Thursday, 12 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Algumas questões do jornalismo

“O caso conto/ como o caso foi:/ ladrão é ladrão,/ boi é boi.”

Conheci essa quadrinha em um livro de jornalismo escrito por um autor da região Nordeste (agora não me recordo o nome) e nunca mais me esqueci dela. Podemos tirar desses versos uma preciosa lição de reportagem: contar a história de maneira simples, clara, direta, com as palavras que a definem.

Tem outra “lição”, esta meio no sarro, deixada por Rubem Braga. Pensando na imprensa escrita (que era a mídia de seu domínio), respondeu à pergunta sobre como se faz uma boa reportagem da seguinte maneira: “Começa com maiúscula, termina com ponto final.”

Jornalismo é uma área que é enjoada de teorizar. Depois que os americanos fizeram aquela fórmula do 5W + H (What, Who, Where, When, Why e How) parece que teoria no jornalismo está mais na prática mesmo. É ler (ver, ouvir) os bons e correr atrás.

Eu sei de uma regra bem cruel: jornalismo é uma ocupação de um mercado de trabalho restrito, de muita concorrência e competitividade. Só sobe quem abre seu caminho arranhando a pedra do muro com a unha. Às vezes, sangra; moleza é que não tem.

A outra banda

Soube uma vez de aula interessante numa escola de jornalismo inglesa. O professor colocou a turma sentada diante de um carneiro amarrado (o animal não podia se mexer), visto lateralmente, e pediu que o pessoal o descrevesse. Todos escreveram que era um carneiro marrom, com bastante lã, macho, de chifres assim-assado, saudável, enfim. Alguns mais informados deram a raça e a posição do bicho perante o plantel ovino inglês.

Por certo uns escreveram melhor que outros, mas o professor deu zero para todo mundo. Nenhum apontou que seu relato correspondia à visão que tinha do carneiro olhando-o “deste lado”, sem compreender o animal inteiro. A “parte oculta”, a outra banda dele, podia estar raspada, ferida, com fratura de perna, e isso mudaria toda a realidade em torno do objeto.

Posição privilegiada

Fui um tempo professor da escola de Jornalismo do Objetivo (atual Universidade Paulista – Unip), na Av. Paulista, aquela dos anos 1970 que depois fechou. Na minha nada insuspeita opinião, foi a melhor escola de Jornalismo que o país já teve. João Carlos Di Genio, o dono do Objetivo, pôs em prática uma ideia simples: para a “parte geral” (Sociologia, Filosofia, História etc.) recrutou os melhores professores que tinha em sua organização. Para a parte de Jornalismo, chamou alguns dos melhores jornalistas de São Paulo naquela época: Miguel Jorge (depois diretor do Estadão), Woile Guimarães (que fora Secretário da Folha de S. Paulo e viria ser Diretor do Jornalismo da Rede Globo por muitos anos), Sérgio de Souza e Narciso Kalili, nomes emblemáticos da equipe da revista Realidade e alguns menos votados.

O pessoal que tinha a “pedagogia e a didática” (os professores) passava para os jornalistas fundamentos da mecânica de uma sala de aula, e a bola rolava. Aula não tinha, pelo menos não aquela aula tradicional; tudo era feito à base de seminário. Um tema era proposto, distribuía-se um texto básico (de livro) sobre aquilo, a turma tinha um tempo para ler e, depois disso, abria-se a discussão em grupos, com possibilidade de interação com um ou mais professores. No fim (ou no dia seguinte) cada um vinha com uma redação sobre como tinha entendido o assunto e punha seu ponto de vista diante da classe, tendo de defendê-lo caso dissesse abobrinha.

Não sei se há forma melhor de encarar uma aula de jornalismo, que tanto depende de texto, seja para assimilar, seja, depois, para descrever. Além de não haver aula de “passação” de regra (para não dizer uma palavra feia), cada professor-recruta (os jornalistas) podia pedir ajuda a um professor de verdade caso tivesse ideia de fazer uma aula “diferente”.

Foi assim comigo: queria fazer um exercício prático de observação, que é tão importante para o jornalista, de um jeito que os alunos nunca mais esquecessem. As salas no Objetivo eram tipo anfiteatro: estudantes ficavam na arquibancada em semicírculo e o professor sobre um estrado mais alto. Entre os dois, um largo corredor com duas portas. Uma ficava à direita, outra à esquerda do estrado. Comecei a comentar qualquer coisa da aula anterior, quando, estrepitosamente, surgiu, na porta da esquerda, uma mulher chorando e pedindo socorro: “Ele quer me matar, ele quer me matar”. Logo em seguida um homem, de bigode, com um canivete na mão, apareceu em perseguição, a uma distância que jamais a alcançaria.

A classe alvoroçou. Um estudante que era Sargento do Exército movimentou-se como para pegar o malfeitor. Uma menina disse que ia desmaiar, foi aquele tititi.

Então eu disse: “Atenção, atenção! Não tem ninguém querendo matar ninguém, são artistas de teatro amador que vieram fazer essa encenação. É uma aula. Cada um, agora, deve pegar um papel e descrever a cena que acabou de ver. Depois, a gente toma um café com os artistas.”

Todos fizeram sua redação. Levei para casa e fiz uma decupagem, com porcentagens de cada item observado. Ninguém viu canivete nenhum na mão do agressor, mas sim punhal, peixeira, adaga e até uma meia espada. O moço, que só tinha bigode, virou um barbudo. Praticamente ninguém acertou a combinação calça-blusa da vítima.

Na aula seguinte, fiz um resumo do resultado, observando que os alunos estavam numa posição privilegiada para observar a cena (sem ninguém na frente, sem barulho de fora, comodamente sentados) e, mesmo assim, cada um, praticamente, a viu de um jeito. Imagine a discrepância quando a cena a ser descrita não oferecer condições tão favoráveis…

Assim, cuidado! Na hora que for escrever profissionalmente não confie tanto em si próprio.

Papa fina

Este livro reúne jornalistas históricos do Brasil, com tanto jeito e estilos diferentes para contar uma história, mas sempre a contando bem. São jornalistas que passam o que é importante, a emoção. A todos, tiro meu chapéu, reverentemente, e de alguns tenho inveja escondida… (mas sem maldade).

Alguém dirá que tem muito jornalista bom que ficou de fora. Pode ser, certamente é. Mas ninguém vai dizer que nesta relação dos Mestres da Reportagem tem algum cabeça-de-bagre.

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Um livro para todos que valorizam o ofício de repórter

Patrícia Paixão

Injustiças e situações angustiantes da nossa realidade foram barradas incontáveis vezes pela força da reportagem. Casos de corrupção e exploração nos mais diversos âmbitos vieram à tona, feridas sociais foram denunciadas e puderam ser combatidas, presidentes que não fizeram jus ao cargo foram derrubados. Tudo por conta do idealismo de um repórter que abriu mão de dias, meses e até anos de sua vida particular para levar a verdade à população.

Reportagens também já deram luz àquilo que temos de melhor: relevantes descobertas científicas, exemplares atitudes de governos, projetos de instituições privadas e entidades do terceiro setor e da sociedade civil, além das belezas, sonhos e particularidades da vida e do coração de milhares de seres humanos que, como diz o “príncipe dos repórteres” José Hamilton Ribeiro (autor do prefácio desta obra), são a melhor matéria-prima do Jornalismo.

Apontando maus ou bons exemplos, a reportagem tem colaborado para a documentação da nossa história, para que futuras gerações conheçam nossos méritos e deméritos, podendo se prevenir contra a repetição de nossas falhas e se inspirar em nossos acertos, construindo um mundo melhor.

Por tudo isso, esse gênero costuma ser classificado como a “alma” do jornalismo, a única coisa que vale verdadeiramente a pena na nossa profissão.

E foi justamente com o objetivo de destacar sua importância para todos os que têm interesse na área jornalística, em especial para os futuros profissionais, que lancei em 2011 para os meus alunos dos 4º e 6º semestres de Jornalismo da FAPSP (Faculdade do Povo) o desafio de produzirmos Mestres da Reportagem, um livro no formato de entrevistas pingue-pongue, que traz grandes repórteres brasileiros falando sobre o papel da reportagem na nossa sociedade (essa é a segunda obra que organizo em parceria com meus discentes. A primeira foi Jornalismo Policial – Histórias de quem faz, lançada em 2010, com meus ex-alunos da Uniban Brasil – atual Anhanguera Educacional).

Com total apoio e entusiasmo da Coordenação Acadêmica do curso e das Direções Acadêmica e Geral da faculdade, partimos, então, para a implementação do projeto, que fez parte da avaliação da disciplina Técnicas de Pesquisa, Reportagem e Entrevista Jornalística, por mim ministrada.

Ética, persistência

Na lista de entrevistados para Mestres da Reportagem, tivemos a preocupação de escolher jornalistas de diferentes mídias (impressa, eletrônica e digital) e editorias (Política, Esportes, Internacional, Geral, entre outras), com a condição que atuassem prioritariamente como repórteres. Não nos interessou entrevistar editores, chefes de reportagem, âncoras de telejornais ou apresentadores de programas jornalísticos. Não por menosprezo a esses cargos, mas simplesmente pelo fato de estarmos focando a obra na arte da reportagem. Nosso objetivo foi selecionar jornalistas que têm/tiveram reconhecida experiência na função de repórter, tendo consciência de que vários profissionais gabaritados do jornalismo brasileiro, inclusive excelentes repórteres, ficaram fora da lista dos 30 nomes escolhidos.

Não tivemos a pretensão de classificar quem são os 30 melhores repórteres do país, mas sim de trazer um pouco do que a reportagem brasileira tem de melhor. Alguns dos entrevistados são jovens repórteres, mas que já se destacam na função. São “Mestres” não pelos anos acumulados no jornalismo, mas pela paixão e idealismo com que fazem reportagem.

Vencidos o medo de não conseguir o aceite do entrevistado e a insegurança de pela primeira vez ficar frente a frente com um jornalista renomado, os estudantes partiram para as entrevistas com Adriana Carranca, Agostinho Teixeira, Bruno Garcez, Carlos Wagner, César Tralli, Cid Martins, Eliane Brum, Elvira Lobato, Ernesto Paglia, Geneton Moraes Neto, Gérson de Souza, Giovani Grisotti, Goulart de Andrade, José Arbex Jr., José Hamilton Ribeiro, Leandro Fortes, Luiz Carlos Azenha, Marcelo Canellas, Marcelo Rezende, Mauri König, Paula Scarpin, Percival de Souza, Regiani Ritter, Renato Lombardi, Ricardo Kotscho, Roberto Cabrini, Silvia Bessa, Sônia Bridi, Tatiana Merlino e Valmir Salaro.

Felizmente, foram muito bem recepcionados por esses profissionais. Interessante como a humildade é realmente uma qualidade presente nos verdadeiros repórteres. Todos esses grandes nomes do nosso jornalismo receberam meus alunos com carinho, atenção e respeito.

Após cada entrevista realizada, olhos brilhantes e bocas inquietas (para o meu orgulho!) me procuravam para contar o quão especial foi ter tido uma verdadeira aula de reportagem com o profissional entrevistado. E realmente esse livro traz 30 aulas sobre como ser um bom repórter, só que no formato de entrevistas.

Mestres da Reportagem também é um livro sobre os bastidores de produção das principais matérias desses jornalistas, o que o torna interessante não só para quem atua ou deseja atuar na área, mas para o público em geral. Afinal, quem não gostaria de conhecer em detalhes as técnicas que Roberto Cabrini utilizou para descobrir em 1993, em Londres, o então foragido PC Farias (Paulo César Farias, tesoureiro da campanha de 1989 do ex-presidente Fernando Collor de Melo e personagem-chave do escândalo que levou à abertura do processo de impeachment)? Ou as estratégias que o mestre Goulart de Andrade traçou para ganhar a intimidade de entrevistados muitas vezes polêmicos e arredios, como quando desvendou a vida dos travestis na noite paulistana em 1985? Ou ainda que dilemas éticos Eliane Brum enfrentou ao fazer a emblemática reportagem que acompanhou os últimos 115 dias de vida de uma senhora que estava com um câncer incurável?

Essas são apenas algumas das curiosidades de bastidores que podem ser encontradas nesta obra.

Na comparação das falas dos entrevistados, o leitor também poderá conferir interessantes consensos e dissensos sobre algumas questões básicas da área de reportagem.

Vários profissionais falaram, por exemplo, sobre a importância de o repórter não ficar preso à pauta, saindo da redação disposto a apenas confirmar uma ideia preconcebida, ignorando a realidade dos fatos. “A coisa mais saborosa é ser desmentido pelo fato. Não é porque você descobriu que a realidade é diferente do que você pensava que a sua pauta caiu. Pelo contrário! A sua pauta pode ficar ainda mais interessante”, afirmou o jornalista Marcelo Canellas.

Outros, como Gérson de Souza, ressaltaram a necessidade de o repórter contar com bons personagens que possam ilustrar a situação retratada na matéria: “a primeira providência para uma boa reportagem é ter um bom personagem para contar a história. Não adianta chegar ao meio da Amazônia perdida, do lado venezuelano, onde se tem aquele cenário maravilhoso, mas não ter um personagem”.

Curiosidade, persistência, ética e dedicação foram apontadas como qualidades essenciais do bom repórter.

Direitos autorais

Entre as opiniões divergentes, destaca-se a discussão sobre a existência ou não de um jornalismo particularmente investigativo que se diferencia dos demais pelo aprofundamento na apuração dos fatos e pelo grau de envolvimento do repórter. Para alguns entrevistados, todo jornalismo envolve investigação e, portanto, a expressão “jornalismo investigativo” é redundante. Outros acreditam que a expressão é válida já que, na prática, nem todas as formas de jornalismo contam com uma exaustiva apuração dos fatos. “Eu acho que o jornalismo por definição é investigativo. O que acontece hoje é que, devido à correria do dia a dia e a necessidade de informações diárias com prazo de entrega nas redações, o jornalismo se tornou superficial. Então, criaram essa categoria investigativa”, explicou Agostinho Teixeira.

O engajamento político/ideológico do repórter foi outro ponto de dissenso entre alguns entrevistados. Para José Arbex Jr., por exemplo, não é possível fazer jornalismo sem influência política: “Eu, por exemplo, tenho uma influência que vem dos movimentos populares. O que acontece é que você pode escolher qual vai ser a sua influência”.

Já Geneton Moraes Neto aponta o engajamento ideológico como um dos grandes pecados cometidos no jornalismo: “É claro que tenho minhas opiniões políticas, mas lugar de fazer patrulhagem ideológica é na urna, no dia da eleição”.

Mas chega de relevar os atrativos de Mestres da Reportagem.

Esperamos, sinceramente, que este trabalho que fizemos com tanta paixão, carinho e idealismo, contribua para a formação de inúmeros discípulos dos “Mestres” que entrevistamos.

Tenha uma excelente leitura!

>> Observações:

O valor relativo aos direitos autorais dessa obra será cedido à ANDI – Comunicação e Direitos.

O jornalista Caco Barcellos chegou a ser entrevistado pelas estudantes Cínthia Melo, Lúcia Armelin e Priscila Moreira, mas só autorizou a publicação da entrevista no ambiente acadêmico. (Patrícia Paixão é jornalista e professora da FAPSP – Faculdade do Povo, organizadora de Mestres da Reportagem)

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[José Hamilton Ribeiro é jornalista]