Lira Neto dobrou o guardanapo de papel várias vezes para dar suporte aos gravadores inclinados. Como um deles falhasse, assumiu os testes de gravação.
Autor de cinco biografias, com dois Jabutis e a última delas, “Getúlio”, na lista dos mais vendidos do Valorhá 11 semanas, Lira Neto custa a se colocar do outro lado do balcão.
A ideia era chegar antes da hora para checar se a mesa reservada estava num canto barulhento e saber do lugar. A antecedência de 15 minutos ficou parecendo atraso. O escritor já estava lá, com os cabelos muito mais grisalhos do que seus 49 anos sugerem e uma cerveja Baden Baden Redale virada no copo sob dois dedos de espuma.
O lugar escolhido foi um boteco instalado em galpão com bandeiras de países penduradas, na Vila Romana, perto de sua casa e onde come feijoada aos sábados. Coisa de quem gosta de personagens. Dona Felicidade é o nome do lugar e da dona, uma portuguesa que responde “68 ao contrário” quando indagada sobre a idade.
João Cavalcante de Lira Neto escapou por pouco de pagar com o próprio nome a obsessão de seu avô pelo tenentismo. O desejo era ter 18 filhos para colocar todos os nomes dos rebelados no Forte de Copacabana.
Aí começaram a nascer meninas e o avô percebeu que a conta não iria fechar. Foi quando começou a misturar os nomes. Um tio chama-se João Alberto Siqueira Campos, outro, Juarez Prestes Cabanas. O pai, batizado Benedito Carpenter Uchoa recuperou o nome de família no cartório e evitou, assim, legar o tenentismo de certidão aos descendentes.
Mas foi o baú das reminiscências familiares que se abriu quando Lira Neto teve a conversa mais decisiva para a carreira de escritor.
Estava no escritório da Companhia das Letras quando o editor Luiz Schwarcz, logo depois de receber os originais de Padre Cícero, lhe perguntou qual seria seu próximo projeto: “Agora você vai querer um livro mais ameno, que se resolva de forma mais instantânea, para dar uma folga”.
Padre Cícero, que viria a receber o Prêmio Jabuti como a melhor biografia de 2009, tinha sido uma encrenca das boas. Começou quando Fernando Morais lhe contratou nos anos 1990 para a pesquisa do livro que pretendia escrever sobre Floro Bartolomeu, o braço político de Cícero no sertão cearense. Terminou com o acesso a documentos secretos do Vaticano sobre o processo de excomunhão do padre hoje sob revisão. “Agora eu quero uma encrenca maior”, disse Lira a Schwarz. “Quero fazer a biografia de Getúlio.”
Na oposição
Quem encontrasse Lira em Fortaleza com dois casamentos, dois filhos e já entrado nos 30 anos não diria que aquele rapaz, que foi técnico em raio X, trabalhou como balconista em loja de autopeças e vendeu hambúrguer seria capaz, em tão pouco tempo, de tamanho atrevimento.
O caldinho de feijão oferecido em boas-vindas à porta do restaurante já acabara, mas a cerveja vermelha ainda estava na primeira garrafa quando Lira se decidiu pelo carrê de cordeiro, mesma opção de Luís Ushirobira, o fotógrafo, condenado pelo “À Mesa com o Valor” a pedir o mesmo prato do entrevistado para fazer a foto que o leitor vê nesta seção – e comê-lo frio.
Diante do cardápio colorido de pratos fartos, a repórter opta, sem muita convicção, pela posta de bacalhau e um suco de limão que chega depois do prato. “Domingos, o garçom do fim de semana, é que é meu chapa”, justifica Lira.
Seu Benedito e dona Darcy eram desquitados, cada qual com sua cota de filhos, quando se casaram. Lira nasceria em 1963 e, depois dele, mais uma irmã. Aos 8 anos deixaria Fortaleza com a família para ir morar em Caucaia, cidade vizinha, também litorânea, onde vivia sua avó materna.
A mãe, funcionária pública, pegava ônibus todos os dias para ir trabalhar em Fortaleza. “Escrevia bem e sempre nos trazia algo para ler.”
O pai ficava em casa dois ou três dias por mês. “Gostava de dizer que era representante comercial, mas era caixeiro-viajante mesmo, saía em seu Fusquinha vendendo de tudo pelo interior, de penico a bomba atômica.”
Cresceu por conta, entre Monteiro Lobato e o quintal de sua casa até a adolescência, quando a família voltou para Fortaleza.
À família grande não restava outra opção senão o ensino público. E Lira foi parar numa escola técnica federal. Não gostou do que viu, mas acabou seguindo a orientadora vocacional da escola, que recomendou o curso de topografia ao aluno que parecia ter dificuldade de se enquadrar entre quatro paredes.
Um comensal de mesa vizinha, assistindo à parafernália armada para as fotos, aproxima-se para oferecer o exemplar de uma revista de gado nelore na esperança de conseguir alguma divulgação.
Lira vai falando e a comida não chega. Depois vai entender por quê.
A topografia lhe rendeu um emprego abandonado no segundo dia de trabalho. Fez vestibular para filosofia e cursou até o terceiro semestre. A faculdade católica se chocou com seu espírito agnóstico.
Fez novo vestibular para letras, achando que lá descobriria como se tornar Henry Miller, o autor que marcaria sua juventude. Tinha gramática demais para estudar. Abandonou também.
Zanzando entre faculdades e bicos, arrumou uma vaga de revisor no Diário do Nordeste, jornal da família de Renata Queiroz, mulher do ex-senador Tasso Jereissati.
Foi ali, já aos 27 anos, que Lira Neto se descobriu jornalista e ingressou na sua terceira faculdade. Foi no jornal também que se formaria o embrião do biógrafo.
O Ceará tinha um capo do jogo do bicho chamado Mororó. Despachava num escritório de luxo, numa das principais avenidas da cidade. Todo mundo o conhecia, mas ninguém mexia com ele. Lira o convenceu a dar a primeira entrevista de sua vida e a posar para uma foto em que aparecia com o telefone tapando metade do rosto.
Da reportagem, já no concorrente O Povo, virou ombudsman. Foi o segundo jornal do país, depois da Folha de S. Paulo, a criar o cargo.
Uma adolescente com bolsa atravessada na cintura deixa sobre a mesa uma pasta de dente com enxaguante bucal.
E nada da comida.
Foi na redação de O Povo que Lira encontrou seu primeiro biografado. Um colega saiu para uma pauta enfadonha de saneamento básico. E voltou com a manchete do jornal. Nas escavações, os operários tinham descoberto milhares de esqueletos.
Apareceu um historiador para aplainar a ignorância geral sobre a origem daquele cemitério clandestino: uma epidemia de varíola que havia matado um quinto da população de Fortaleza no fim do século XIX.
Lira já havia migrado para a editora de livros do jornal quando decidiu escrever a história de Rodolfo Teófilo, o sanitarista que enfrentou a epidemia.
“O problema dele foi ter nascido num lugar periférico. Fabricava a vacina no quintal de sua casa e, ao contrário de Oswaldo Cruz, que teve ao seu lado o poder estabelecido para instituir a vacinação obrigatória, Teófilo era da oposição, foi boicotado pelo governo e enfrentou as oligarquias do Ceará e até o padre Cícero.”
Sem contestação
Os esqueletos já haviam sido exumados quando os pratos chegaram à mesa. O bacalhau era imenso. Macio, mas acompanhado de batatas frias. Já o cordeiro de Lira passou do ponto.
Foi nesse momento que Dona Felicidade chegou à mesa, simpática que só ela. Com jeito, Lira reclamou do cordeiro: “Costuma vir mais suculento e gordinho. Este está muito magrinho e torrado”. Ela examinou e concordou. “É, passou demais.” O escritor apaziguou: “Mas tudo bem. A senhora tem crédito”.
Para desanuviar, a repórter demonstrou mais entusiasmo do que seu apetite sugeria: “Mas o bacalhau está bom”. Deu certo. Dona Felicidade voltou a sorrir. “Tá bom? Ah, esse bacalhau é especial.”
Teófiloestava nas livrarias quando Lira recebeu um e-mail elogioso da jornalista Adriana Negreiros. Marcaram um almoço. Começariam ali o terceiro casamento de Lira e as mudanças que dariam impulso à sua carreira.
Ele foi logo avisando à moça: “Não quero ter mais filhos, nunca me fale em cachorro e morarei em qualquer lugar do mundo, menos em São Paulo”.
Em 2000, Adriana foi chamada para a sede da Editora Abril e Lira veio atrás. Depois nasceram Emília, hoje com 8 anos, e Alice, 5. O lar paulistano desse escritor de irremovíveis convicções foi completado pela golden retriever Bela.
Quando chegou a São Paulo, Lira já tinha começado a escrever a história do primeiro presidente da ditadura, outro conterrâneo, Humberto de Alencar Castelo Branco. Além dos arquivos do brasilianista John Foster Dulles, generosamente franqueados, Lira teve acesso ao acervo do próprio Castelo, sob a guarda do Exército.
Um amigo o chamou para substituí-lo como editor da Contexto. O dono da editora, o historiador Jaime Pinsky, soube do Castelo e pediu para ler os originais. Comprou. Saiu em 2004, 40 anos depois do golpe. Vendeu oito mil exemplares, mais do que a tiragem média do mercado brasileiro.
A editora ficou satisfeita, mas Lira queria mais. Pediu demissão e viveu de frilas enquanto fazia a pesquisa para sua terceira biografia de cearense, o escritor José de Alencar (O Inimigo do Rei).
Foi seguindo o faro de personagens polêmicos que pinçou o autor de Iracema, filho de padre que traiu as raízes liberais da família, militou no Partido Conservador e fez oposição cerrada à abolição. O livro saiu pela editora Globo e lhe rendeu seu primeiro Jabuti.
A saga dos cearenses seria interrompida por Maysa. Num café com Fernando Morais, confidenciou-lhe o interesse em biografar a mulher que abandonou marido milionário pela carreira de cantora de rádio.
Morais havia vendido os direitos de Olga para Jayme Monjardim, filho de Maysa, e se ofereceu para fazer a ponte. No primeiro contato, a receptividade foi nula. Mas um dia ligou para sua casa: “Estou indo para São Paulo e levo uma coisa para você. Pode me pegar no aeroporto?”
Quando a porta do salão de desembarque de Congonhas se abriu apareceu Monjardim com uma mochila nas costas e empurrando carrinho com uma imensa caixa. “Foi isso que trouxe para você”, disse. “Uma televisão?”, retrucou Lira. “Não, a Maysa.”
Tudo que a mãe havia deixado de escritos, recortes, correspondência, fotografias, estava lá. Mal refeito do presentaço que acabara de receber, Lira guiou Monjardim até o hotel Fasano, com o porta-malas do carro aberto, tão grande era a Maysa encaixotada.
No meio do caminho, impôs uma condição para levar a caixa: “Você só vai ler o livro depois de publicado”. Monjardim hesitou por uns três semáforos e depois concordou.
Duzentas entrevistas depois, o livro saiu, também pela Globo. O filho de Maysa ficou fulo da vida. Escreveu-lhe uma carta violenta dizendo que a imagem da mãe havia sido maculada.
Ficaram sem se falar até o dia em que Monjardim lhe ligou cobrando o cumprimento do acordo de cavalheiros que haviam feito. O biógrafo desautorizado lhe cederia os direitos do livro para televisão e cinema por um valor simbólico.
Quando o livro saiu, Lira escreveu um artigo sobre o filme parafraseando a reação de Rachel de Queiroz à adaptação de Memorial de Maria a Moura: “A minissérie é maravilhosa, eles não gostaram foi do meu livro”.
Não havia muito do que se queixar. A minissérie ajudou a vender o livro, que chegou à 12ª edição. Além disso, não enfrentou contestação judicial, como aconteceu com Ruy Castro pela publicação da história de Garrincha e Paulo César de Araújo, cuja biografia de Roberto Carlos foi recolhida das livrarias.
Indústria cultural
Lira acompanha de perto o projeto de lei das biografias que tramita no Congresso, mas nunca enfrentou a bancada de advogados oportunistas que costuma cercar familiares de biografados e intimidar editoras.
“Padre Cícero e José de Alencar não deixaram herdeiros, Castelo tem uma filha que mora no Rio e nunca quis me atender, mas tampouco reclamou do livro, e Getúlio não pertence mais à família.”
Com a folga que Maysa lhe havia dado, Lira estava decidido a mergulhar na biografia longamente adiada do padre Cícero. Estava numa feira de livros em Joinville, quando Luiz Schwarcz ligou.
Lira dispensa a sobremesa e vai direto ao café. Conta sua história, reproduzindo diálogos, relacionando episódios e dados, como se personagem fosse. E é. Passadas duas horas, a conversa ainda não havia se aproximado de Getúlio.
Daquele breve telefonema com o dono da Companhia das Letras ele já descolaria as garantias de que precisava: “Estou fazendo uma biografia do padre Cícero há muitos anos e falta só uma certa estrutura para levar a cabo o trabalho”. Dias depois, ele já tinha um contrato que lhe permitiria se desligar de frilas, contratar pesquisadores e ter acesso ao arquivo secreto do padre no Vaticano.
Em Cícero, a narrativa parece destinada a ludibriar o leitor disposto a descobrir de que lado o autor está. Lira desmistifica o clérigo sem desrespeitar o romeiro e mostra como sua liderança política cresceu à sombra de poderes constituídos que se valiam do atraso para pregar a modernidade.
Livro já publicado, um bispo lhe perguntou quem era a fonte dos documentos tratados como ultrassigilosos pelo Vaticano. Depois de excomungar o padre, a Santa Sé hoje tenta reabilitá-lo para estancar a perda de fiéis para o pentecostalismo. “Olha, seu bispo, sigilo de fonte para jornalista é como segredo de confessionário para padre.”
O livro que lhe renderia o segundo Jabuti consumiu dois anos e meio de dedicação exclusiva. Conseguiu o adiantamento de direitos autorais num contrato gradativo que partiria de 10% sobre o preço de capa até dez mil exemplares e chegaria a 15% à medida que as vendas fossem aumentando. Até junho as vendas somavam 23 mil exemplares.
Do padre Cícero Lira ainda descolou a venda dos direitos para cinema e TV, cujo valor ele se diz impedido por cláusulas contratuais de divulgar. “Não dá para viver como Paulo Coelho, mas já consigo fechar o mês sem preocupação.”
Com as contas em dia, Lira se atreveu ao que diz ser o projeto de sua vida. E que já tinha sido da vida de muitos outros. Tratava-se do personagem mais biografado da história brasileira.
“Luiz Schwarcz não mexeu um único músculo da face quando lhe falei do Getúlio.”
Topou.
O editor já havia sondado outros autores, sem sucesso. Parecia difícil acrescentar algo às dezenas de biografias já publicadas sobre o personagem cuja morte hoje completa 58 anos.
O escritor que veio da estiagem não teve receio de chover sobre o molhado.
Lira apresentou seu plano de voo: três livros, a ser concluídos em cinco anos de trabalho com pesquisadores espalhados no Brasil e alhures. A mesma produtora que comprou os direitos do Padre Cícero para TV e cinema entrou na parada de Getúlio e garantiu sua dedicação integral ao projeto.
Lira bate de frente com os críticos da indústria cultural. “Adoro sentar à mesa de um editor que trata meu livro como um produto e cuida dos gargalos da distribuição e do estoque nas livrarias”, diz.
Mais uma
Ele já está no café, que toma sem açúcar, quando a conversa envereda por um tema indigesto. A divulgação do livro foi acusada de forçar a mão no ineditismo de documentos usados por Lira, como o processo contra o homônimo de Getúlio envolvido em estupro e assassinato em Palmeira das Missões (RS), fartamente explorado por Carlos Lacerda nos anos 1950.
“Comigo não há temas indigestos”, diz. Não arreda o pé nem perde a fleuma. “Ora, sou jornalista, lá vou me conformar com um filho [Lutero Vargas, em Getúlio Vargas, a Revolução Inacabada] que diz ‘não, meu pai não tem nada a ver com isso, foi um cara que tem o mesmo nome dele que fez aquilo’. Fui lá e levantei os autos inéditos do processo que inocentam Getúlio.”
O rigor de Lira tem defensores insuspeitos, como Maria Celina d’Araújo e Boris Fausto, dois dos maiores especialistas em Getúlio, além de números fartos. São 30 arquivos pesquisados, 41 jornais e revistas e 359 referências bibliográficas que dão suporte às 1.608 notas dos 20 capítulos do livro.
Livros rigorosos demais costumam ser chatos. Mas esse cearense discípulo de Bertolt Brecht também maldiz os povos que precisam de heróis.
Ao longo das 629 primeiras páginas da trilogia, foi capaz de contar por que um menino que virava a noite trepado num umbuzeiro para esperar que a raiva do pai se transformasse em preocupação, sofisticou seus estratagemas com raro senso de oportunidade para fazer história.
Com a palavra, o principal personagem de Lira, no diário que legou à posteridade:
“Se todas as pessoas anotassem diariamente num caderno seus juízos, pensamentos, motivos de ação e as principais ocorrências em que foram parte, muitos, a quem um destino singular impeliu, poderiam igualar as maravilhosas fantasias descritas nos livros de aventuras dos escritores da mais rica fantasia imaginativa. O aparente prosaísmo da vida real é bem mais interessante do que parece”.
O restaurante já está vazio quando a conversa chega ao fim. Depois da conta, Lira pede mais uma cerveja. E diz que precisa ficar um pouco mais. Dali voltaria para casa, onde escreve, numa rotina de trabalho que vai das 10 da manhã às 8 da noite, o segundo volume da trilogia, com lançamento previsto para 2013. O personagem que ficou naquela mesa sozinho parecia ter necessidade de se recompor da própria narrativa.