Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As fabulações da mídia

O gaúcho Renato Modernell é desses profissionais que não apenas são capazes de teorizar sobre o chamado jornalismo literário, mas também protagonizam jornalismo e literatura, tornando-se eles próprios objetos de estudo.

Ele é autor de uma dezena de livros, entre os quais o saboroso Em trânsito, um ensaio sobre narrativas de viagem, lançado em 2011 pela Editora Mackenzie, no qual se pode observar como o texto literário aplicado ao jornalismo pode multiplicar o prazer da leitura de uma despretensiosa reportagem de turismo (ver, neste Observatório, “O jornalismo literário no relato de viagens“).

Sua obra mais recente chama-se A fábula como notícia: realidade e ficção se confundem na mídia, publicação conjunta da Editora Mackenzie com a Summus Editorial. O conteúdo básico foi composto em um estudo de mestrado realizado em 2004 na USP, aprofundado posteriormente e que se atualiza conforme os acontecimentos remetem o leitor para o campo das ambiguidades onde o real e o imaginário se entremeiam.

Nesse terreno de inconsistências é que se exerce o poder simbólico do jornalismo, quando o uso de certos recursos de narrativa ou discursivos aumenta ou reduz a temperatura do fato relatado, provocando ou abafando emoções, estimulando ou limitando reflexões.

Modernell é um pesquisador acurado e atento, mas seu texto vem embalado em fino senso de humor, como se pode apreciar no capítulo intitulado “Equívocos cristalizados”, no qual analisa alguns erros da imprensa – entre os quais um de sua própria autoria – que acabam transpondo o leitor de um jornal ou revista para o ambiente ficcional.

(Num texto para a revista Globo Ciência, em 1992, sobre a futura colonização da Lua, ele trocou o nome do astronauta Neil Armstrong pelo do trompetista Louis Armstrong).

Muito além dos risos e do deboche que possam provocar em alguns, observa, a questão é que o erro se transforma em verdade para muitos.

No mínimo, é a verdade daquela edição, que continuará no seu registro original mesmo que haja uma correção.

Numa edição comum de jornal, calcula Modernell, cabem 10 milhões a 12 milhões de palavras, e nesse conjunto é impossível calcular o total dos pequenos lances ficcionais engendrados por erros dos jornalistas.

Da mesma forma que permitem corrigir imediatamente, mas em outra plataforma, certos equívocos – quando eles são identificados –, os novos meios de publicação também contribuem para expandir a informação errada.

As verdades provisórias

O livro de Renato Modernell estimula o leitor a um olhar mais crítico sobre a essência do jornalismo – o pressuposto da verdade objetiva que justifica o fazer jornalístico.

Ao abordar a questão dos “princípios mediadores” do texto jornalístico, conceito usado por Antonio Candido para falar de expressões de realidade na ficção, Modernell inverte a equação ao falar de ficção na matéria jornalística bem realizada.

Um exemplo que ele cita, que soa como homenagem, se refere ao título criado pelo redator Guilherme Cunha Pinto, conhecido pelos colegas como “o jovem Gui”, em abril de 1973. Ele precisava de uma frase curta para anunciar a morte de um dos maiores artistas do século 20, e produziu uma obra-prima: “Morreu Picasso (se é que Picasso morre)”.

Picasso está morto, sua obra permanece. “O jovem Gui” também morreu, ainda jovem, aos 47 anos, em julho de 1996, e a reprodução de um título seu, quase hai-kai, transfere sua memória para o campo dos artistas da palavra.

Também morreu o Jornal da Tarde, onde foi publicado o título que simboliza o melhor que pode o jornalismo quando se apropria da literatura.

Mas nem tudo no campo de ambiguidades criado pelo encontro da realidade com a ficção é deleite. Infelizmente, sob a “convenção da veracidade”, a regra mais comum é a do falseamento, que transforma a mídia na mitologia dos nossos tempos.

Observe-se, por exemplo, a profusão de relatos sobre a crise de violência que atinge São Paulo: quanto de “matéria jornalística bem realizada” poderia brotar desse contexto em que a realidade se confunde com os mais ardilosos artifícios da ficção, ajudando-nos a entender como vivem as pessoas dominadas pelo crime organizado e aterrorizadas pelo arbítrio dos agentes do Estado?

No entanto, o que se vê no jornalismo contemporâneo, pelo menos no que é praticado no Brasil, é a manipulação do fator estético em favor de um resultado ideológico.

É a fabulação distorcendo o real para criar um imaginário conveniente, simplesmente porque o jornalismo não concebe que os fatos concretos com que pensa lidar são apenas “verdades provisórias”.