Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“Praticamente abri mão da minha vida privada”

O que você perguntaria a Lúcio Flávio Pinto, editor paraense do Jornal Pessoal, que completa 25 anos em setembro, para entender o que o motiva a continuar com um periódico que mal arca com os próprios custos ao mesmo tempo em que incomoda tantos grupos e causa tanta polêmica em uma cidade como Belém? Foi com essa intenção que o blog Somos Todos Lúcio Flávio Pinto reuniu perguntas de cinco jornalistas interessados em conhecer um pouco do mundo que o jornalista crê possível, ou apenas entender o que o (co)move.

O questionário foi enviado por e-mail e gentilmente devolvido da mesma forma, com respostas marcadas pela força de um homem que cansa, lamenta perdas pessoais e sente falta do fechamento das redações diárias dos jornais, mas acima de tudo acredita na possibilidade de resistência empreendida pelo trabalho que realiza.

E, em algum ponto da história, fica claro que a camisa virou pele: a pessoa, quando pressionada a fazer escolhas que envolvem a vida íntima e a profissional, opta ou prioriza com veemência o exercício do jornalismo capaz de registrar – e, por que não, confrontar – o que considera uma história única e grandiosa de ocupação da região amazônica, no mais antigo e colonial sentido que há para o termo, como explica adiante.

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Como o Jornal Pessoalse sustenta? Como é possível dar conta das necessidades e despesas familiares com um jornal feito de forma quase artesanal, sem colaboradores e publicidade? Quem compra o Jornal Pessoal?

Lúcio Flávio Pinto – O Jornal Pessoal arca com seus custos. Eu, com os meus. Ambos vamos levando a vida na flauta. O jornal, ao excluir a receita de publicidade do seu universo, fez uma opção mais do que franciscana pela pobreza. Eu não tive alternativa senão partilhar a escolha. Ao menos enquanto o jornal existir. Quem o compra, em primeiro lugar, é quem pode pagar 5 reais pelo exemplar de um jornal pobre. Mas que o procura por seu conteúdo. É a classe média alta e média. Mas, felizmente, também há leitores nas camadas de renda inferior.

Para quem o assiste sem muito contato ou diverge de seus pontos de vista político, já que o jornal, como o próprio nome diz, é pessoal, fica uma pergunta: há colaboradores ou apoiadores financeiros do seu trabalho que não sejam publicamente declarados? Você omite ou omitiria informações e fontes nesse sentido?

L.F.P. – Tive um colaborador que me ajudava a pagar apenas as despesas de postagem de jornais que envio como cortesia para vários lugares do Brasil e do exterior, além de Belém mesmo. Essa pessoa não pôde manter essa ajuda. Como pediu sigilo, nunca revelei seu nome. Sem sua participação, tive que reduzir o número de cortesias, mas elas persistem. Essas pessoas se dispõem a pagar assinaturas, mas como não tenho condições de organizar esse serviço, envio-lhes gratuitamente os exemplares porque sua leitura do JP é fundamental para mim. Elas me dão um retorno nacional e internacional. Um amigo compra 20 exemplares de cada edição e os distribui entre os amigos. Nunca houve alguém que financiasse ou ajudasse o JP em suas despesas, um mecenas.

“Sempre fiz a opção pela profissão”

Por que a inserção do Jornal Pessoalna internet ainda é tão tímida, se a maior parte dos seus leitores está na rede e encontra lá um espaço mais democrático para debater temas como liberdade de expressão?

L.F.P. – Por pura inibição minha. Tenho uma reação espontânea e quase automática a essa tecnologia. Aproximo-me dela através de amigos e do meu filho, Angelim, formado em ciência da computação. Sou um cego que ele guia pelo mundo virtual. No entanto, em todos os momentos de crise recorro intensamente à internet. Tem sido minha tábua da salvação nessas ocasiões. Seu poder de difusão e mobilização é estupendo, sem igual.

Se algo pessoal lhe acontecesse, como um escândalo familiar que de alguma forma envolvesse a cena pública, o jornalista, ou editor, seria capaz de transformar o fato em manchete do jornal? Acreditar ser possível separar o jornalista da pessoa? Se sim, a qual vínculo acreditaria ser provável manter a lealdade em um momento assim: à família ligada pelo DNA ou à reunida pela profissão no decorrer dos anos?

L.F.P. – Sempre fiz a opção pela profissão, desde o início da carreira, 46 anos atrás. Na crise que envolveu meu pai, em 1967/68, quando ele era prefeito de Santarém, o jornal no qual eu trabalhava então, A Província do Pará, lhe fazia oposição sistemática e nem sempre era correto no noticiário. Em certo momento, ocupei interinamente a secretaria do jornal, com 18 anos. Podia jogar a força do meu cargo para pelo menos conseguir maior isenção, mas nada fiz. Preferi ficar fora dessa cobertura, mesmo vendo a movimentação pela redação dos inimigos dele, que viciavam o noticiário. Papai não gostou muito da minha posição, mas a respeitou. Nunca hesitei em outros momentos que se seguiram e acho que manterei essa diretriz sempre.

“A sensação de solidão é muito forte no judiciário”

Quem foram e ainda são os seus principais interlocutores nos debates realizados pelo jornal?

L.F.P. – Há leitores que me acompanham há décadas. Tive o privilégio de assinar coluna quando tinha três meses de profissão e mal havia completado 17 anos. Assim, pude expressar minha opinião e fazer interpretações, além de noticiar fatos e relatar acontecimentos. Esses velhos leitores sempre dialogaram comigo, mesmo quando eu enviava meu material de São Paulo. Alguns nunca se manifestaram publicamente. Outros, de vez em quando, remetem suas cartas. Meu diálogo com as fontes é feito pessoalmente, o que muito me ajuda.

Você se sente só no exercício do jornalismo? Após a condenação que o obriga a indenizar o responsável por um megaesquema de grilagem na região, o que representou o movimento Somos Todos Lúcio Flávio Pinto, organizado em seu favor e responsável por manifestos de apoio e pela arrecadação de recursos para o pagamento da quantia?

L.F.P. – O movimento muito me sensibilizou e ainda me anima porque em nada dependeu de mim. Foi iniciativa espontânea, generosa e competente. Ajuda-me muito a não me sentir só. A sensação de solidão é muito forte nas dependências do judiciário e nos autos do processo. E impõe a sensação de que estou condenado a girar na quadratura do círculo, num movimento surreal, absurdo.

“Belém caiu em qualidade de vida”

Além das ações judiciais, você já foi vítima de agressões físicas e verbais por parte de pessoas que se sentiram atingidas por seus artigos – para relembrar, em 2005 o empresário Ronaldo Maiorana, das Organizações Romulo Maiorana, apoiado por dois seguranças armados, o agrediu fisicamente e o ameaçou de morte dentro de um restaurante lotado; e há poucos meses, o juiz Amílcar Guimarães, que o condenou a pagar indenização aos herdeiros do grileiro Cecílio do Rego Almeida, o ofendeu em sua página pessoal no Facebook, fato que teve repercussão na imprensa e na internet, assim como o empresário Rodrigo Chaves, da empresa Progec, citado na denúncia de fraude cometida contra a Sudam por parte dos empresários Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana. Rodrigo Chaves também o agrediu verbalmente em um restaurante. O que ocorreu depois desses fatos e o que ficou para você dessas experiências?

L.F.P. – A agressão física é um dos momentos mais tristes na relação humana. É o desrespeito por parte do agressor, que tenta se impor através de um meio que ele julga ser o único para resolver diferenças: a violência. O agredido, quando não concorda com essa forma de resolução de litígio, precisa de muita força moral e de densidade ética para reagir à altura da ofensa sem se reduzir ao elemento animalesco que lhe tentam impor. É um momento trágico da condição humana. Felizmente tenho conseguido reagir diante dessas e de outras muitas agressões do passado de uma forma civilizada e ao mesmo tempo enérgica. Não aceito que violem meus direitos e defenderei minha dignidade até o fim, sem concessões. Meus agressores não devem ter ilusões: mesmo recorrendo ao ato físico, não me intimidaram. Causando danos à minha saúde e à minha condição financeira, decidi manter o meu jornal justamente porque qualquer outro destino que lhe desse poderia ser interpretado como rendição. O jornal já podia ter acabado. Seria seu destino quase natural diante de tantas dificuldades para se manter. Mas tenho feito tudo ao meu alcance para que isso só aconteça quando ele já não precisar mais ser um símbolo, uma bandeira de luta, de resistência.

Belém vive um dos seus piores momentos políticos, além de problemas como o crescimento desordenado da cidade, a violência, o trânsito caótico e a falta de saneamento básico. Você descreveu muito bem esse quadro no JPde nº 519. Como avalia a participação da sociedade civil nos momentos decisórios relacionados ao futuro da cidade? Pessoalmente, o que você espera das próximas eleições?

L.F.P. – Já declarei que vou anular o meu voto no primeiro turno. No segundo, vou escolher o “menos pior”. Belém deverá continuar sua trajetória de retrocesso. Não interessa quem tenha sido o prefeito nas últimas décadas: comparativamente, a cidade caiu de posição em qualidade de vida. É atualmente uma das piores capitais estaduais para se viver, se não a pior. A sociedade se desmobilizou e a opinião pública se desfez, amedrontada entre duas organizações de comunicações que se digladiam pelo controle do poder, sem admitir terceira via ou que lá seja de expressão social independente e autônoma.

“Desistir é um pensamento recorrente”

O que é necessário renunciar para dar conta do trabalho? Do que o Lúcio abre mão para dar conta do empreendimento a que se propôs com o jornal? E que empreendimento seria esse, se puder definir?

L.F.P. – Praticamente abri mão da minha vida privada. O jornal só continuou a circular porque me transformei numa máquina de trabalhar, sem férias, quase sem lazer, sem o tempo necessário para cultivar os que amo e estão próximos de mim. Abri mão até dos meus projetos de maior envergadura, os que atendiam todos os meus anseios criativos, para dar conta do cotidiano, desse dia-a-dia incrível da vida na Amazônia. A conjuntura me sufocou, me impedindo de realizar alguns dos projetos que concebi ou deixei incompletos porque exigiam muito mais tempo e distanciamento.

Qual a recompensa de continuar, apesar de tantos processos judiciais e embates políticos, interpessoais, incluindo também a falta de apoio, reconhecimento e mesmo de liberdade para fazer o próprio trabalho? Em outras palavras: o que o motiva a continuar? Quais fatores, pessoas e sentimentos fazem valer a pena seguir adiante?

L.F.P. – A possibilidade de fazer parte de uma história única e grandiosa como essa da conquista da Amazônia, da sua ocupação, no velho sentido colonial, da imposição da vontade e dos interesses do colonizador. E a possibilidade única de romper essa lógica colonial, que devastou a África e a Ásia.

Já pensou em desistir em algum momento nos últimos 25 anos? Em qual?

L.F.P. – Várias vezes. É um pensamento recorrente. Quando fui agredido, estava com esse propósito. O desgaste de manter o jornal é grande.

“Sinto a perda do convívio nas redações”

Já se arrependeu ou lamentou algum ato ou fato decorrente do que acredita ser essencial ao trabalho?

L.F.P. – Lamentei ter-me desligado espontaneamente de O Estado de S. Paulo. Eu tinha 18 anos ininterruptos na empresa. Segundo a mística da “casa”, me tornara móveis e utensílios. Ficaria ali até me aposentar. Meu desligamento foi um ato de protesto pela desistência do projeto amazônico, pelo qual tanto me empenhei. Mas perdi a base de sustentação, que permitia minha manutenção financeira, e as condições para viajar pela Amazônia. Não me arrependi porque minha decisão foi correta. Mas lamentei as perdas.

Entre o que se perde com o tempo, do que e de quem sente falta, profissional e pessoalmente, seja pelos rumos que toma a própria vida ou mesmo em função do agir profissional?

L.F.P. – Foram muitas as perdas. As maiores são íntimas, pessoais, que convém guardar no lugar mais protegido do ser. Profissionalmente, sinto a perda do convívio nas redações e o processo de fechamento das edições diárias dos jornais.

Se pudesse largar tudo hoje, o que você faria em seguida?

L.F.P. – Procuraria nova forma de existência, de sobrevivência, de realização e de utilidade social. Depois de vencer o vácuo e a inércia, é claro. Não se passa de uma condição como esta em que me encontro para outra sem impacto.

Leia também

Entrevistas de Lúcio Flávio Pinto ao Observatório da Imprensa na TV:

>> Contra a covardia profissional (10/4/2012)

>> Jornalismo a serviço da cidadania (20/12/2011)

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[Brenda Taketa, Fabrício de Paula, Joice Santos, Rose Silveira e Tatiana Ferreira são jornalistas]