Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sobrou superficialidade, faltou jornalismo

Se notícia remete a novidade, a entrevista concedida na noite do último domingo (15/7) pela ex-primeira dama Rosane Collor ao Fantástico, da TV Globo, foi uma fantástica peça de publicidade, considerando que reiteradas vezes foi citado o livro que está sendo escrito pela entrevistada.

Não há novidade em nada do que foi dito pela ex-mulher do senador Fernando Collor de Mello. Alguns temas, como o assédio ao jovem casal presidencial, até seriam um bom assunto, se mais aprofundados e explicitados pela entrevistada. A nova vida da ex-primeira dama? Daria uma reportagem leve no próprio Fantástico. A declaração de que se algo acontecesse a ela seria de responsabilidade do ex-presidente merece atenção do judiciário (nos dois polos) e poderia ter sido mais bem aprofundada, trazendo à baila fatos concretos. Mas ficou no vazio como quase tudo nos 25 minutos de bate papo.

Os rituais de magia negra já eram assunto de conhecimento público, embora não comprovado oficialmente. Fernando Collor de Mello foi considerado culpado pelo Senado Federal por crime de responsabilidade e boa parte dos fatos que levaram ao veredicto faz menção à relação aética entre ele e PC Farias. As evidências eram tantas – vide juízo de admissibilidade da Câmara, que levou à abertura do processo no Senado, culminando com o afastamento – que poucas pessoas, além do ex-presidente, é claro, consideram as negativas verossímeis.

Ou se consegue a notícia, ou se prossegue a apuração

Em suma, nada do que saiu na “bombástica” entrevista, chamada à exaustão durante o programa e só exibida no final, é, de fato, novidade. Rosane Collor não apresentou documentos comprobatórios de suas declarações e nada que acrescentasse algo ao que já é de domínio público. Apenas aguçou-se a curiosidade de parte do público. Afinal, muito do que aconteceu durante o curto mandato de Collor permanece envolto em mistério. Fechando a entrevista, do estúdio os apresentadores esclareceram, como manda o bom jornalismo, que Collor foi procurado mas se negou a comentar os assuntos abordados.

Restam, então, ao público, uma dúvida e uma constatação. A dúvida é que, das duas uma: ou a ex-primeira dama realmente não tinha nada a declarar e queria divulgar o livro, ou a reportagem não buscou aprofundar os assuntos. E a constatação é a de que, após a entrevista concedida ao Fantástico, o livro chegará às prateleiras sob a expectativa de encabeçar a lista dos mais vendidos do ano. Do mais, ao leitor da obra restará a esperança de que, na publicação, a ex-primeira dama traga fatos novos que retratem aquele período nebuloso da história republicana. Do contrário, será uma decepção tão grande como a constatada durante a revista eletrônica dominical da TV Globo.

Entrevistas como essa normalmente envolvem muito trabalho da equipe de jornalismo, além de reiterados contatos com a fonte. Até pelo que representava ao programa, acredito que a equipe se esforçou e não negligenciou esse ponto. Ressalte-se que há fontes interessantíssimas que engrandecem entrevistas e rendem grandes reportagens, e há fontes que, mesmo tendo muito a dizer, não acrescentam nada ao trabalho jornalístico. Neste caso, espera-se bom senso da equipe. Ou bem se consegue a notícia, ou se prossegue com o trabalho de apuração, que é o coração do jornalismo.

Ficaram tantas brechas na entrevista que, a partir daquele material, qualquer chefe de reportagem um pouco mais preguiçoso tem assunto para repercutir durante um bom tempo. A negativa de Collor passa a ser uma notícia; os rituais de magia negra também; o divórcio nada amistoso; os assédios que Rosane alega ter sofrido etc.

Enfim, a superficialidade criou dezenas de pautas menores para a segunda-feira.

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[Marcelo Feitoza é jornalista, Rio de Janeiro, RJ]