Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As TVs públicas nos mercados globais

O debate sobre a radiodifusão pública, apesar de negligenciado pelos meios de comunicação hegemônicos, ainda pulsa com veemência nas veias daqueles que lutam pela democratização e renovação das políticas públicas de comunicação. No âmbito popular, o indeferimento sobre o tema pode ser atribuído ao baixo grau de informação que possui o cidadão comum, desconhecedor das possibilidades e vantagens do serviço que pode ser oferecido pelo modelo público. Não obstante, no que tange especificamente o ambiente televisivo, os exemplos nacionais dos últimos anos pouco auxiliaram na clarificação do importante papel desempenhado pelo modelo. O tem ocorrido neste setor, de fato, são aglomerados de canais estatais, comunitários e educativos vinculados aos interesses dos seus respectivos governos, entidades e universidades, efetivamente desconsiderando o eixo central da proposta de comunicação pública.

Para que seja possível vislumbrar o conceito de TV pública, em primeiro lugar deve-se compreender que tais canais não possuem fins lucrativos, visando alcançar audiência a partir do âmbito da cidadania. Não estão pré-dispostas, ao menos conceitualmente, na produção de conteúdos massivos, que conquistam grandes audiências como o telejornal local sensacionalista ou a novela das nove, por exemplo. Portanto, pode-se afirmar que as TVs públicas atuam na contramão do modelo hegemônico, que é o adotado pelas emissoras comerciais que sobrevivem de publicidade. Em segundo, torna-se necessário o entendimento de que a TV pública não visa concorrer com as demais emissoras, no que diz respeito aos conteúdos, formatos e padrões de produção. Mas buscam a complementação e a ampliação da oferta audiovisual existente no país, a partir de produções audiovisuais que, a partir do reforço da identidade nacional, procuram elevar o conceito de cidadania.

TV pública no mundo

Foi durante a Primeira Guerra Mundial que a TV pública iniciou seu processo de consolidação. No princípio, provocou grande receio, uma vez que seu potencial, enquanto instrumento de democratização cultural, desafiava os líderes hegemônicos, não raramente detentores do poder comunicacional. Na Europa, por exemplo, a implementação do serviço correspondeu a uma vontade de eternizar o patrimônio cultural da sociedade. Assim, o Brasil não possui um serviço público de radiodifusão nem ao menos parecido como, por exemplo, o proposto pela British Broadcasting Corporation (BBC), de Londres. Trata-se da primeira rede pública de TV no mundo, além de ser a primeira emissora de TV a operar no Reino Unido. Depois da BBC surgiram outros modelos de emissoras públicas no mundo, tais como a France Télévision (França), a TVE (Espanha), a RAI (Itália) a RTP (Portugal) etc.

A proposta do projeto europeu contemplava a diversidade, considerando todos os cidadãos como iguais e assegurando-lhes plenos direitos sociais, políticos e individuais, logicamente dentro dos limites possíveis da radiodifusão. Por muitos anos a ideia funcionou. Os franceses chamavam sua TV pública de la voix de la France (a voz da França); os italianos consideraram inicialmente seu radiodifusão pública como mamma (mamãe); já os ingleses apelidaram sua famosa estação de auntie Beeb (tia Beeb). Assim, pode-se afirmar que o modelo europeu é vitorioso, apesar de ter funcionado melhor em alguns países (como na França) e pior em outros, como na Itália, especialmente a partir das intervenções do empresário e político Silvio Berlusconi.

Contexto brasileiro

A radiodifusão brasileira desenvolveu-se de modo comercial desde o advento da televisão no país, na década de 1950, em um contexto histórico onde prevaleceram os interesses mercadológicos em demérito ao amplo interesse público. Portanto, um modelo de desenvolvimento diferente dos países europeus, onde os canais televisivos eram totalmente públicos até a década de 1980 (França, Itália e Portugal, respectivamente), quando foram privatizados alguns canais e criadas as primeiras redes privadas.

Por esse motivo, o conceito de TV pública desenvolveu-se de modo agonizante e segue bastante disperso em nosso país, especialmente através dos canais inscritos no que se pode chamar de “arena pública”. Inscrevem-se neste âmbito as TVs educativas e, a partir dos anos 90, os canais da TV a cabo, estranhamente denominados como de “acesso público” (uma vez que estão disponíveis na TV paga). As emissoras que compõem a “arena pública” possuem características muito específicas, com processos de desenvolvimento e consolidação fortemente delineados. Pode-se considerar que o estado da arte atual do conceito engloba especialmente os canais universitários, que somam mais de 40 estações no país; os canais estaduais, que são cerca de 20; os comunitários, que somam mais de uma centena; além dos canais dos poderes Legislativo e Judiciário.

O regime militar instaurado em 1964 concentrou seus esforços no sistema privado de radiodifusão, apoiando fortemente as Organizações Globo. Ainda assim, os militares não abdicaram do controle de uma rede pública estatal, que não estava destinada à concorrência, mas a propagação do ideário do regime. Assim, a primeira TV pública brasileira foi a TV Universitária de Pernambuco, inaugurada em 1968. Seu objetivo era levar educação para os 50% de analfabetos entre a população do estado.Logo depois, em 1969, a TV Cultura, vinculada ao governo do Estado de São Paulo e, em 1973, a TVE do Rio de Janeiro, subordinada ao Governo Federal. Nos anos 70, a partir de uma parceria com as Organizações Globo, começam a surgir propostas de ensino-aprendizagem através da televisão (os chamados telecursos). O projeto contou com o aval do Ministério da Educação e recursos financeiros oriundos das federações da indústria e do comércio. Uma experiência interessante e mantida até os dias atuais. A possibilidade de financiamento a partir da publicidade surge nos anos 80, através do sistema de patrocínio. Dez anos mais tarde, instituições de educação profissional, como o sistema Sesc/Senac, também apostaram no mercado, a partir da coprodução de conteúdos e difusão através de seus canais próprios.

Em 2007, após oficializar a fusão dos patrimônios da Radiobrás e da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), antiga TVE Brasil, o Governo Lula criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), mantenedora dos canais TV Brasil, TV Brasil Internacional e NBR, além de uma rede de rádios. Seu financiamento é proveniente do Orçamento Geral da União, além de verbas obtidas pela venda de programas, licenciamento de marcas, doações, publicidade institucional, patrocínio de programas e prestação de serviços a organismos públicos e privados. A iniciativa representou a tentativa de atender o ideal do que seria uma TV genuinamente pública: emissora de alcance nacional, com produtos audiovisuais independentes e, na medida do possível, democráticos. A emissora aparentemente cumpre sua proposta inicial, uma vez que, em tela, são exibidos programas como Viola, Minha Viola e Samba na Gamboa. A TV Brasil também focaliza a educação, ao exibir o decano Salto para o Futuro e Conhecendo Museus. Ainda, oferece conteúdos com ênfase no meio-ambiente, como os documentários Planeta Azul e Amazônia Adentro.

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[Andres Kalikoske e Paula Zamora são, respectivamente, professor de Ciências da Comunicação na Unisinos e graduanda em Comunicação Social – Jornalismo na mesma instituição]