Ao julgar o processo do mensalão, o Supremo Tribunal Federal (STF) emitirá na prática um número de decisões superior a mil. A maior parte dos 38 réus foi denunciada por mais de um artigo do Código Penal, incluindo formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, peculato e lavagem de dinheiro. Um cálculo demonstra que o voto de cada ministro reunirá a soma de 99 sentenças. Em caso de condenações, a Corte enfrentará ainda uma complicada discussão sobre a dosagem das penas.
Mas os votos não devem se resumir à ocorrência ou não das centenas de crimes listados na acusação da Procuradoria Geral da República. Os ministros terão que decidir também aspectos incidentais ao longo do julgamento, entre questões de ordem levantadas pela defesa, e possíveis contestações processuais.
Enquanto o presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, pretende concluir o julgamento até o fim de agosto, previsões mais pessimistas dão conta de que o desfecho poderia ser adiado, concorrendo com as eleições municipais de outubro ou até ficando para 2013.
Foro privilegiado
Se tudo der certo e ocorrer de acordo com o cronograma da Corte, o julgamento acaba junto com o mês de agosto, mas restam os recursos. A intenção dos ministros é votar logo, mas isso é tão imprevisível quanto estimar o prazo para o término do julgamento que começa no dia 2 de agosto.
Anunciado o julgamento no dia seguinte, o STF terá que tomar mais uma decisão antes de começar a votação. Uma questão de ordem será levantada pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, um dos criminalistas mais importantes do país, que defende o ex-diretor do Banco Rural José Roberto Salgado. Bastos pedirá à Corte que desmembre o processo para que os acusados sem foro privilegiado sejam julgados pela primeira instância.
O advogado lembrará que está sendo assim com o mensalão mineiro, em que somente dois réus – o deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e o senador Clésio Andrade (PMDB-MG) – respondem diretamente no Supremo, enquanto os outros acusados estão sendo processados na primeira instância. No mensalão, atualmente, apenas três réus dispõe de mandato parlamentar – os deputados João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar da Costa Neto (PL-SP) e Pedro Henry (PP-MT).
No mensalão petista, no entanto, o STF já negou o pedido de desmembramento duas vezes – a mais recente delas, uma decisão monocrática do relator, Joaquim Barbosa. Bastos argumentará que, ao decidir dessa forma, os ministros levaram em conta somente um lado da questão, envolvendo aspectos meramente legais. Mas teriam deixado de analisar argumentos constitucionais fundamentais ao direito de defesa.
A principal razão mencionada pelo STF para julgar os 38 réus ao mesmo tempo é que os crimes denunciados no processo são “conexos”, ou seja, só fariam sentido se verificados de forma conjunta. Na denúncia, a Procuradoria Geral da República apresenta o caso como decorrente da atuação de uma “quadrilha”, na qual a ação de um réu não poderia ser compreendida por si só.
Bastos defenderá que o julgamento conjunto pelo STF fere garantias essenciais da defesa, a começar pelo chamado “duplo grau de jurisdição”, o direito que todo réu tem de recorrer de uma sentença a um tribunal superior. Com o julgamento direto pelo Supremo, essa garantia seria “fulminada”, dirá o advogado, pois em caso de condenação não haverá mais a quem recorrer a não ser aos próprios autores da decisão.
Advogados e réus ouvidos pelo Valoravaliam que não haverá clima para desmembrar o processo num ponto tão avançado da tramitação. Bastos insistirá porém que o duplo grau de jurisdição é um direito de tamanha importância que está garantido em instrumentos internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos.
O criminalista sustentará ainda que o STF não tem competência para julgar, de forma originária, pessoas que nunca tiveram foro privilegiado, como no caso de seu cliente. Ao pedir a remessa à primeira instância, ele proporá que todas as provas sejam aproveitadas – evitando assim insinuações de que se trata de medida protelatória da defesa.
Ao vivo, em cores
Um levantamento feito pelo time de Bastos mostra que, em quatro ocasiões recentes, o Supremo votou pelo desmembramento de processos para que pessoas sem foro privilegiado fossem julgadas pela primeira instância. Todas elas são posteriores à decisão de julgar o mensalão de uma vez só. Nesses quatro casos, oito ministros votaram a favor do desmembramento. Mas os ministros mais novos da Corte, Antonio Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber, ainda não tiveram a oportunidade de se manifestar sobre o assunto.
Outro exemplo das dificuldades existentes para uma rápida votação poderá envolver a aposentadoria de dois integrantes do tribunal. A depender do cronograma, o julgamento do mensalão começaria com 11 e terminaria com nove ministros.
Nos primeiros dias de setembro, o ministro Cezar Peluso se aposenta. Ele é um dos últimos a votar. Como se trata de um julgamento complexo, no qual o Supremo vai dirimir questões que vão além da compra de votos – o objetivo do suposto esquema do mensalão -, é possível que, na data de aposentadoria de Peluso, ele ainda não tenha votado. Especula-se que ele pode pedir para antecipar sua posição.
O voto de um juiz, porém, não é contado como um voto dado em uma urna. Não é incomum que ministros que já declararam seu voto no tribunal mudem de opinião ao ouvir a manifestação de um colega que vote em seguida. A antecipação do voto de Peluso, portanto, pode ser objeto de questionamento de algum advogado dos réus.
Terminado o julgamento do mensalão, os advogados dos réus eventualmente condenados ainda podem apresentar os chamados “embargo de declaração”, usados para questionar obscuridades, omissões ou contradições no texto. O STF não tem prazo para julgá-los. A defesa argumenta que eventuais penas só poderiam ser aplicadas depois da análise do último recurso.
Na hipótese de os embargos não serem julgados até novembro, outro ministro se aposenta: justamente o presidente do tribunal, Ayres Britto. Neste caso, o julgamento terminará com os votos de nove ministros, pois a presidente Dilma Rousseff não demonstra a menor disposição de indicar os substitutos, seja de Peluso ou de Ayres Britto, antes que a decisão da Suprema Corte sobre o mensalão seja inteiramente deslindada.
O mensalão é o primeiro grande julgamento do Supremo em que a grande maioria de seus ministros atua com transmissão, ao vivo, pela TV Justiça. Advogados e réus do processo, em geral, costumam dizer que a televisão leva alguns juízes a jogar para a plateia em detrimento do julgamento essencialmente técnico. Choro da defesa ou não, o fato é que não faltarão elementos para grandes embates no plenário.
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[Raymundo Costa, Maíra Magro e Juliano Basile, do Valor Econômico, em Brasília]