Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“Tu é nosso e nós é teu”

Assim como a foto em que Lula confraterniza com Paulo Maluf, a abstrusa frase do título (constante de um diálogo flagrado no “escândalo Cachoeira”) permanecerá como índice da falência moral do espaço público brasileiro.Índice, na análise dos discursos, é um dos três tipos de signos possíveis, ao lado do ícone (referente ao funcionamento da imagem) e do símbolo (domínio dos sistemas linguísticos predominantes no discurso cotidiano).

Passando por cima de maior detalhamento acadêmico, assim se pode resumir o conceito: para responder a uma pergunta do tipo “onde está o incêndio?”, o indivíduo recorre a um índice, que consiste em apontar para o fogo com o dedo, estabelecendo uma conexão dinâmica entre o dedo e o incêndio. Há um laço existencial, de contiguidade entre o índice e a referência. Os sintomas são sempre indiciais.

Isso explicado, permitimo-nos acrescentar aos dois já mencionados, um terceiro índice, vindo do exterior: Um artigo do jornalista David Carr no The New York Times(11/6/2012) relata uma “preocupação crescente no sentido de que a queda dos valores e a falência dos modelos comerciais de muitos jornais americanos possam levar a uma situação em que interesses econômicos comprem jornais e os usem para praticar uma agenda política e comercial”.

Evidentemente, essa agenda sempre esteve implicada em qualquer empresa jornalística. Mas o que o articulista está pondo em questão é a exclusividade da agenda, ou seja, jornalismo futuro como nada mais além disso. Segundo ele, esse futuro parece ter chegado a San Diego, na Califórnia, onde o diário The U-T San Diegoacaba de ser comprado por um empresário local – Douglas F. Manchester, hoteleiro e incorporador imobiliário – que se apresenta como uma espécie de folheto para os seus vários interesses. Manchester é contra governo de bem-estar social, cobrança de impostos e casamento gay. É a favor da especulação imobiliária na reforma do centro de San Diego.

Consciência moral

Ora, esse tipo de interesse sempre pôde estar implícito no funcionamento de qualquer corporação de mídia, como bem se sabe. O que há de novo aqui é que Manchester e seu sócio John T. Lynch são explícitos quanto aos seus motivos: “Nós não pedimos desculpas. Estamos fazendo o que todo jornal deve fazer, ou seja, tomar posições. Somos pró-conservadores, pró-negócios, pró-militares”. Editores que pensem o contrário são demitidos.

David Carr explica a sua indignação:

“Muitos de nós cresceram em cidades onde o jornal diário estava associado a líderes cívicos, e o interesse privado se expressava geralmente na página editorial. Uma vez por outra, a apuração devida podia ser suspeitamente ignorada na cobertura, mas as páginas noticiosas eram exatamente isto, notícias”.

Agora, como precisamente se relacionam o jornal de San Diego, a frase abstrusa do escândalo e a foto Lula-Maluf? Ao olhar do observador, no fenômeno generalizado da queda das aparências morais.Moral, bem se sabe, é um conjunto de prescrições normativas, consideradas a partir de coordenadas de tempo e lugar, relativas à formação do caráter e da conduta dos indivíduos. As prescrições aparecem socialmente como regras, manifestadas em atitudes e comportamentos capazes de orientar a vida individual e coletiva, com referência a valores aceitos pela comunidade.

Sempre se pode questionar a validade de um determinado ordenamento moral; e, no fogo das mutações ditas “pós-modernas” (revolução sexual, liberação dos costumes etc.), a moralidade andou em desprestígio, ganhou uma aura de caretice. Mas é inquestionável a força da relação entre consciência moral e a sociedade que se deseja. A moralidade está posta em relação com a comunidade, entendida como o locus da reciprocidade entre os atores da vida social.

De fato, para a maior parte dos pensadores sociais do século 10, própria ideia de comunidade humana é sustentada pelo pressuposto de um compromisso “moral”, entendido como “aspiração” original e civilizada. Por isso, a consciência moral é necessariamente uma instância reflexiva. No horizonte do jornalismo e da alta política, sempre se tentou ter à vista uma boa medida de consciência moral ou, pelo menos, manter as aparências de moralidade como um cuidado pedagógico para com as gerações futuras.

Tempo na tevê

Ora, com a contínua perda de força axiológica (o enfraquecimento dos valores) das estruturas sociais, as ações não têm hoje por que se orientar na direção de grandes fins ou de horizontes esperançosos. A contemporaneidade parece não fazer outra coisa, senão substituir o antigo escopo ético-social por critérios afins à lex mercatoria, a economia de mercado, onde predominam o dinheiro e a mercadoria como conteúdos fundamentais do espírito público. Sem esse mesmo escopo, também a democracia representativa perdeu os limites dados pelas próprias aparências de consciência moral. A consciência já não dói mais.

Daí, o retorno da indignação – a velha e “careta” indignação! – como recurso político (ainda que precário) das massas, sobretudo dos jovens nas praças orientais e ocidentais, contra a desorientação existencial provocada pela falência dos valores. Em seu artigo, David Carr, o jornalista não faz muito mais do que se indignar. É o mesmo sentimento da política Luíza Erundina e dos leitores de jornais frente à foto em que Maluf, abraçado a Lula e ao aspirante Fernando Haddad, sorri ante a sua agora plausível recomposição de imagem na cena pública. Afinal de contas, o que é a moral frente a um minuto a mais de tevê?

Os jornais não transcreveram uma frase sequer do que realmente se conversou. É analiticamente viável, portanto, levar a sério o conceito de índice para sugerir como legenda da foto a frase emblemática: “Tu é nosso e nós é teu”.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro[