“Senhoras e senhores, aqui fala o seu repórter Esso, testemunha ocular da história.” A clássica vinheta do programa de rádio Repórter Esso, que embalou muitos brasileiros nas primeiras horas da noite, deixou de ir ao ar em 1961, mas hoje ela é facilmente acessada em qualquer passeio rápido pela internet. O rádio, meio que constituiu durante décadas um dos eixos da vida cultural brasileira, encontra-se num momento de transição com o avanço das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Elos da cadeia produtiva deste importante segmento das indústrias midiáticas e culturais vêm sendo redesenhados, com impactos sobre interesses econômicos e políticos, relações trabalhistas, oferta de conteúdos (jornalísticos e de entretenimento) e hábitos de escuta da população.
A expansão das novas plataformas digitais redefine o papel de mediação social exercido pelo rádio e reordena o processo de negociação de identidades individuais e coletivas (locais, regionais, nacionais, pertença a comunidades de gosto etc.), estabelecendo novas práticas interativas através da sonoridade. Desse ponto, onde as novas plataformas digitais colocam o rádio em outro universo de transmissão de conteúdos que não somente as vias hertzianas, deparamo-nos com o seguinte questionamento: a convergência midiática altera o processo produtivo do radiojornalismo? O que mudou nesse intervalo das ondas do Esso aos bits da rede?
A atual fase do rádio brasileiro não se assemelha em nada à fase glamorosa vivenciada na década de 40 do século 20. Desde os anos 90 do mesmo século, o rádio passa por uma transformação voltada para uma presença maior de atores de mercado, considerando tanto as formas tradicionais de transmissão, vias hertzianas, quanto as de recorrência advindas das inovações tecnológicas, especificamente a internet e a transmissão via satélite. Ressalta-se que essas mudanças tratam de outras ordens, que incluem o avanço da radiodifusão nas práticas de gestão empresarial, afinadamente as que captam maior número de consumidores, reposicionam produtos e otimizam os recursos comunicacionais (BRITTOS, 2002, p.31). Isso quer dizer que o rádio amplia comercialmente seu espaço de atuação, se coaduna com o estado de reposicionamento do capitalismo global e adapta-se aos novos processos de mediação.
Processo histórico
No Brasil, essas modificações são resultados de um processo histórico que culmina na sua atual fase, a da convergência (FERRARETO, 2012), implicando um remodelamento da cadeia produtiva em várias esferas. Ferrareto explica que estas esferas são de quatro ordens: tecnológica, empresarial, de conteúdo e profissional. Em cada um desses quesitos o processo produtivo da sonoridade sofre substanciais transformações. A mais evidente dessas mudanças é a transmissão via internet. Quando realizada exclusivamente por esse meio, as ondas hertzianas deixam de existir. O caso da webrádio (Kischinhevisky, 2007) é mais robusto em sua visão sobre a fase da convergência, compreendendo que ela tende a se consolidar e que o rádio analógico chegará ao seu fim, no entanto não estipula prazo para isso. Além do que, como afirma este autor, pretende emancipar a função do ouvinte/usuário, garantindo a este maior autonomia.
É preciso, todavia, compreender como a produção radiofônica atinge esse patamar histórico. A periodização proposta por Ferrareto (2012, p.3), adotada neste espaço, elege como parâmetro a compreensão das emissoras de rádios como empresas, ressaltando que seu recorte histórico considera fundamentalmente o posicionamento mercadológico. Desse modo, “deriva, […] da introdução de novas tecnologias no ambiente comunicacional, que obrigam redefinições na oferta de conteúdos, gerando, assim, padrões diferenciados e consumo cultural.” Para tais considerações, aborda seis quesitos determinadores dos pontos de cortes da periodização realizada. O primeiro, a relação do rádio com outros meios. O segundo, os hábitos de consumo da audiência em termos de produtos simbólicos. O terceiro, os conteúdos radiofônicos predominantes o longo do tempo. O quarto, as tecnologias comunicacionais. O quinto, as estratégias empresariais dominantes e por fim, o sexto, os movimentos hegemônicos e contra-hegemônicos no setor.
Com tais pontos delimitados concluí que a primeira fase do rádio brasileiro está vinculada à transposição dos modelos associativos das primeiras emissoras ao rádio como negócio. Essa mudança foi possibilitada pela regulamentação da publicidade, desta forma, Ferrareto (2012, p.13), considera eleito o primeiro corte historiográfico. Conforme avaliação, as empresas de rádio saem da forma hegemônica associativa e passam à mercadológica. A Esso, por exemplo, é uma empresa de produtos automobilísticos, que patrocinava o programa de rádio famoso por sua vinheta e nome. Tal delimitação permite a estruturação das fases históricas do rádio brasileiro. Desse modo então, elenca primeiro a fase da implantação, que está fundamentada no corte descrito anteriormente; a segunda fase seria a de difusão; a terceira, a fase da segmentação; e por último, a fase da convergência.
Institucionalização das hipermediações
Na fase da difusão, as empresas difundiam indiscriminadamente os seus produtos sem uma preocupação específica com o tipo de público que estava recebendo esses conteúdos. A fase da segmentação é o oposto onde a preocupação do marketing empresarial passa a ser a heterogeneidade do público, e os produtos do rádio são direcionados a variabilidade dos gostos do público. A última fase, a da convergência é descrita por Ferraretto (2012) como sendo a tomada de consciência em nível empresarial da transposição das ondas eletromagnéticas para o processamento digital. Essa ambientação lembra o que Scolari (2008), aponta também sobre a convergência midiática, que esta balizada sobre quatro dimensões: empresarial, tecnológica, profissional e comunicativa.
Ferrareto (2012) lembra ainda que na fase convergência midiática o rádio deriva da Fase da Multiplicidade da Oferta (BRITTOS, 2002), onde se multiplicam o número de agentes tanto na produção quanto no consumo de produtos radiofônicos. As observações apontam a relevância das transformações mercadológicas que refletem também nas questões culturais e do trabalho, na continuidade produtiva do rádio brasileiro, bem como da responsabilidade de sua reconfiguração.
Observadas essas transformações históricas percebe-se que o rádio se encontra de fato na fase da convergência midiática, justamente porque adota características da linguagem e dos formatos digitais. Em outras palavras, o processo de produção, distribuição e consumo está consolidado sobre as dimensões (tecnológica, empresarial, profissional e comunicativa) apontadas por Scolari (2008), que remodelam a produção dos meios de comunicação digitais. Antes disso, sua reflexão propõe o conceito de hipermediação que diz respeito à realidade dos processos comunicativos mediados via Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s), e da necessidade de se compreender os processos de mediação e não mais exclusivamente os objetos, ou seja, os meios em si. Este ponto diferencia os objetos dos processos e coloca a comunicação digital no patamar da hipermediação.
Ótica da convergência
Scolari (2008, p.78) explica que os meios de comunicaçãose processam nas hirpermediações de uma forma diferenciada se comparada ao processo tradicional de mediação. Nesse sentido, só é possível compreender a comunicação hipermidiática se ela estiver fundamentada nesses moldes. Assim, é preciso a instituição de uma digitalização dos meios de comunicação, permitido pelas transformações tecnológicas principalmente as inovações informáticas e das telecomunicações. Outro requisito nas hipermediações é o processo de reticularidade, onde a transmissão da informação é feita de muitos a muitos, não há linearidade no conteúdo e nem em seu processamento. Além destes ainda, a hipertextualidade, onde as estruturas textuais são não-seqüenciais, a multimidialidade que remete a convergência dos meios e linguagens, e por fim a interatividade, que permite a participação ativa dos usuários.
Essa visão em conjunto coloca em debate os sistemas midiáticos e seu desenvolvimento, como uma consequência da digitalização. A aparição desses novos meios de produção de comunicações mais cooperativos, de novos produtos comunicativos hipertextuais e multimídia, e de novas formas de consumo midiáticos mais participativos que os proporcionados pelos meios de massa, favorecem os atributos formadores de meios de comunicações hipermidiáticos. Desse modo, não é possível pensar um meio de comunicação digital que não esteja inserido nesse espectro.
“Nesse aspecto a digitalização tem favorecido a convergência de todo tipo de informação em um único suporte, imagens, sons, palavras… tudo pode ser reduzido a uma massa de zeros e um” (SCOLARI, 2008, p.100 – tradução nossa). Essas caracterizações sobre o processamento dos meios de comunicação digitais permitem algumas reflexões sobre a reconfiguração do radiojornalismo e a sua inserção num complexo midiático de escala industrial, possibilitado pela ótica da convergência, que como especificado anteriormente é a fase atual vivenciada no Brasil (FERRARETO, 2008). Essa reconfiguração coloca por terra a ideia do fim do rádio, com a incorporação dos recursos da internet.
Onde vamos parar?
Prata (2009, p.8), atenta para essas modificações e a conceitua, cunhando o termo radiomorfose. O termo é inspirado em Fidler (1998), que desenvolveu a noção de mídiamorfose. Ela diz respeito às transformações vivenciadas pela escala produtiva da radiodifusão, na incorporação das características das hipermediações, que levam ao processamento de informações em tempos de convergência.
O que se observa para radiofonia é uma diversificação midiática dentro de um mesmo meio de comunicação (dimensão empresarial). Há também transformações nos processos de produção informativas, ou seja, o rádio não emite apenas conteúdos sonoros, mas também vídeos e imagens (dimensão de conteúdo). Outro aspecto da convergência são as modificações profissionais, tradicionalmente o radiojornalista produzia conteúdos sonoros agora ele é multiplataforma e suas produção devem atender a um conteúdo multimídia (dimensão profissional). E por fim, a radiomorfose (PRATA, 2009), ainda se fundamenta sobre hibridações comunicativas, onde uma mesma informação é distribuída em vários canais (dimensão de conteúdo). Tais observações sintetizam o novo processamento das indústrias de rádiofusão sonora e indicam substancialmente as mudanças para a consolidação de um novo modelo de meio de comunicação, o hipermidiático sonoro.
Assim, pode-se pensar em uma resposta possível para o questionamento inicial dessas linhas, se de fato a convergência midiática alteraria o processo produtivo do radiojornalismo? Considerando as observações teóricas e metodológicas descritas, é possível sim, identificar uma mudança produtiva nas indústrias de radiodifusão sonora, permeada pela convergência midiática. Na atual fase o rádio oferece uma variedade de produtos comunicacionais, que não contém apenas som, mas imagens (móveis e estáticas), infografias, enquetes, e uma gama de ferramentas interativas e não apenas o aparelho de telefone do modelo tradicional, entre outros.
Testemunha ocular da história
O que se percebe é que a radiofonia utiliza a internet para transmitir seus conteúdos e atualiza o modelo de rádio do seu formato tradicional. A programação deixa de ser apenas sonora e adquire elementos das hipermediações. Também assume a Fase da Multiplicidade da Oferta (BRITTOS, 2002), já que deixa claro o interesse pela expansão e busca de novos públicos com a segmentação de conteúdos. Além disso, formatação assumida pelo sistema radiofônico, nesse viés tecnológico, deve ser posicionada a partir dessa lógica de reconfiguração do mercado global. As empresas de radiodifusão se encaixam nessa angulação político-econômica que coloca as indústrias de todo mundo em contato. As companhias de diversos portes, tradicionais ou não, circulam em âmbito global, o capital financeiro, também nos negócios da cultura, movimento que inclui o rádio. (BRITTOS, 2002, p.32). Essa circulação de capital, mas também de conteúdos coloca a inclusão de novos atores e aporta o surgimento de novos formatos produtivos, que consequentemente fomentam novos consumidores, e acarreta logicamente uma maior competitividade entre empresas.
No entanto mesmo as hipermediações provocando uma substancial mudança nos modelos produtivos da radiodifusão, seria determinista em demasia, atribuir todas essas transformações as mudanças tecnológicas das TIC’s, ou a lógica de mercado. É relevante salientar que as modificações na cultura do radiojornalismo, bem como dos demais meios de comunicação que se encontram enviesados pela perspectiva da convergência se dão nas múltiplas dimensões descritas neste espaço.
Por causa dessas múltiplas interfaces, a fase da convergência radiofônica ainda está se constituindo, e muito de suas características podem nem se consolidar. Ou, a transformação será tamanha que, quem sabe, não surja por aí um robozinho virtual, repetindo que é a testemunha ocular da história.
Bibliografia
BRITTOS, V. C. “O rádio brasileiro na fase da multiplicidade da oferta”. Verso & Reverso, São Leopoldo: Editora da Unisinos, ano 16, n. 35, p. 31-54, jul.-dez. 2002.
FERRARETTO, L.A. “Uma proposta de periodização para a história do rádio no Brasil”. In: Revista de Economia Política de las Tecnologias de la Informacíon y de la Comunicacíon. (Epitic online) Vol. XIV, n.2, May-Ago/ 2012.
FERRARETTO, L.A; KISCHINHEVSKY, M. “Rádio e convergência: uma abordagem pela economia política da comunicação”. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 17. nº 3, p. 173-180, 2010.
FIDLER, R. Mediamorfosis: comprender los nuevos medios. Buenos Aires: Granica, 1998.
KISCHINHEVSKY, M. “O rádio sem onda – Convergência digital e novos desafios na radiodifusão”. Rio de Janeiro: E-Papers, 2007
PRATA, N (Org.). Panorama do Rádio no Brasil. Florianópolis: Editora Insular, 2009.
SCOLARI, C. Hipermediaciones. Barcelona: Gedisa, 2008.
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[Thays Helena Silva Teixeira é jornalista e aluna no Programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí (UFPI)]