Três anos antes de Jimmy Savile, um dos apresentadores mais populares do Reino Unido, ter ficado sob suspeita pública mundial como pedófilo, a polícia enviou a promotores um arquivo investigativo, por e-mail seguro e por entrega, detalhando quatro acusações de abuso sexual contra ele.
Os documentos confidenciais, reunidos de 2007 a 2009, continham declarações de testemunhas e “evidências sólidas e significativas”, segundo um ex-funcionário da polícia de Surrey que conduziu a investigação de dois anos sobre Savile. Recentemente, em meio a acusações de centenas de mulheres e de pelo menos dois homens de que ele usou sua fama e influência como uma proteção para abusar deles quando crianças, o Serviço de Procuradoria da Coroa declarou, em nota, que o caso foi deixado de lado porque testemunhas cruciais recusaram-se a testemunhar e porque havia “evidências insuficientes para um pedido realista de condenação”.
Entretanto, de acordo com esse funcionário da polícia, aqueles que investigavam o caso acharam que os promotores estavam hesitantes em confrontar um homem que passou décadas construindo um culto de celebridade no Reino Unido que poucos atingiram, que estava nos horários mais nobres da BBC e tinha em sua rede de contatos amigos importantes do empresariado, do Parlamento e da realeza.
Erro crucial
Mesmo com a suspeita do comportamento de Savile ao longo de décadas e da sua própria admissão, na sua autobiografia, de que ele gostava de meninas novas, a decisão da procuradoria, em 2009, foi um dos erros que permitiu que ele escapasse de uma investigação legal. Antes de ele morrer, no ano passado, sete investigações policiais haviam começado sobre suas atividades sexuais, mas as diversas forças policiais do Reino Unido não foram capazes de fazer as ligações dos fatos, em especial porque um banco de dados nacional de crimes só entrou em operação plena em 2010. Os jornais, com medo das leis mais rígidas contra a calúnia no país, optaram por não publicar suas suspeitas, embora diversas publicações tivessem realizado investigações próprias durante anos.
Durante esse período, Savile fazia amizade com policiais que encontrava em eventos comunitários, encontrando-se regularmente com muitos deles em seu apartamento em Leeds, segundo o The Times of London. “A maior parte dos policiais que frequentavam o 'clube' na casa de Savile era da polícia de West Yorkshire, que está investigando agora as acusações de que ele abusou de crianças enquanto era voluntário da Enfermaria Geral de Leeds”, escreveu o jornal.
O comportamento do apresentador continuou, apesar de uma série de episódios sexuais publicamente conhecidos e de outros sinais que envolviam jovens, incluindo uma ocasião em que ele passou a mão em uma garota em um programa ao vivo. Ainda assim, ele ficou impune por muito tempo, comentam John F. Burns e Ravi Somaiya [The New York Times, 2/11/12].
Estrela sem paralelos
Poucos homens no Reino Unido atingiram a fama de Savile. Ele tinha cabelos descoloridos até os ombros, adorava cordões e anéis de ouro e tinha diversos Rolls-Royce com placas personalizadas com suas iniciais. Seus programas atraíam mais de 20 milhões de telespectadores e também convidados como Elvis Presley e Muhammad Ali, em um período em que a população do país era de 50 milhões de pessoas. Dois documentários em sua homenagem, exibidos pela BBC semanas antes de sua morte, enfatizaram o alcance de sua celebridade, com imagens suas e do papa João Paulo II e da rainha Elizabeth II.
Na opinião de Anne-Marie McAlinden, especialista em abusos sexuais da Universidade de Belfast, Savile usou sua influência para cativar as vítimas e também toda a sociedade. “Ele não abusou apenas de sua posição de confiança e autoridade, que foi amplificada porque ele era uma celebridade, mas também estendeu isso para toda a BBC e para a imprensa”, comentou. Para Alicia Alinia, advogada que representa 30 mulheres e homens que supostamente foram abusadas por ele por um período de cinco décadas, Savile encaixa-se no padrão de molestadores de crianças. “Ele abusou quando havia oportunidade para tal e usava sua fama”, afirmou.
“Todos são culpados”
Freddie Starr, comediante que apareceu em diversos programas de Savile e que negou acusações de abusos de crianças, afirmou que todos – a polícia, a imprensa, a BBC – sabiam de tudo. “Todos são culpados. Você pode culpar todos na BBC”, disparou. Na semana passada, Starr, que tem 69 anos, tornou-se a segunda pessoa, depois do cantor Gary Glitter, a ser preso e interrogado pela polícia que está investigando o caso Savile.
No Reino Unido dos anos 1970, havia uma inocência entre os pais e uma confiança inquestionável naqueles que apareciam na BBC, afirmou Vanessa Feltz, apresentadora de TV e rádio. “Se Savile perguntasse aos pais de uma criança se podia levá-la para dar uma volta em seu Rolls-Royce e conhecer seu camarim, eles deixariam sem pensar duas vezes”, disse.
Em diversas ocasiões, a mídia perguntou Savile o que ele achava dos rumores de relações sexuais com crianças, mas ele negava tudo. Os seus abusos e sua influência que o protegia estenderam-se também à família. A sobrinha-neta de Savile, Caroline Robinson, contou ao programa This Morning que quando tinha 12 anos e estava sentado no colo do apresentador, ele a tocou de maneira inapropriada. Ao falar com sua avó, ela lhe disse para não se preocupar, que era “apenas Jimmy”. Ela disse ter sido abusada por ele novamente, quando tinha 15 anos, mas ninguém o confrontou.
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