Grande Sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa, é romance pactário do começo ao fim, assim como do começo ao fim, numa estrutura narrativa em que o fim é o começo, ser pactário está relacionado com a defesa do dispositivo ficcional, entendido como afirmação da vontade humana, que a si mesma se inventa à medida que pactua com o improvável, o inverossímil, os impossíveis da e na vida, sem se adaptar, portanto, ao constituído, ao dado, ao proto e acabado – à realidade, enfim, esse fracasso do homem, como disse alhures o escritor argentino Julio Cortázar.
Em Grande Sertão: veredas, o pactário, o próprio romance, é aquele que pactua com o múltiplo, a multidão; com demo sem cracia, sem poderes, divinos e terráqueos, produzidos, no plano do realismo, da realidade, para domesticá-lo, domá-lo, controlá-lo, assassiná-lo, o povo, porque demo sem cracia é a multidão-povo desgovernada, livre, portanto, para pactuar-se com as ficções dos impossíveis: os futuros que estamos convocados, enquanto vivos, a escrever, porque o sertão, com suas veredas, “está em toda a parte” (ROSA, 2001, p24); em toda a arte, enfim, quando agitada pelo litígio democrático do “demônio na rua, no meio do redemoinho” (ROSA, 2001, p.114).
Estar, no entanto, livre desgovernadamente para agitar, no meio da rua, o futuro, demo por vir, só é possível se o pactário muda – e a si mesmo se muda – sua relação com a verdade, deixando de lado as verdades preestabelecidas, as verdades ditadas pelo passado opressor, pela lei, pela tradição, pelo patriarcado, pela dominação étnica, de gênero, de classe, de modo a abraçar as verdades que são produzidas do presente para o futuro, sempre em processo, de caso a caso, de acontecimento a acontecimento, pela singela razão de que demos, a multidão, o povo, não é uma massa homogênea, mas uma proliferação de verdades-povo, constituindo-se como verdade e como povo à medida que constrói seu destino, sem se atar ao império do passado, do antes.
Princípios éticos
O pactário é, por sua vez, aquele que constrói a verdade – a ficção – através de um triplo movimento simultâneo: 1) ele é pactário porque não tem compromisso com as verdades preestabelecidas – chamemo-las de verdades a priori; 2) ele é pactário porque produz verdades que são as mais justas precisamente porque são aquelas que se opõem ao império da lei ou do a priori de certo contexto histórico (como o à priori do sertão jagunço, onde prevalece a lei do mais forte), sempre e quando o a priori – as verdades ou saberes preestabelecidos – é usado para impedir demos, o povo, de produzir seu desgovernado destino de povo livre; 3) ele é pactário porque produz verdades no plano de oa posteriori, logo do presente para o futuro, experimentando cada situação e, portanto, acumulando experiência de liberdade, infinitamente.
Chamemos de experiências de liberdade aquelas produzidas através da oposição, da recusa, do questionamento e da não submissão, portanto, às verdades preestabelecidas, as verdades a priori, principalmente quando usadas para impedir (em nome da lei, de Deus, do rigor, do saber, do lucro, do bom gosto, do sangue azul, de transcendências) demos, ou o povo, de produzir livremente, com justiça, seu destino coletivo;
Chamemos de experiências a posteriori, pois, demos sem cracia, sem poderes à priori para oprimi-lo, domesticá-lo, idiotizá-lo, assassiná-lo;
Chamemos de poderes justos, legítimos, a todo e qualquer poder – empoderamento de demos – que é constituído no plano de o a posteriori, logo como poder experimental, produzido, sem se produzir como verdade a priori, ao questionar toda verdade a priori, quando esta sufoca demos, o povo);
Uma dada verdade a priori, produzida para sufocar, assassinar, humilhar, oprimir, demos, o povo, está no geral comprometida com outras verdades a priori que têm o mesmo objetivo: sacrificar demos, o povo;
Uma dada verdade a posteriori, produzida em consonância com as demandas de justiça e de liberdade sem fim de demos, o povo, é, no geral, solidária com outras verdades afins.
Cada época tem suas verdades preestabelecidas
Em Grande sertão: veredas, o pactário, portanto, é a ficção como escrita investida da experiência a posteriori, razão por que é um romance sobre a ética de demos – e demos, o povo, só pode fundar sua ética, sua demanda por justiças, no plano a posteriori, uma vez que o plano a priori serve para roubá-lo e privá-lo, o povo, de si mesmo, de suas infinitas e múltiplas verdades libertárias. É por isso que o protagonista da narrativa, Riobaldo, quando efetivamente se transforma – ou acredita ter se transformado – em pactário, torna-se em seguida o chefe dos jagunços, sendo designado, pelo personagem Zé Bebelo, como o Urutu Branco.
Riobaldo se torna chefe porque está apto, como pactário, a produzir verdades a posteriori. Logo está preparado, pactariamente, a não partir das verdades preestabelecidas para fundar seu juízo sobre tal ou qual situação, razão por que, podendo, como chefe dos jagunços, matar o personagem Nhô Constâncio Alvez, não o faz, porque sabe que o direito de morte sobre o outro, como o principal a priori ou lei do sertão sem lei, deve ser preterido, caso ele, Riobaldo, queira ser o chefe de demos ou o próprio demos no e do a posteriori sertão sem fim brasileiro.
Fiz toda essa digressão para chegar à seguinte hipótese, a posteriori: cada época tem seus a priori, como verdades preestabelecidas, para impedir demos, o povo, de produzir sua infinita demanda de justiças e verdadeiras liberdades, no plano, claro do a posteriori, o único que cabe e legitima demos, por não ter senão a si mesmo como precária verdade, sem garantias transcendentais, legitimadas por poderes econômicos, militares, simbólicos, jurídicos, midiáticos.
Em nome do minuto de fama
Sob esse, a posteriori, ponto de vista, um importante, senão o principal, a priori de nossa atual época é este: faça tudo – venda sua mãe! – para conquistar um minuto de fama! Matamos, condenamos, humilhamos, traímos e usurpamos, demos, o povo, pelo nosso divino e não menos a priori direito à fama; pelo nosso, enfim, direito à priori de nos tornamos famosos, principalmente, ainda, aparecendo, na TV, como, a priori, o lugar – ou o não lugar – que, a priori, nos colocará no grupo dos bons, dos verdadeiros, dos justiceiros, dos bonitos, dos alegres, dos íntegros, incorruptíveis, saudáveis, desejáveis, os mais belos da espécie humana, sobretudo se o canal de televisão que nos proporciona o nosso a priori minuto de fama for o a priori canal considerado o melhor, o mais interessante, o mais justo, o mais verdadeiro, sério, íntegro: a TV Globo.
No Brasil, é claro, esse canal de televisão é a TV Globo, a priori o principal veículo do nosso a priori desesperado direito à fama, como princípio ou precipício do contemporâneo, usado e abUSAdo para impedir, a todo custo, que o povo produza suas verdades a posteriori, no infinito plano desses grandes sertões veredas do presente e do futuro, a serem, ficcionalmente, inventivamente, verdadeiramente, experimentados, vividos, em liberdade.
É sob esse prisma que é também possível analisar o caso de o a priori julgamento do século, o Mensalão contra o PT, através da condenação não menos a priori pública de, antes de tudo, José Dirceu e José Genoíno, os dois Zé. E agora José? Pois é em nome do a priori direito à fama, do minuto de fama, que os ministros de o a priori Supremo Tribunal Federal – além de outras razões a priori – estão condenando todos os julgados a priori da Ação penal 470.
O a priori da ditadura midiática
É porque já foram condenados pela a priori TV dos brasileiros, a Globo, e também porque estão sendo cooptados pelo a priori holofotes da fama, que a sentença condenatória de todos os réus já estava escrita nas estrelas, dentro dos a priori de justiça inscritos na formação de classe, jurídica, epistemológica dos ministros do STF, marcados que estão por uma proliferação de a priori ou de verdades preestabelecidas sem as quais dificilmente se tornariam ministros do STF.
De qualquer forma, a condenação do PT, através da sentença de morte pública ou de pública morte de seus dois principais Zé, Dirceu e o Genoíno, tem a priori um único objetivo: condenar, evitar, sequestrar, realizar um golpe, enfim, contra o a posteriori direito do povo brasileiro de produzir livremente suas próprias verdades, logo suas – ainda que pareçam a priori impróprias – próprias cenas e ceias: de justiça, de liberdade, de felicidade, de futuro.
Para terminar, ainda que sob o signo aberto de novos começos, não é difícil deduzir que, se o Governo da presidenta Dilma Rousseff tiver algum compromisso verdadeiro com o o a posteriori destino do povo brasileiro, ela está, como Riobaldo de Grande Sertão: veredas, desafiada eticamente a atravessar o nosso Liso do Sussuarão, talvez o mais difícil de atravessar, a saber: o inóspito deserto informativo da ditadura midiática brasileira, sob o nome a priori da TV Globo.
Dilma Rousseff, enfim, se quiser produzir justiças a posteriori, as únicas que realmente contemplam o demos brasileiro, massacrado historicamente por tantos a priori de opressão e humilhação, está desafiada a enfrentar o a priori de que a ditadura midiática brasileira seja o reino cosmológico, escrito nas estrelas, do verdadeiro lugar da liberdade de expressão.
Transforme-se, Dilma Rousseff, em pactária, como a Cristina Kirchner, da Argentina. Esteja preparada, no plano de o a posteriori, a enfrentar o Hermógenes do Brasil: a TV Globo!
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]