Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A liberdade de expressão e o paradoxo liberal

Vivemos um momento de revolução tecnológica que se expressa na avassaladora expansão das novas TICs [tecnologias de informação e comunicação] – interativas e fragmentadas – e no enfraquecimento relativo da mídia tradicional – unidirecional e centralizada.

Apesar das inúmeras possibilidades – concretas e potenciais – que as TICs oferecem para que novas vozes sejam ouvidas e participem no debate público, nunca será demais evocar a famosa passagem de Antonio Gramsci em que afirma: “o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece” Gramsci nos relembra que um dos riscos, enquanto a transição não se completa, é esquecer que o velho sobrevive, resiste e permanece ativo na defesa de seus antigos privilégios.

Por essa razão vou tratar da liberdade de expressão tendo como referencia ainda a velha mídia, vale dizer, os jornais, as revistas, o rádio e a televisão.

1. Inicialmente pretendo comparar a liberdade de expressão com a liberdade da imprensa. Para fazer isso, evoco a máxima dos antropólogos de que “toda identidade é uma diferença”. Ao compará-las, portanto, espero desvendar a identidadedecada uma delas.

Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa? Qual o significado original das palavras que expressam essa diferença? Como os documentos legais tratam essas liberdades? Quais as precondições materiais para que elas existam?

1.1 Vamos começar com o significado original das palavras speech (expressão), print (imprimir), press (imprensa) e the press (aimprensa). Creio que herdamos este significado da língua inglesa.

Registro, preliminarmente, que o conceito de liberdade de expressão é muito anterior ao debate clássico ocorrido na Inglaterra do século XVII. Na Grécia antiga havia pelo menos quatro palavras que significavam liberdade de expressão, considerada essencial para a realização plena do homem cívico na polis: isegoria, isologia, eleutherostomia e parrhesia.

Embora em inglês como em português a palavra imprensa (press) possa significar tanto (a) a máquina de imprimir [impressora, tipografia] como (b) qualquer meio de comunicação de massa ou ainda (c) o conjunto deles, a passagem do primeiro para os outros sentidos altera radicalmente o locus do sujeito da liberdade de expressão vinculado a cada um dos três sentidos, vale dizer, do indivíduo-cidadão para a instituição-empresa. Ademais, existe em inglês uma distinção entre speech (expressão, palavra), print (imprimir) e the press (a imprensa) que, na maioria das vezes, não se faz entre nós.

Um exemplo: se formos ao panfleto seiscentista Areopagitica de John Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade da imprensa, veremos que ele se refere ao direito, então considerado natural, do indivíduo expressar (speech) e imprimir (print) suas idéias, sem restrições externas (liberdade negativa) e no exercício de seu livre-arbítrio.

Escrito para combater uma Ordenação do Parlamento inglês regulando a impressão de documentos, panfletos e livros(“An Ordinance for the Regulating of Printing”, 1643), o argumento do Areopagitica, eminentemente religioso, gira em torno da capacidade individual de livre-arbítrio e da conseqüente necessidade de cada um se expressar e se expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade.

O Areopagitica – cujo subtítulo é“um discurso de John Milton pela liberdade de imprimir sem licença, dirigido ao Parlamento da Inglaterra” (“A speech of Mr. John Milton for the liberty of unlicenc’d printing to the Parlament [sic] of England”), por óbvio, não poderia estar se referindo à imprensa, no seu significado moderno: primeiro porque, no texto, não há referência a the press, mas sim a printing; e, segundo, porque na Inglaterra do século XVII não existiam“jornais”, no sentido contemporâneo e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios impressos e/ou eletrônicos).

Só há registro da palavra jornal – newspaper – na língua inglesa no final do século XVII, em 1670.

Note-se, todavia, que tanto na tradução clássica de Hipólito da Costa publicada no Correio Brazilienze, em 1810, quanto na edição contemporânea existente entre nós do Areopagitica (Topbooks Editora, 1999), o subtítulo é “Discurso pela Liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra”, enquanto o texto original se refere à liberdade de imprimir sem licença. Printing (imprimir) é traduzido por “imprensa” e seu sentido dominante em Português tem sido “a imprensa”, instituição moderna que significa o conjunto dos meios de comunicação ou a mídia.

1.2 Como os documentos de referência – legais ou não – tratam essas liberdades?

A diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa também aparece em documentos (legais ou não), que sempre são evocados na defesa da liberdade de imprensa. Eles se referem distintamente (a) à liberdade de imprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas liberdades têm sido entendidas como distintas ou não haveria razão para diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa (indivíduo). Já a liberdade da imprensa aparece como “condição” para a liberdade individual (Declaração de Virgínia) ou como uma liberdade da “sociedade” equacionada com a imprensa e/ou os meios de comunicação (Declaração de Chapultepec). Vejamos:

Na Declaração de Virgínia (1776) o Artigo XII fala especificamente em liberdade da imprensa (freedom of the press).

Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA (1789/1791) assegura a liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade da imprensa (freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião e o direito de petição.

Registre-se que somente 74/76 anos depois (1865), a Emenda Treze à Constituição dos EUA estabelece o fim da escravidão no país.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa (1789) fala do direito à “livre comunicação das idéias e das opiniões” e que “todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente” (grifo acrescido).

Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (2000), falam em seus Artigos 19, 13 e no Princípio 1º, respectivamente, do direito da “pessoa” (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão, especificando que este direito inclui “a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios (media, no original em Inglês) e independentemente de fronteiras”.

A nossa Constituição de 88, por sua vez, refere-se à liberdade individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), mas também à “plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do Artigo 220). Registre-se que a única ocasião em que aparece a expressão “liberdade de imprensa” no texto Constitucional é em relação às medidas que podem ser tomadas pelo Presidente da República na vigência do Estado de Sítio (inciso III do Artigo 139). Não é, curiosamente, no Capítulo da Comunicação Social.

E finalmente, a Declaração de Chapultepec (1994), que se refere claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.

1.3 Outra forma de diferenciar as liberdades de expressão e da imprensa é verificar quais são as precondições materiais para que elas existam.

Enquanto a primeira nasce com o indivíduo, a segunda, para existir, implica não só a disponibilidade do material impresso – papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de lerem, vale dizer, implica a existência de um público leitor. A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o tamanho e a história dos “públicos leitores” nas diferentes sociedades, contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da liberdade da imprensa.

É necessário, portanto, que se leve em conta a consolidação da “imprensa” no contexto das enormes transformações que sofreram, ao longo dos últimos cinco séculos, as formas de imprimir e aquilo que é impresso; a importância das estradas de ferro como distribuidoras de informação; a descoberta da eletricidade e de alguns de seus derivados, como o telégrafo. Tudo isso num processo que começa no século XV, passando pela Revolução Industrial do século XIX, pela Revolução Digital do final do século XX, até os nossos dias. Há um longo caminho percorrido desde os volantes avulsos anônimos sem periodicidade, aos livros de notícias (booknews), panfletos e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma pessoa – até os jornais populares de massa e os grandes jornais e revistas de nossos dias.

2. Quando e como aparece a expressão “liberdade de imprensa”? Quando os impressos e/ou os jornais passaram a ser chamados de “a imprensa” (The Press)? Quando e como o que era impresso passou a ter alguma similitude com o que chamamos hoje de jornal?

2.1 Em pequeno artigo escrito em 1806 [American Citizen, 19 de outubro], Tom Paine, o cidadão britânico que se tornou herói da independência dos Estados Unidos, afirma:

Antes do que na Inglaterraé chamada A Revolução, que foi em 1688, nenhum texto (work) podia ser publicado naquele país sem obter primeiro a permissão de um oficial designado pelo governo para inspecionar os textos que pretendiam ser publicados. O mesmo acontecia na França, exceto que na França existiam quarenta que eram chamados Censores e na Inglaterra existia apenas um chamado Imprimateur. Na Revolução [Inglesa], o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A impressão era, em conseqüência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo Liberdade de imprensa (Liberty of the Press) surgiu.

Para Paine, a liberdade individual de imprimir e a liberdade de imprensa, significam a mesma coisa, até porque no seu pequeno artigo, escrito no início do século XIX, ele está a fazer uma crítica aos impressores (printers), especialmente de jornais (newspapers), que, segundo ele, “(fazem) uma permanente cobrança (continual cry) da liberdade da imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas”.

Registre-se que, na verdade, somente em 1695 – e não em 1688 como diz Paine – se efetiva a liberdade de imprimir na Inglaterra com a abolição das leis de “licenciamento” prévio.

2.2 Nos Estados Unidos, o julgamento, por calúnia, de um imigrante alemão impressor (printer), John Peter Zenger, em 1735, é considerado a referencia inicial para o estabelecimento da liberdade da imprensa. Ele foi absolvido por um júri popular de acusações de calúnia feitas pelo governador da, então, província de New York. Quarenta anos depois, a liberdade da imprensa já aparece na Declaração de Virgínia (1776) como um dos “grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos”.

2.3 Ainda na Inglaterra há dese mencionar também a famosa defesa do mesmo Tom Paine, acusado de traição e calúnia pela publicação de seu clássico “Direitos do Homem”, feita in absentia por Thomas Erskine em 1792. Embora derrotado, seu discurso é por muitos considerado, ao lado de outros escritos clássicos como de John Milton e John Stuart Mill, uma referência para as liberdades de expressão e da imprensa.

2.4 A questão que permanece, todavia, é: a liberdade de imprensa a que se referiam Paine, o julgamento de Zenger ou a defesa apresentada por Erskine nos séculos XVII e XVIII, guarda alguma semelhança com o que contemporaneamente se entende como a imprensa?

Para celebrar criticamente os 40 anos do influente “Four Theories of the Press” e reavaliar as recomendações da Hutchins Commission (Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa), nove professores titulares da University of Illinois publicaram, em 1995, um livro coletivo organizado por John Nerone [Last Rights – Revisiting Four Theories of the Press]. Referindo-se às justificativas clássicas da liberdade da imprensa como direito natural(John Milton) e direito utilitário(John Stuart Mill), os autores resumem as principais diferenças entre a imprensa dos séculos XVII e XIX e a imprensa do século XXI.

Vale a longa citação:

Liberdade da imprensa fazia razoável bom senso como direito natural. Embora o cidadão comum não nasça com uma impressora (ao contrário, por exemplo, da consciência ou da palavra), ainda assim era relativamente fácil justificar liberdade da imprensa como uma extensão destas outras formas de liberdade de expressão. Da mesma forma, num mundo de indivíduos atomizados, liberdade da imprensa fazia tolerável bom senso como um direito utilitário. Deus não criou necessariamente esta situação, mas as pessoas concordavam que indivíduos livres para imprimir suas idéias estariam mais bem preparados para o autogoverno. Em ambas essas versões da filosofia política liberal, liberdade da imprensa é um direito do indivíduo, como liberdade de expressão (speech) ou consciência; “a imprensa” é nada mais do que a impressora (printing press), o equipamento real da expressão impressa. Isto não é mais o que “a imprensa” significa.

Hoje a imprensa é compreendida como sendo uma instituição– uma coleção de organizações noticiosas (news organizations) (…) Na política liberal, entidades empresariais (corporate entities) têm liberdade somente como pessoas fictícias (i.e., indivíduos) ou como depositárias de liberdades individuais de pessoas reais. É possível pensar a imprensa como uma pessoa fictícia? (p.5,).

3. Seria o contexto do nosso século XXI propício ao exercício da liberdade de expressão? Ou melhor, seria possível considerar hoje, como usualmente se faz, a liberdade da imprensa como extensão da liberdade de expressão individual?

3.1 Desde quando a imprensa se transforma em instituição, ou melhor, em empresa capitalista, sua relação direta com a liberdade de expressão individual deixa de existir. Ela não guarda qualquer relação com o que se pretende por liberdade da imprensa dos grandes conglomerados globais de comunicação e entretenimento no mundo contemporâneo, muitos deles, com orçamentos superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas.

Na verdade, a transformação da imprensa em empresa que demanda cada vez mais capital, não é uma preocupação nova.

No início do século XX, no Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, realizado em 1910, Max Weber – fundador da sociologia política – apresentou um programa de pesquisa no qual afirmava:

“Uma das características das empresas de imprensa é, hoje em dia, sobretudo, o aumento da demanda de capital. (…) Em que medida essa crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes? (…) Esse crescente capital fixo significa também um aumento de poder que permite moldar a opinião pública arbitrariamente? Ou, pelo contrário, (…) significa uma crescente sensibilidade por parte das distintas empresas diante das flutuações da opinião pública?” [“Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa”; in Lua Nova, nºs. 55-56].

3.2 Além de se transformar em empresae operar dentro da lógica do capital, a imprensa passou a deter o monopólio virtual da construção, manutenção e reprodução de capital simbólico e, portanto, a funcionar dentro de uma outra lógica, isto é, a lógica do poder.

O famoso relatório da Comissão MacBride, publicado no início da década de 80 do século passado [Um Mundo e Muitas Vozes, UNESCO/FGV] e hoje abandonado pela UNESCO, referia-se à dimensão política da comunicação que aumenta constantemente em função de uma “contradição fundamental”. Dizia o relatório:

“à medida que ia se estendendo, em cada país e no mundo inteiro, o número daqueles a quem a alfabetização, a ‘conscientização’ e o desenvolvimento da independência nacional transformavam em solicitantes de informação, ou em candidatos à emissão de mensagens, uma contradição inegável, relacionada com as exigências financeiras do progresso técnico, talvez não de forma absoluta, mas pelo menos relativamente, reduzia o numero de emissores, ao mesmo tempo em que intensificava [o seu poder]” (grifo nosso).

Entre nós, o saudoso sociólogo e jornalista Perseu Abramo, no seu conhecido livro Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, escrito em 1988, já afirmava:

Os órgãos de comunicação se transformaram em entidades novas, diferentes do que eram em sua origem, distintas das demais instituições sociais, mas extremamente semelhantes a um determinado tipo dessas instituições sociais, que são os partidos políticos. (…) Na realidade, esses grandes órgãos efetivamente são autônomos e independentes, em grande parte, em relação a outras formas de poder (…) porque são eles mesmos, em si, fonte original de poder, entes político-partidários, e disputam o poder maior sobre a sociedade em benefício dos seus próprios interesses e valores políticos. (…) Os órgãos de comunicação são os meios de comunicação de si mesmos como partidos [políticos].

Na mesma linha, o também saudoso professor Octávio Ianni, analisando o “complexo e difícil palco da política”, na época da globalização, referindo-se à televisão, afirmava em 1999 [“O Príncipe Eletrônico” in Desafios da Comunicação, Vozes].

Em lugar de O Príncipe de Maquiavel e de O Moderno Príncipe de Gramsci, assim como de outros ‘príncipes’ pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O Príncipe Eletrônico, que simultaneamente subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.

4. Apesar do exposto até aqui, não é raro encontrar-se distorções e deslocamentosimportantes na utilização que se faz das expressões Liberdade de Expressão e Liberdade da Imprensa, inclusive nas mais altas instâncias do Poder Judiciário.

Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o renomado professor da University of Tampere [Finlândia], Kaarle Nordenstreng [“Myths about Press Freedom” in Brazilian Journalism Research; vol.3, n.1], afirma que “o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a mídia, mas um ser humano individual”. E prossegue: “a frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma idéia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia”. E mais à frente: “nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade”.

A extensão de uma liberdade fundamental “à mídia, seus proprietários e seus gerentes”, no entanto, tem sido frequente.

4.1 O Acórdão do STF [novembro de 2009] em relação ao julgamento da ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 130 que considerou inconstitucional a totalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250 de 1967), consagra interpretação oposta à do professor Nordenstreng ao estabelecer uma hierarquia entre as diferentes liberdades e deslocar o locus da liberdade do indivíduo para “a imprensa”. Diz o item n. 6 do Acórdão que trata da “Relação de Mútua Causalidade entre Liberdade de imprensa e Democracia”:

“A plena liberdade da imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retro alimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados”.

4.2 É também rotineiro encontrar-se não só o deslocamento do sujeito da liberdade de expressão do indivíduo-cidadãopara a “sociedade” e, desta, implicitamente, para os “jornais”, mas também a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade da imprensa – como se equivalentes fossem.

Um exemplo pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo e passa a ser uma difusa “sociedade”; os jornais são genericamente identificados com “os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas” e a imprensa como formadora desinteressada da opinião pública, “o que mais interessa na democracia”. Por fim, liberdade da imprensa e liberdade de expressão são explicitamente consideradas como equivalentes. O texto completo do anúncio diz:

Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha.

(a imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis).

Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa democracia: opinião.

Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.

5. Estabelecida a diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa quero tratar das noções de liberdade e liberdade de expressão que estão implícitas ou explícitas no debate– ou na sua ausência – que existe entre nós. Ao mesmo tempo, desenvolvo razões do por que não conseguimos avançar na regulação das comunicações.

Há de se fazer uma distinção fundamental, embora de maneira simplificada, entre duas noções de liberdade, uma na tradição liberal e outra na tradição republicana. Essas tradições não se constituem de forma totalmente coesa e, claro, são plurais em si mesmas.

Na perspectiva liberal, prevalece o caráter pré-político e privado da liberdade. Entende-se a liberdade como se ela pudesse ser desvinculada da política e como um direito formado exclusivamente na esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade somente à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a nomeada liberdade negativa.

Já na perspectiva republicana, prevalece a idéia de liberdade associada à vida activa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno, à participação na vida pública, na res publica. A liberdade individual é construída politicamente. É daí que vem o significado original da palavra política, de polis, isto é, tudo que se refere à cidade, civil, público.

A liberdade republicana se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da idade moderna. Já a liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX.

São tradições distintas: uma se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, Milton e Paine. A outra a Hobbes, Locke, Constant e, mais recentemente, a Isaiah Berlin.

Embora ambas as tradições reconheçam a liberdade de expressãocomo fundamental para a plena realização da cidadania – e da democracia política – elas divergem radicalmente sobre o papel que o Estado deve desempenhar em relação a essa liberdade.

Na tradição liberal, o Estado deve abster-se totalmente de qualquer interferência em relação à liberdade de expressão dos cidadãos. Essa interferência é entendida como cerceamento da liberdade individual, como uma forma de censura.

Na tradição republicana, ao contrário, a intervenção do Estado é bem-vinda na medida em que são os cidadãos que definem, através de sua participação política na res publica [vida activa], as regras que serão seguidas para que a liberdade seja desfrutada em sua plenitude [autogoverno]. A liberdade de expressão é o instrumento básico dessa participação e, embora se realize tanto no espaço público quanto no espaço privado, neste, ela só é possível através da política, vale dizer, de sua defesa pública. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam exercer igualitária e plenamente a liberdade de expressão.

Vale registrar que, mesmo em países onde prevalece a tradição liberal, há jurisprudência consolidada sobre o papel do Estado como fiador das liberdades e, especificamente, da liberdade de expressão. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos.

O jurista liberal e professor Owen Fiss da Universidade de Yale, em pequeno, mas precioso livro, publicado originalmente em 1996 – A Ironia da Liberdade de Expressão-Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública – referindo-se às decisões da Suprema Corte norte-americana, afirma:

“Enquanto o liberalismo do século XIX foi definido pelas reivindicações por liberdade individual e resultou numa inequívoca demanda por governo limitado, o liberalismo de hoje acolhe o valor igualdade assim como a liberdade. Ademais, o liberalismo contemporâneo reconhece o papel que o Estado pode desempenhar assegurando igualdade e por vezes mesmo a liberdade.”

E prossegue:

“A proteção do Direito foi estendida para um elenco amplo de grupos desfavorecidos – minorias raciais, religiosas e étnicas, mulheres, os portadores de deficiência. Logo ele deve ser estendido para grupos definidos por sua orientação sexual.”

Essa vertente norte-americana do liberalismo não tem sido, todavia, prevalente no Brasil. Muito ao contrário. Na nossa história, tem prevalecido o que Owen Fiss considera “liberalismo do século XIX” e sua excludente visão de liberdade e de cidadania. O liberalismo brasileiro sempre conviveu e continua a conviver, sem qualquer problema, com a desigualdade, desde a escravidão até questões contemporâneas envolvendo as relações entre raças e gêneros.

A prevalência dessa tradição liberal no Brasil foi exacerbada nas últimas décadas pela onda neoliberal que varreu o planeta. Junto às privatizações veio o discurso do “fim do Estado nação” e do “Estado mínimo”, portanto, de rejeição à interferência do Estado, em especial no que se refere à regulação da mídia.

Paradoxo liberal

A exacerbação neoliberal provoca um estranho paradoxo no que se refere ao debate em torno da universalização da liberdade de expressão.

Os professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim [O Cidadão e a Liberdade de Expressão] identificam o que chamam de “impasse do encarceramento” quando tratam da noção liberal de liberdade. Recorro a eles, em texto ainda inédito, quando afirmam:

“O estreitamento argumentativo liberal reside principalmente na desvinculação entre a liberdade de expressão e as condições de autogoverno. Em sua história, o liberalismo formou (…) o seu conceito de liberdade, separando-o da noção de participação política e autogoverno. Nessa autonomização da liberdade de expressão das condições de autogoverno residiria, então, o caminho de sua própria autonomização conceitual da noção de liberdade, concebida em sua integridade. (…)

“O impasse do encarceramento liberal refere-se à tradição argumentativa, amplamente disseminada e até mesmo referencial, que explica a gênese da liberdade de expressão e seu desenvolvimento única e exclusivamente à tradição liberal. Assim, o seu debate é circunscrito ao pluralismo apenas no interior da tradição liberal, à sua gramática, à sua variação conceitual e à sua linguagem. (…)

“O argumento liberal sobre a liberdade de expressão é paradoxal: a liberdade de expressão não se discute… fora dos marcos liberais! A fórmula propagandística que resulta deste anti-pluralismo e sectarismo genéticos é que toda proposta, argumento ou legislação que contrarie os modos liberais de pensar a liberdade de expressão são imediatamente denunciados como contrários à própria liberdade de expressão.”

Não nos deveria surpreender, portanto, que exista uma reação tão forte no Brasil às eventuais propostas de política pública regulatória para a mídia.

O “impasse do encarceramento” faz com que até mesmo o debate sobre uma política pública para a mídia – vale dizer, sobre a intervenção do Estado como garantidor de liberdades – essencial na perspectiva republicana, passe a ser entendido como uma ameaça à própria liberdade de expressão. Esse paradoxoé uma das razões que impedem – há anos – qualquer avanço verdadeiro entre nós.

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[Venício A. de Lima é jornalista, professor aposentado da UnB e autor de, entre outros livros, de Política de Comunicações: um balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012]