos 193 países membros tem direito a votar, independentemente do seu histórico de respeito aos direitos humanos – e basta uma maioria simples para aprovar a mudança. As negociações ocorrem em geral entre os governos, e o acesso a elas é muito limitado para a sociedade civil e outros observadores.

Quando ajudei a desenvolver os padrões abertos que os computadores empregam para se comunicarem uns com os outros pela rede, tive a esperança – sem poder prevê-la ––de que ela florescesse, desencadeando uma torrente de engenhosidade humana. Qual foi o molho secreto que levou ao seu sucesso? A rede prosperou precisamente porque os governos– na grande maioria dos casos – permitiram que a internet crescesse de maneira orgânica, com a sociedade civil, a academia, o setor privado e corpos voluntários de padronização colaborando no seu desenvolvimento, operação e governança.

Em comparação, a ITU cria barreiras significativas para a participação da sociedade civil. Agência especializada vinculada à ONU, ela nasceu da antiga União Telegráfica Internacional, fundada em 1865. O tratado que rege a agência, que recebeu sua última emenda em 1988, definiu práticas que quase não afetaram a internet.

Embora muitos governos estejam comprometidos com a manutenção de regimes flexíveis para as tecnologias em rápido movimento da internet, outros manifestaram explicitamente o desejo de instalar um grupo intergovernamental, possivelmente vinculado à ONU, no controle da rede.

Há um ano, o então primeiro-ministro Vladimir Putin declarou que a Rússia e seus aliados tinham o objetivo de “estabelecer o controle internacional sobre a internet” por meio da ITU. E, em setembro de 2011, China, Rússia, Tajiquistão e Usbequistão apresentaram à Assembleia Geral da ONU uma proposta para a criação de um “Código Internacional de Conduta para a Segurança da Informação”, com a meta de definir “normas e regras internacionais padronizando o comportamento dos países com relação à informação e ao ciber-espaço” nos termos determinados pelo governo.

Boatos a respeito da existência de propostas semelhantes dentro da própria ITU chegaram ao público. Vários regimes autoritários estariam propondo o fim do anonimato na rede, facilitando a localização e a prisão de dissidentes. Outros sugeriram transferir para a ONU o controle do sistema privado que administra os nomes dos domínios e os endereços da internet. Propostas desse tipo sugerem a perspectiva de políticas que permitiriam o controle dos governos, mas que diminuiriam consideravelmente a “inovação sem permissões” subjacente ao extraordinário crescimento econômico decorrente da internet, para não falar no atropelamento dos direitos humanos.

Debate aberto

Alguns países se mostraram simpáticos a tais propostas. Eles se preocupam com o papel desproporcional que os Estados Unidos desempenham na determinação da direção e do desenvolvimento das políticas para a internet. Alguns creem que o status quo favorece os interesses das grandes empresas globais da internet. Outros acreditam que a ITU pode acelerar o acesso à internet no mundo em desenvolvimento.

As decisões adotadas em Dubai no último mês de dezembro têm o potencial de submeter a internet às algemas do governo.

Para evitar isso – e manter a internet aberta e livre para as próximas gerações – temos de evitar uma guinada fundamental na maneira com a qual a internet é governada.

Incentivo todos a agirem agora: temos que insistir para que o debate a respeito da gestão da internet seja transparente e aberto para todos os envolvidos.

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[Vinton Cerf é o principal evangelista do Google e é reconhecido como um dos “pais da internet”, ao lado do cientista da computação Bob Kahn]