Estava ainda exercendo a função de coordenador do GT de Televisão, em meados da década de 1990, durante um dos congressos anuais do INTERCOM, quando um gordo e jovem gaúcho, que transpirava muito, na mesma rapidez com que falava e desenvolvia suas idéias, me foi apresentado por Alfredo Vizeu, que integrava o GT. O jovem era Valério Cruz Brittos, advogado, jornalista e professor de comunicação da UNISINOS e já havia trabalhado em redações de jornais, rádio e televisão, tanto no Rio Grande do Sul, como em Brasília, tendo sido repórter e editor de política. A identificação profissional e empatia comigo foram de imediato.
Ele queria ir para Salvador, fazer o doutorado na Faculdade de Comunicação da UFBA, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, onde eu ensinava. Queria saber se eu o aceitaria como orientador. Conversamos sobre o projeto a ser desenvolvido, despertando e aumentando meu interesse e atenção ao que ele dizia, primeiro, porque queria trabalhar com televisão, um dos campos de pesquisa da minha predileção e, em segundo, porque queria abordar exatamente um aspecto então muito novo que era o mercado de televisão por assinatura, tendo em vista que a Lei da TV a Cabo havia sido sancionada em 1995, temática sobre a qual ele vinha trabalhando desde o mestrado, quando defendeu dissertação sobre TV a Cabo, que foi publicada como livro, Recepção e TV a Cabo: A força da cultura local, em 1999, e que tive o prazer de assinar o prefácio. Manifestei interesse em ajudá-lo, mas que antes ele teria que se submeter aos trâmites normais de seleção, o que ele procedeu com excelência, pois de imediato foi selecionado e iniciou o programa de doutoramento tendo sido a mim atribuída a tarefa de orientá-lo devido principalmente à temática do projeto submetido e aprovado.
A partir daí começamos a desenvolver uma relação de amizade extremamente rica, de troca de experiências e de conhecimento, de respeito intelectual, de afinidade pessoal e de empatia, que culminou com a defesa brilhante de sua tese de doutoramento intitulada “Capitalismo contemporâneo, mercado brasileiro de televisão por assinatura e expansão transnacional”, no início de 2001. A nossa amizade continuou anos afora sedimentada na sinceridade profissional e na admiração mutua até o dia em que ele faleceu, em 27 de julho de 2012.
Abarcar o mundo
Ao longo do período de doutoramento, Valério teve oportunidade de evidenciar suas características técnicas, seu comprometimento com o rigor científico, sua capacidade de trabalho e produção intelectual, organização e dedicação aos estudos, interagindo com todos os demais doutorandos e professores do programa. Foi durante o período de doutoramento que ele estabeleceu as bases que o transformaram em um dos mais fecundos pesquisadores brasileiros. Foi durante o doutoramente que ele começou a exibir dedicação e dinamismo, sempre buscando uma forma de publicar um novo texto, estimulando também os colegas. Foi nesse período que ele começou a pavimentar o caminho que ele trilhou com muitas vitórias, apesar dos obstáculos que apareciam, sem nunca temer e deixar de seguir em frente, deixando- nos inúmeras obras que enriquecem a bibliografia da área da comunicação.
Em 1999, como já foi dito, ele lançou o livro Recepção e TV a Cabo: A força da cultura local, baseado na dissertação de mestrado obtido na PUCRS, onde também se especializou em Ciências Políticas e em Economia Política da Comunicação, dedicando a essa área de estudo teórico metodológico o resto de sua vida, deixando um forte e importante legado com a constituição do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS) que ele coordenou com brilhantismo e dinamismo e do qual sou um dos integrantes.
O presente depoimento, neste simpósio, tem o objetivo de caracterizar e apresentar aspectos da relação orientador-orientando e as possíveis influências no processo de produção da tese de doutoramento de Valério Cruz Brittos. De imediato ressalto que o processo de escolha do orientador foi articulada pelo orientando, que já conhecia meu trabalho de pesquisa na área e acompanhava o que desenvolvíamos à frente do GT de TV da INTERCOM. A partir do meu interesse em orientá-lo, estabeleceu-se uma corrente positiva que nos conduziu para o final que desejávamos: fui designado como orientador dele.
A partir de então estabelecemos uma linha de comportamento, comprometimento e de confiança a ser seguida por ambos. A acessibilidade do orientador e orientando deveria ser total e isto foi cumprido à risca, até porque o conhecimento técnico específico na área da pesquisa e a experiência com metodologia da pesquisa que Valério demonstrava dominar já evidenciavam o que eu poderia esperar do trabalho dele.
O meu orientando Valério Brittos foi, durante todo o tempo da FACOM/UFBA, uma pessoa com a qual eu dialogava e aprendia também com seus insights e propostas ousadas de investigação científica. Além de demonstrar muita paciência e disposição para o trabalho, Valério foi um orientando perfeito, um orientando que nunca deu trabalho, um orientando, posso afirmar, que todo professor orientador gostaria de ter. De uma simplicidade e cavalheirismo exemplar, Valério mantinha um comportamento pessoal, que pode ser classificado como timidez, mas que era uma característica de sua educação cristã e do exemplo dos pais, Sr. Odemar e dona Lucia Brittos, e do apoio de sua esposa Tatiana, fundamental para superar a ansiedade que geralmente toma conta de alguns doutorandos.
Valério nunca faltou aos encontros formais de orientação, nem tampouco aos outros que promovíamos informalmente, fora do ambiente da Universidade, até porque eu procurava tratá-lo como sempre tratei todos os meus orientandos, ou seja, da mesma maneira como fui tratado por meu orientador na Universidade do Texas, prof. Dr. Emile McAnany, sem qualquer atitude ou posicionamentos autocráticos tão em voga nas relações entre orientador e orientando. Acredito que atitudes como essa, por parte do orientador provoca no orientando sentimento de segurança, e outros aspectos positivos que vão influenciar no processo da construção da dissertação ou tese.
Mas, o papel do orientador não se limita a isso, pois tem o dever de realizar leituras críticas, apontando incoerências ou a necessidade de uma maior fundamentação teórica ou de argumentos mais claros. Em nossos encontros formais, discutíamos os textos, indicávamos caminhos a serem seguidos ou os pontos que precisavam ser mais detalhados. Valério e eu dialogávamos, trocávamos idéias em busca de melhor esclarecer os pontos de vista dele. Como resultado desses diálogos ele construiu e defendeu uma excelente tese de doutorado que naturalmente recebeu a influência de inúmeros outros leitores e colegas, pois sempre, como orientador, adotei a posição de que o trabalho é do orientando, uma tese ou dissertação, não é um trabalho em parceira com o orientador nem tampouco uma extensão das pesquisas dele.
E exatamente por isso meus orientandos, inclusive o Valério, sempre foram instruídos a falar e a expor suas idéias e projetos, o máximo possível, para outras pessoas, com o objetivo de trocar idéias, trocar experiências e amadurecer os próprios argumentos, para não ficar limitado apenas à opinião crítica ou cordata do orientador. Com o dinamismo que lhe era próprio, Valério soube construir uma verdadeira rede de pesquisadores da área, no Brasil e no exterior, com os quais trocava informações e depois debatíamos as sugestões e as que melhor se encaixavam no trabalho dele, sem perder de vista que os Programas de Pós-Graduação têm prazos definidos e que o orientando tem que cumpri-los, cabendo ao orientador o papel de não deixá-los querer abarcar o mundo com dois braços, focando nos objetivos propostos pelo trabalho do orientando. E nisso, Valério foi perfeito, estava sempre focado sem se deixar desviar ou ser atraído por outros assuntos que iam surgindo paralelo à sua pesquisa principal.
Pesquisador produtivo
Fazendo parênteses, devo também esclarecer aqui que não existe um modelo de orientação a ser adotado coletivamente, pois cada caso, cada orientando é uma pessoa diferente que precisa ser tratado de acordo com suas qualidades ou carências e dentro do projeto proposto. Digo isto porque no processo de orientação temos procedimentos e normas a serem cumpridos, mas a maneira como efetivamente orientamos vai depender da qualidade e do conhecimento técnico de cada orientando e do grau de dificuldade de execução de cada projeto. Nenhuma orientação ou orientando pode ser comparado a outro. Cada um deve ser tratado como peça especial e única. E Valério foi um orientando especial, daqueles que deixam saudade.
O papel do orientador é o de aconselhar, direcionar o pensamento do orientando de maneira a permitir o crescimento e o amadurecimento dele, sem imposições autocráticas. Como orientando Valério era flexível, vivaz e possuidor de uma astúcia impar para argumentar e defender seus pontos de vistas em textos limpos e bem escritos, pois tinha perfeito domínio vocabular, como bom jornalista que foi, e um estilo leve e direto de expor os fatos e dados.
No processo dos estudos de pós-graduação espera-se que os Programas formem pesquisadores independentes, mas no caso de Valério, ele já ingressou no Programa de Comunicação e Cultura Contemporâneas da FACOM/UFBA com todas as qualidades e virtudes de um pesquisador nato, que demonstrava que conhecia, e bem, o caminho da autonomia científica. Parecia que ele estava ali apenas para cumprir o ritual da titulação que passou a ser exigida nas universidades e ele tinha muita pressa em realizar e executar projetos. Aliás, em sua vida acadêmica profissional ele foi coerente consigo mesmo, parecia ter muita pressa, como se o tempo dele fosse curto, e graças a ela nos deixou uma produção de conhecimento exemplar, que em muito enriquece o campo da comunicação.
Valério dominava bem o conhecimento processual (teoria, literatura, metodologia, analises, etc.) e demonstrava claramente suas pretensões de se transformar em um multiplicador de conhecimento, passando, pouco depois de concluído seus estudos, a coordenador de Programa de Pós-Graduação e a exercer a orientação de novos e futuros pesquisadores, procurando forçá-los, no bom sentido, a ter a mesma fé, bravura e capacidade de produção que ele tinha e que serviram de exemplos a muitos de seus orientandos. Que o digam seus orientandos, a exemplo de minha amiga, a professora e doutora Jacqueline Dourado, também participante deste simpósio.
Destaco ainda no orientando Valério um pesquisador extremamente motivado, objetivo, curioso, entusiasmado com o que fazia e que gostava do que estava sendo feito. Ele tinha a ambição de construir uma excelente tese, um trabalho consistente e que servisse de referência. E ele conseguiu mais do que isso, pois além de seus trabalhos serem respeitados e citados, ele mesmo, como pesquisador e pessoa, passou a ser referência na área. Durante todo o tempo de vida, desde que conheci Valério, como orientando e depois como pesquisador atuante na academia, ele sempre manteve a mesma dedicação ao trabalho, com muita disciplina, senso crítico, independência e autoconfiança. A soma de tudo isso foi que fez dele a pessoa admirável e agradável que sempre foi, apesar de ter sido também um professor-orientador exigente, sem ser intransigente.
Valério construiu um caminho exemplar na academia e seu legado haverá de permanecer, pois a importância dele para o campo comunicacional extrapolou as fronteiras nacionais, transformando-o numa de nossas maiores lideranças no campo da Economia Política da Comunicação, que neste ano de 2012 está comemorando 25 anos como campo específico de pesquisa aqui no Brasil. No entanto, foi no início da década de 1980, quando ainda nos Estados Unidos, cumprindo programa de doutoramento, que timidamente comecei a esboçar alguns artigos, apresentados em simpósios e congressos internacionais, a partir de uma abordagem que depois se transformou na área da Economia Política da Comunicação. Na época, analisava a influência da publicidade, os efeitos da globalização no desenvolvimento da mídia e o controle econômico exercido sobre os meios de comunicação, determinando o crescimento ou fracasso do setor. Dentro dessa perspectiva, em 1984 apresentei um trabalho na INTERCOM e que foi publicado no ano seguinte por José Marques de Melo,organizador do livro intitulado Comunicação e Transição Democrática [MARQUES DE MELO, José (org.). Comunicação e Transição Democrática. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, pp.62-70]. Talvez tenha sido o meu interesse também pelo objeto de estudo da Economia Política da Comunicação, dentro de uma abordagem histórica, que facilitou minha aproximação com Valério Cruz Brittos.
Quero concluir este depoimento afirmando que o orientador se gratifica com o trabalho final de seu orientando e com os laços do Colégio Invisível construídos ao longo dos estudos de pós-graduação e que permanecem para toda a vida. O orientador se gratifica quando seus ex-orientandos começam a brilhar e a realizar proezas no mundo acadêmico, se destacando como o fez Valério, considerado como um dos pesquisadores mais produtivos do país e pelas ações e projetos que construiu e executou. E nesse caso, tenho a honra de dizer que foi muita sorte de minha parte ter tido Valério Cruz Britos como meu orientando.
Que Deus o tenha, amigo!
***
[Sérgio Mattos é jornalista diplomado pela UFBA, Doutor em Comunicação pela Universidade do Texas, Austin, Estados Unidos e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Dentre os livros de sua autoria destacam-se: História da televisão brasileira; uma visão econômica, social e política (Vozes, 5ª Ed. 2010); Mídia Controlada: a história da censura no Brasil e no mundo (Editora Paulus, 2005); O Contexto Midiático (IGHB, 2009); O Guerreiro Midiático – biografia de José Marques de Melo (Vozes, 2010)]