Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A guerra das concessões do setor elétrico

Energia cara demais compromete o poder de competição da indústria brasileira. Prejudica as exportações, favorece as importações e dificulta a geração de empregos. Com esse argumento, o governo entrou em campanha para cortar 20% do custo da eletricidade a partir do próximo ano. O plano inclui a renovação antecipada de concessões a empresas do setor elétrico. Com grandes investimentos já amortizados, total ou parcialmente, as companhias poderão reduzir suas tarifas em troca de novos contratos. Mas será preciso indenizá-las pelo resíduo de investimentos ainda sem amortização. 

Tentadora à primeira vista, a oferta resultou em briga quando os números foram apresentados. Além de grandes perdas no mercado de ações, o confronto já produziu uma baixa importante. O representante dos minoritários no conselho de administração da Eletrobrás, José Luiz Alqueres, renunciou ao posto por discordar da compensação oferecida. O conselho aceitou os R$ 14 bilhões propostos, embora isso deva resultar, segundo números da companhia, numa perda de R$ 18,7 bilhões. Outros focos de resistência já haviam aparecido no mercado.

Essa história foi contada, de modo geral, pela imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas só quem leu três ou quatro jornais por dia conseguiu acompanhar todos os detalhes e juntar os pedaços da novela. Na quinta-feira (15/11), todos citaram a renúncia de Alqueres, um nome bem conhecido por já ter ocupado a presidência da Eletrobrás. Em sua carta de demissão, ele acusou o governo de destruir o valor da companhia. O texto foi mencionado nas matérias do Estado de S.Paulo e do Globo. Nessa altura, o ex-representante dos minoritários estava na Noruega, detalhe informado pela Folha de S.Paulo e pelo Globo. A Noruega é a terra do fundo Skagen, detentor de 17,5% das ações preferenciais da Eletrobrás.

Três pontos

Na terça-feira (13), o Valor havia dado manchete com a reação dos minoritários e reproduzido palavras do gestor do fundo norueguês, Knut Harald Nilsson, numa carta enviada ao embaixador do Brasil em Oslo, Flávio Helmold Macieira. Segundo Nilsson, pode-se interpretar a ação do governo como uma estatização forçada do setor elétrico. 

O fundo havia recomendado aos conselheiros da Eletrobrás, também por meio de carta, a recusa da proposta governamental. Esse detalhe foi contado pelo Valor. A reportagem explorou também a decisão do conselho da Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP) de se opor às condições oferecidas por Brasília. Essa decisão, baseada em estudo da Fundação Getúlio Vargas, seria apresentada na assembleia de acionistas marcada para 3 de dezembro.

A reação do governo paulista foi contada pelo Estadão na quarta-feira (14). Entrevistado, o secretário estadual de Energia, José Aníbal, acusou o governo federal de tentar enfiar sua política pela goela de todo mundo. A tarifa média definida para a Cesp, vinculada ao governo do estado, é insuficiente para cobrir os custos de operação e de manutenção.

“Não sei onde esses caras estão com a cabeça”, disse o secretário. “Eles erraram em tudo. Erraram na precipitação do processo, pois tinham de ter feito audiência pública. Agora está essa bagunça toda. Erraram na calibragem e erraram na distribuição dos custos para redução de energia. E ainda tem uma conta de ICMS de R$ 5,5 bi por causa da redução das tarifas”. Ele ainda lembrou a resistência da CTEEP e a intenção anunciada pela direção da Cemig de recorrer à Justiça por causa das condições de três usinas. A solução, segundo o secretário, seria a revisão da Medida Provisória 579, editada pelo governo para estabelecer os termos de renovação das concessões.

No meio da semana o ministro da Fazenda Guido Mantega negou a possibilidade de revisão da MP e reafirmou a disposição do governo de promover o corte de tarifas, em 2013, mesmo sem a adesão de algumas empresas. Se fosse preciso cobrir algum resíduo para possibilitar a execução da política, seria dado um jeito, segundo ele. Faltou indicar as soluções possíveis, mas ele descartou o uso de recursos do Tesouro. Essas declarações apareceram nos jornais de quarta-feira e de quinta.

Na quarta (14/11), no entanto, a Folha de S.Paulo deu destaque à posição mais cautelosa de um conselheiro da presidente Dilma Rousseff, Mário Veiga. Segundo a matéria, ele recomendou “um pouquinho de calma” em relação a três pontos: 1) o prazo até 4 de dezembro para os contratos de renovação pode ser muito curto, porque falta a aprovação da MP no Congresso; 2) faltou levar em conta, no cálculo das indenizações, alguns investimentos em transmissão anteriores a 2000, e isso pode resultar em contestações; 3) alguns contratos – esse é o caso de três usinas da Cemig – previam a renovação e, portanto, esse direito poderia ser reivindicado. Essa matéria acrescentou detalhes especialmente importantes para a compreensão e a avaliação do imbróglio.

Esforço notável

Na quinta-feira (15), o Globo e a Folha de S.Paulo completaram o material do dia com retrancas especiais para recapitular e explicar os principais pontos da história. Na sexta, um box semelhante e mais curto saiu no Estadão. A novela tem detalhes complicados e uma ajuda desse tipo é sempre bem-vinda.

O Globo também lembrou, na edição de quinta, as consequências da briga nas bolsas de valores. Desde o anúncio da política, em 6 de setembro, até 14 de novembro, 31 empresas do setor elétrico perderam R$ 32,3 bilhões em valor de mercado. O jornal manteve o foco nas bolsas, na edição de sábado (17), e relatou a desvalorização de 11,5% das ações preferenciais da Eletrobrás na sexta-feira, no primeiro pregão depois do feriado da Proclamação da República. Na sexta, o Estadão já havia mencionado a possibilidade de demissões na estatal.

Essa confusão envolve um dos pontos centrais da política de desenvolvimento. No caso do Brasil, ainda é preciso levar em conta um detalhe adicional: o custo da energia é um dos grandes entraves à competitividade. A importância do tema é evidente, mas os detalhes são complicados. Além disso, para a maior parte das pessoas não há nada atraente em alguns pormenores, como as discussões sobre depreciação. 

Mesmo histórias importantes são às vezes difíceis de vender ao leitor. Neste caso, os jornais têm feito um belo esforço para informar o público, mostrar-lhe a relevância do assunto e fornecer-lhe um insumo essencial para o exercício efetivo da cidadania. Uma imprensa em ordem unida teria contado uma fração mínima dessa história.

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[Rolf Kuntz é jornalista]