“No campo relativo ao assunto da mensagem que há uma semana recebi do leitor Rui Ribeiro lia-se simplesmente ‘Plágio no Público’. Suspeitei desde logo, e a leitura do texto confirmou-o, que estaria perante mais um da mão cheia de casos similares que têm sido objecto de queixas de leitores que encontram, geralmente na edição on line, notícias e outras peças jornalísticas que reproduzem, sem indicação da origem (em alguns casos) ou identificando-a de forma deficiente (na maior parte das vezes), o que já tinham lido em outros órgãos de comunicação (geralmente sites noticiosos estrangeiros).
Desta vez, porém, a reclamação apresentava duas particularidades: a notícia que o leitor considerou configurar um caso de plágio saíra (com destaque) na edição impressa e era explicitamente assinada por um jornalista do PÚBLICO. Vejamos o que escreveu Rui Ribeiro: ‘Assinante da edição digital do Público, fiquei enormemente surpreendido quando, ao concluir a minha leitura da edição de dia 12 de Agosto, me deparei, na última página do caderno principal, com uma notícia da autoria (?) de Filipe Escobar de Lima, sob o título ‘Famílias dos campeões olímpicos Douglas e Lochte estão na falência’. A surpresa de que falo tem uma razão de ser – no dia 9 de Agosto tinha lido uma notícia muito semelhante, no sítio do The Daily Beast, que achei tão interessante que partilhei o link na minha página do Facebook’.
‘A leitura da notícia, que no original já me tinha despertado grande interesse’, continuava o leitor, ‘tinha demasiadas semelhanças com a memória [que tinha] da notícia original, algo que rapidamente confirmei revisitando essa notícia. O original, da autoria de Kevin Fallon, é muito mais extenso, mas as partes que Filipe Escobar de Lima aproveitou, correspondem, no essencial, à forma como essas partes foram narradas por Kevin Fallon. Fiquei, por isso, à espera de, no final do texto, ver uma referência à notícia original. No entanto, infelizmente para a reputação do Público, essa referência está ausente. Nada na notícia do Público refere a autoria do trabalho que levou à publicação do texto original. Parece-me, portanto, que se trata de uma situação de plágio descarado, situação que embaraça o Público e devia envergonhar o jornalista que a ela recorreu’.
Está apresentado o caso. Antes de o avaliar em concreto, gostaria de realçar algumas linhas genéricas que devem enquadrar a análise das acusações de plágio que me chegam:
– Quase todas as reclamações desse tipo se reportam, de facto, a casos de má prática jornalística, mas nem todos esses casos, longe disso, configuram situações indiscutíveis de plágio. Há uma diferença, ainda que nem sempre larga, entre a atribuição deficiente da autoria de um texto, ou de parte de um texto, e o plágio puro e duro. Entre a paráfrase preguiçosa e a cópia não assumida. Entre a negligência (ou mesmo algum dolo) no modo como é citada a origem de um trecho e o roubo da sua autoria – que é o que o plágio é, sendo nesses termos ‘terminantemente proibido’ pelo Livro de Estilo do PÚBLICO. Por isso, cada caso deve ser analisado em concreto, até porque as situações de plágio indiscutível, num jornal cioso da sua credibilidade, devem ter consequências severas para a carreira profissional de quem cometa o que é um dos mais graves atentados à ética do jornalismo.
– Na era do jornalismo na Internet, a abundância e fácil acessibilidade das matérias originais utilizadas ou recicladas sem o devido respeito pela sua autoria favorecem as práticas incorrectas de jornalistas menos bem formados, ou as orientações erradas que recebem. Na veloz e nem sempre reflectida elaboração das edições on line há demasiado ‘corta e cola’, demasiadas traduções mais ou menos adaptadas, demasiadas transcrições de sites noticiosos estrangeiros sem a devida sinalização da sua origem. As mesmas condições explicam a maior facilidade de detecção dessas práticas (há até programas informáticos para o fazer) por parte de leitores atentos, como são muitos leitores do PÚBLICO que não dispensam a leitura, na Internet, de meios informativos estrangeiros de referência ou especializados em temas que mais os interessam.
– A indistinção entre diferentes graus de gravidade nos procedimentos que se afastam de um respeito exemplar pelo trabalho alheio leva por vezes a acusações infundadas ou exageradas de plágio. É mais perturbadora, no entanto, a inconsciência que parece persistir entre numerosos jornalistas de que o cumprimento rigoroso do preceito segundo o qual ‘os textos baseados em notícias de outros órgãos de comunicação devem mencionar de forma inequívoca a sua origem’ (volto a citar as normas éticas deste jornal) é o único caminho que permite afastar suspeitas sobre a sua integridade profissional. ‘Mencionar de forma inequívoca’, sublinho
– As características do jornalismo actual aconselham uma determinação rigorosa do que é ou não plágio. O tema está na ordem do dia em países como os EUA, onde é mais forte a mediatização e mais severo o escrutínio de casos de alegado incumprimento da ética profissional. São conhecidos casos provados de apropriação de trabalho alheio que conduziram jornalistas até aí prestigiados ao ostracismo profissional. Mas há também o episódio recente de Fareed Zakaria, colunista da Time e colaborador da CNN, que viu a sua actividade suspensa nos dois órgãos face à acusação de ter plagiado um trecho de um ensaio publicado na New Yorker (ele próprio reconheceu ter errado), mas irá será reintegrado após uma investigação minuciosa ter atenuado uma avaliação inicial mais negativa. Ou o caso de Jonah Lehrer, um autor de sucesso que se demitiu da mesma New Yorker face à denúncia, comprovada, de que inventara citações (no caso, de Bob Dylan), mas se viu também acusado de ‘auto-plágio’, um conceito bem mais controverso, aplicado ao facto de ter reciclado, sem o referir, ideias, fórmulas ou frases que utilizara em trabalhos seus anteriores.
– Na análise das queixas que recebo, tenho utilizado um conceito de plágio que acrescenta à definição típica de dicionário (apropriação do trabalho de outro como se fosse seu) a demonstração da intencionalidade do acto. Como já aqui escrevi, ‘no plano da ética jornalística (…), o plágio implica a ocultação deliberada da autoria alheia de um texto’. Devo hoje acrescentar que algumas fórmulas frequentemente utilizadas para ‘atribuir’ essa autoria são, pela sua falta de clareza – quer esta se deva a negligência profissional ou, na pior hipótese, a uma ‘habilidosa’ intenção de confundir –, péssimas práticas jornalísticas. A roçar, por vezes, o plágio.
Visto à luz destas reflexões, o caso apontado por Rui Ribeiro é, na minha opinião, exemplo de uma prática censurável. O jornalista que assinou, na edição do passado domingo, a peça sobre as dificuldades financeiras dos familiares de campeões olímpicos norte-americanos deu à crítica do leitor a seguinte e lacónica resposta: ‘No segundo parágrafo está a referência à história ser contada pela Newsweek, a que o leitor se refere como The Daily Beast, suplemento que é parte integrante daquela revista americana e que o leitor deve desconhecer’.
Passemos ao lado da imprecisão quanto à origem da peça assinada por Kevin Fallon. Sendo certo que owebsite jornalístico The Daily Beast e a Newsweek se fundiram há mais de um ano numa única empresa, há mais rigor na afirmação do leitor que diz ter lido o texto original publicado nesse site do que na sugestão de que este teria sido colhido das páginas da conhecida revista.
O que importará sublinhar é que no texto assinado por Filipe Escobar de Lima não se diz que a Newsweek é a fonte de origem de toda a ‘história’ relatada. A única referência à revista cita-a como tendo noticiado um (e só um) dos factos que compõem a história. Quem não tivesse lido o texto original presumiria legitimamente que o jornalista do PÚBLICO usou aquela publicação como uma entre várias fontes de um trabalho em que outras informações e declarações são creditadas, ao mesmo nível, a outros títulos – como o USA Today ou o site TMZ –, quando estes, afinal, são fontes devidamente citadas no próprio artigo do The Daily Beast. A prática de só atribuir à fonte única de um texto uma parcela específica deste é infelizmente comum (nomeadamente em relação a despachos de agências noticiosas a que nada é acrescentado), mas nem por isso é menos enganadora e censurável.
O autor da notícia publicada na última página do PÚBLICO do passado dia 12 não é quem apareceu a assiná-la. Tudo o que lá está é a tradução, com ligeiríssimas adaptações, de excertos de um texto escrito pelo jornalista Kevin Fallon. Nada do que lá está resulta de trabalho próprio do redactor do PÚBLICO, com excepção da equívoca referência à Newsweek – que até poderá ser esgrimida contra a acusação de plágio, mas não basta para justificar o indefensável. O PÚBLICO tem a obrigação, perante os seus leitores, de corrigir estas práticas inaceitáveis na utilização de trabalho alheio.”