Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O mundo em que vivemos

Jornalismo não é a repetição acrítica daquilo que as pessoas falam: o nome disso é gravador. Jornalismo não é copiar documentos oficiais sem verificar se, oficiais embora, são verossímeis ou não: o nome disso é xerox. Jornalismo não é colocar qualquer coisa no papel, por absurda que seja: papel que aceita tudo é macio, não solta tinta, custa muito mais caro e tem marca.

Pois não é que um grande jornal e seu portal de notícias publicam, como se fosse coisa normal, a notícia de que o Tribunal de Justiça do Rio julgou um processo de indenização de R$ 1,4 trilhão aos herdeiros do correntista de um banco? O pedido, claro, foi rejeitado: a quantia de R$ 1,4 trilhão, ou algo como US$ 700 bilhões de dólares, dá para comprar a Vale, a Petrobras e ainda sobra dinheiro.

O mais curioso é que a disputa começou com R$ 4.505,00, em agosto de 1994, que faltaram na conta de um cliente. Foi erro ou tentativa de subtrair-lhe o dinheiro? Nem isso consta nos meios de comunicação. O cliente entrou com a ação, cobrando juros, correção, tudo a que julgava ter direito. E nosso jornalismo?

1 – Ninguém achou estranho que uma quantia relativamente pequena se transformasse num monumental volume de dinheiro;

2 – Ninguém achou estranho que uma ação comum (exceto pela quantia a que chegou, sabe-se lá por que critérios) chegasse ao Tribunal de Justiça;

3 – Ninguém julgou estranho – e ponha estranho nisso – que três desembargadores tenham votado a favor da indenização (17 votaram contra). Quais os motivos que os levaram a essa conclusão? Não se trata de tomar partido: apenas de saber quais os argumentos jurídicos que os convenceram da justiça da causa.

Os advogados dos reclamantes dizem que vão recorrer. Quais seus argumentos? Uma causa como esta pode ir até que instância?

Este colunista, que não entende nada de Direito, gostaria de entender. E, se os meios de comunicação se limitam a reproduzir o bate-boca, qual a chance de entender o que realmente se passa?

 

A ameaça discreta

A guerra pública envolve Conselho Federal de Jornalismo, cuja função seria disciplinar os meios de comunicação, envolve gente que, por motivos ideológicos ou pragmáticos, gostaria de enquadrar a imprensa (afinal, sem imprensa seria muito mais difícil tocar até um caso como o do mensalão), envolve a maciça propaganda de empresas do governo em publicações, digamos, fiéis à linha justa. Mas, enquanto essa guerra pública é travada, uma emboscada se arma contra a imprensa: na reforma do Código Penal que se prepara no Congresso, os jornalistas recebem tratamento especial, mais duro que o dos demais cidadãos. Um exemplo: o artigo 137, que trata de difamação, prevê penas de um a dois anos; o artigo 140, que trata de difamação pela imprensa, dobra as penas, passando-as de dois a quatro anos.

Está passando batido; e, se os jornalistas não acordarem a tempo, estarão sujeitos a penas maiores que as aplicadas aos não-jornalistas. Duas boas fontes sobre este tema podem ser o professor Miguel Reale Jr e a advogada Janaína Paschoal. Eles estão acompanhando os debates e conhecem o que se esconde por trás da linguagem dos textos legais.

 

Endereço, não

Uma importante publicação cita um contínuo que, informa, consta como dono de uma empresa de terraplenagem que presta serviços de porte à Construtora Delta. Este contínuo, segundo a reportagem, é desempregado, mora numa favela e foi escondido por pessoas mais importantes para impedir que preste depoimento dando informações que poderiam ajudar os investigadores da rede de laranjas e empresas fantasmas que paira sobre o caso de Carlinhos Cachoeira.

Tudo bem: admitamos que não haja qualquer erro de avaliação e que o referido cavalheiro seja mesmo uma testemunha de grande importância. Mas publicar a foto do local em que, segundo a matéria, está escondido, levanta questões éticas da maior importância. Seja ou não criminoso, o cidadão tem direito a não ser exposto indevidamente a riscos. Por que algum interessado, sabendo onde ele se esconde, evitaria persegui-lo ali mesmo?

Foto e endereço são desnecessários e perigosos. Se a questão é colaborar com as investigações, que sejam fornecidos aos investigadores, não ao público em geral. Se alguém tentar algo violento contra o rapaz, que segundo a própria reportagem tem informações preciosas, como se justificará a exposição a que foi sujeito?

 

A guerra eleitoral

1 – Já está valendo tudo: sai numa publicação que o candidato do PT à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, está tecnicamente empatado com o líder das pesquisas, Celso Russomanno, do PRB. Não é verdade: Haddad está em terceiro lugar, muito atrás de Russomanno, e o empate técnico é com o segundo colocado nas pesquisas, José Serra.

2 – Um candidato à prefeitura de Guarulhos foi condenado em primeira instância por apropriação indébita do desconto do INSS de seus empregados. A pena é de três anos e quatro meses de reclusão. Como ele recorreu, não foi considerado ficha suja e pôde candidatar-se. A revista Época deu a história; tirando Época, há retumbante silêncio dos grandes veículos de comunicação. E não deveria haver silêncio, não: Guarulhos é a segunda cidade do estado de São Paulo e tem grande importância. Será que pertencer ao PSDB tem algo a ver com a proteção midiática ao candidato – que, além deste em que já foi condenado, responde a 69 outros processos, a maioria dos quais de apropriação indébita?

3 – Uma revista de distribuição gratuita (cuja circulação declarada é de cem mil exemplares) lista dez motivos para que seis candidatos à prefeitura de São Paulo não sejam votados. A candidata Soninha, do PPS, em quinto lugar nas pesquisas, não deveria ser eleita, segundo a publicação, “porque sempre se mostrou defensora dos direitos dos homossexuais”.

Explica a revista que não é preconceituosa, apenas acredita que a postura de Soninha prejudique sua votação de tal maneira que ela não consiga ser eleita. A explicação é interessante – só que não é o que está escrito na reportagem.

 

Multiplicando os reais

Celso Russomanno, do PRB, líder nas pesquisas em São Paulo, diz ter gasto até agora, na campanha, pouco menos de 10% das despesas de seu adversário petista Fernando Haddad. A imprensa, sempre boazinha, divulga. É impossível: horário gratuito, carreatas, produção de comerciais de TV, produção de comerciais de rádio custam muito mais do que R$ 650 mil por mês.

É maldade e preconceito insinuar que, por ter apoio da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, que recebe muitos dízimos em dinheiro vivo, Russomanno poderia estar desfrutando de recursos não-declarados. Isso pode até acontecer, porém no presente momento não há qualquer base que sustente uma afirmação desse tipo. Mas que a despesa do candidato, de tão mínima, merece ser investigada, isso merece. Por mais igrejas que apoiem uma candidatura, a capacidade de multiplicação dos pães e dos peixes não foi estendida a seus dirigentes.

 

Menos um

Há quem o recorde como um grande publicitário, comandante da lendária Norton, a agência de Geraldo Alonso; há quem o recorde como um grande jornalista, editor de Esportes da Folha da Tarde, de São Paulo, o vespertino do Grupo Folha. Celso Brandão era um grande publicitário. Era um grande jornalista. Era uma grande pessoa. E morreu no dia 4, aos 72 anos.

Trabalhou numa talentosa equipe: Narciso James, Rose Nogueira, Armando Barreto, Vicente Alessi, Miguel Arcanjo Terra, Edgar Soares, Flávio Adauto, Juarez Soares, Pio Pinheiro, Paulinho Mattiussi, Odair Pimentel. Mas a situação política do país impediu o desenvolvimento do projeto: a polícia invadiu a redação e prendeu muita gente, o governo informou à empresa que o jornal teria de mudar para que o grupo inteiro sobrevivesse. O jornal mudou, e muito, e nesse período (descrito em detalhes pela historiadora Beatriz Kushnir num excelente livro, Cães de Guarda) fugiu totalmente às finalidades jornalísticas; e só voltou a se alinhar com o restante da empresa quando a ditadura já agonizava.

Bloqueado seu caminho na imprensa, Celso Brandão seguiu sua segunda vocação, a de publicitário – e também aí pertenceu ao primeiro time. É um a menos e faz falta.

 

Ótimo tema, grande livro

Quando o Jornal da Tarde foi lançado, em 1966, lá havia uma mulher: Maria Lúcia Fragata, que editava a página feminina, “Mulher é Melhor”. Como em outras redações, havia restrição à presença de outras mulheres fora dos cadernos femininos ou infantis: Regina Helena Paiva Ramos, Shajanan Lobo, Helle Alves, poucas outras eram as exceções. Tinham de mostrar mais talento, mais disposição, mais conhecimento, mais firmeza que os homens, ou não teriam nenhuma chance.

No Jornal da Tarde, quem abriu caminho para outras mulheres, fora da página feminina, foi a grande repórter Teresa Montero (que mais tarde, casada com Bernard, passou a chamar-se Teresa Montero Otondo). Fez carreira excelente no JT, no Estadão, aprofundou-se no estudo de televisão pública, tema de seu doutorado. E agora lança um livro essencial, Televisão Pública: para quem e para que, com debate, no próximo dia 17, às 19h, na Rua Rodésia, 398, Vila Madalena, SP. Vale pelo livro, vale pelo debate, vale para encontrar a autora, uma profissional de primeiro time, uma pessoa fascinante.

 

Como…

De um grande portal noticioso, ligado a um jornal de circulação nacional:

** “Caminhonete avaliada em R$ 100 mil e Jaguar de R$ 500 mil se envolveram em acidente em São Paulo. Jaguar teve de ser serrado. Um dos motoristas diz que Jaguar furou farol vermelho”.

Sejamos tolerantes: quem furou o farol, claro, foi o motorista de um dos carros; mas há aquela figura de linguagem, a metonímia, pelo qual se pode usar o continente pelo conteúdo – algo como “Casa Branca avisa que chegou a seu limite de paciência”. A Casa Branca é um imóvel extremamente paciente, como se sabe, e não está acostumada a falar com estranhos, mas a figura de linguagem permite utilizá-la em vez de “o governo americano”.

Mas que é que tem o valor estimado de cada um dos veículos envolvidos no acidente com a notícia?

 

…é…

De um grande portal noticioso:

** “Ídolos estreia com a pior audiência de sua história”

Se é estreia, não é apenas a pior audiência de sua história: é também a melhor.

 

…mesmo?

De um grande portal noticioso, comemorando em 6 de setembro o aniversário do atacante corinthiano Emerson Sheik:

** “Irreverente, pé quente e polêmico, Emerson Sheik completa 34 anos”

Seguem-se frases, detalhes que demonstram sua irreverência, histórias de seu bicho de estimação, a macaca Cuta, que trata como filha. É tudo verdade, o texto é divertido, seria tudo ótimo – mas, na ficha oficial de Emerson, seu aniversário será em 6 de dezembro. Estarão antecipando as comemorações?

 

Inculta, mas não bela

Até os colunistas que conhecem o idioma estão criticando a língua usada pelos próprios veículos em que trabalham. Mal é mau, lhe é lo, e vice-versa, e o nem se sabe mais o que é. Algumas frases da semana:

** “Dilma versus Sepúlveda: o mau estar permanece”

Aí eles fazem as pazes e “ficam de bom”?

Parece que sim: comentando o grande número de promoções em restaurantes, em que os preços mais baixos são compensados pela drástica redução das porções e da qualidade dos pratos, informa-se que o consumidor costuma relacionar a promoção “com mal atendimento”.

Será que, com preços normais, ele será “bom atendido”?

De um grande jornal, que já primou pela correção linguística:

** “O jogador não foi nem escrito pela equipe na Liga Europa”

Deve ser “inscrito”, imaginemos. Aí vem outra matéria: conta que o São Paulo pensa em trazer Kaká de volta. “Um diretor de quem é amigo particular o ligou e acenou com a possibilidade de retorno”.

Onde será que o ligou? Em tomada não foi, que dá choque.

 

E eu com isso?

O papel para imprimir notícias exige a derrubada de árvores, gasta combustível poluente, consome grandes quantidades de energia elétrica, pede produtos químicos e normalmente espalha um cheiro horroroso nas proximidades. Mas tudo isso é essencial para que nos mantenhamos informados, saibamos que o pessoal que faz noticiário frufru até hoje se escandaliza com decotes e tomemos conhecimento de fatos decisivos como:

** “Rihanna corta cabelo no estilo Joãozinho”

** “Filha de Cauã e Grazi Massafera é fotografada pela primeira vez”

** “Vanessa Hudgens chama atenção com decote em première”

** “Fernanda Machado e Robert: tarde romântica”

** “De tomara-que-caia, Ashley Greene prestigia première de ‘A Aparição’”

** “Eriberto Leão paparica filho em dia de praia”

** “Kristen Stewart é vista usando camiseta idêntica à do ex-namorado Robert Pattinson”

** “Nicole Bahls e Gustavo Salyer: juntos no Rio”

** “Dançarina abusa de decote na première de ‘The Words’ nos EUA”

** “Nathalia Dill e Juliana Didone curtem o show de Ana Cañas”

 

O grande título

Nunca falta o título que não cabia no espaço e, não cabendo, vai o que der.

** “Desabamento em obra no shopping Metrô Tucuruvi deixa três feridos grav”

Temos aquele título notável, que demonstra direitinho ao leitor qual a posição do veículo de comunicação com relação a determinado fato:

** “A sanha de Barbosa vs as ponderações de Lewandowski”

No caso, o ministro Joaquim Barbosa votou pela condenação de um dos réus do mensalão e o ministro Ricardo Lewandowski era favorável à absolvição.

E há aquele título raro, que surpreende o leitor. Nesta semana existem dois, ambos dividindo a primazia da semana, ambos com o mesmo problema, de escolha dos termos a utilizar.

Há certas palavras que não devem ser combinadas num título, porque vão gerar uma percepção errada dos fatos. Por exemplo,

** “Caem as vendas no comércio, mas inadimplência dá sinais de recuperação”

Recuperação normalmente quer dizer coisa boa; logo, a inadimplência cresce, volta a crescer, preocupa, mas é estranho dizer que dá sinais de recuperação.

Outro caso:

** “Igreja Mundial negocia apoio a Russomanno”

Pois é, há certas palavras que deveriam ser evitadas em certos contextos – ou porque vão gerar percepção errada, ou porque a percepção que geram é correta.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]