No intervalo de nove meses, o Domingo Espetacular, da Record, exibiu três reportagens especiais de temática religiosa. Elas formam um conjunto de 130 minutos, mais do que um longa-metragem, e dizem muito sobre a confusão que reina numa emissora comercial comandada por líderes religiosos.
A primeira foi ao ar em 13 de novembro do ano passado. Por 39 minutos, o programa tratou de um fenômeno religioso, encontrado em diferentes práticas neopentecostais no Brasil, cuja característica mais notável é o desfalecimento de fiéis quando tocados por pastores.
Chamada de forma irônica de “cai-cai”, a prática foi ridicularizada e demonizada em toda a reportagem. “O diabo usa o cair do espírito para cegar as pessoas”, disse um homem apresentado como “fundador” da religião e que hoje a renega. “Isso não é Deus, é um esquema do diabo”, alertou.
No dia 18 de março foi ao ar uma reportagem de 26 minutos sobre Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial, apresentado como “o apóstolo milionário”.
“Durante mais de quatro meses, nossa equipe seguiu a trilha do dinheiro, que começa na doação dos fiéis e vai parar no bolso do novo criador de gado do Pantanal”, disse o repórter Marcelo Rezende.
Ex-pastor da Igreja Universal, o religioso hoje é visto como um temido concorrente. “Para crescer rapidamente, Valdemiro ataca com violência a igreja à qual pertenceu, principalmente o bispo Edir Macedo”, disse Rezende. “Hoje, esbanja uma vida de riqueza, com direito a aviões, helicópteros e carros de luxo.”
Macedo, por sua vez, foi o foco da terceira grande reportagem. Exibida no dia 19 de agosto, alongou-se por 64 minutos, praticamente o tempo das outras duas somadas.
Julgamento afetado
Janine Borba, apresentadora do programa, avisou: “Foram cinco meses de viagens ao redor do mundo para produzir a mais completa e impressionante reportagem já feita sobre um dos maiores movimentos cristãos da humanidade”.
Diferentemente das acusações e ofensas ao “cai-cai” e a Valdemiro, este terceiro documentário só teve palavras elogiosas para Macedo, líder do “maior movimento de fé do Brasil”.
Texto hiperbólico, trilha sonora típica e imagens fortes ajudaram a compor uma das mais impressionantes hagiografias já exibidas na televisão.
Houve, é verdade, breve menção à prisão de Macedo, em 1992, mas apenas com a intenção de reforçar o mito. “Ele foi absolvido de todas as acusações”, disse o narrador, sem informar quais (a saber: “delitos de charlatanismo, estelionato e lesão à crendice popular”).
A Record justifica as três “reportagens” sob o argumento do “interesse jornalístico”. Nos dois primeiros casos, a emissora se valeu de denúncias públicas e investigações policiais ou judiciais. No terceiro caso, o “gancho” é a comemoração dos 35 anos da fundação da Universal, tema de um novo livro de Edir Macedo.
A duração e o tom das três matérias fazem pensar em algo diverso. O fato de Macedo ser, ao mesmo tempo, líder da Universal e proprietário da Record, sem dúvida, afeta o julgamento. É impossível não enxergar nos três trabalhos peças de um vale-tudo por fiéis, algo que deveria estar longe de ser o objetivo de uma emissora comercial no Brasil.
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[Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo]