Por que um homem paga 780 mil dólares por alguma coisa que poderia ter de graça? Esse foi o preço da virgindade leiloada por uma catarinense que mora na Austrália, de acordo com matéria da revista Veja (edição nº 2.296, de 21/11/2012).
A “Carta ao Leitor”, com o título de “Os limites éticos do mercado”, diz o seguinte sobre o leilão da virgindade:
“É um desses episódios que testam as fronteiras do que é aceitável mercadejar. Segundo informa o site dedicado ao leilão, ele foi vencido por um cidadão japonês. O ganhador ofereceu 780.000 dólares. Nesta semana, ele vai cobrar sua prenda em uma complicada operação que, para escapar das leis, obriga que ela seja consumada a bordo de um jato sobrevoando águas internacionais.”
E continua:
“…do ponto de vista do mercado, vender a virgindade não é grande coisa. Se quem vende e quem compra são adultos que agem de livre e espontânea vontade, e nenhum terceiro foi prejudicado, não há por que proibir uma transação desse tipo. Um pensador moral como Kant discorda. Trocar sexo por dinheiro é degradante para ambos os parceiros, pois fere a dignidade humana. ‘O homem não pode dispor de si próprio como se fosse uma coisa; ele não é sua propriedade’, disse o filósofo alemão”.
Turismo sexual
Filosofia à parte, fica a curiosidade: como o comprador japonês vai ter certeza de que não está levando gato por lebre? Nesses tempos de realities shows (que é justamente o caso da catarinense) tudo é possível, inclusive a moça já ter tido experiências anteriores e, por meio de procedimentos médicos, recompor o hímen agora leiloado por mais de um milhão de reais.
Mais importante do que isso, porém, seria discutir o fato de que, enquanto a catarinense conseguiu uma forma fácil de enriquecer, suas conterrâneas do sertão brasileiro são vendidas (ainda crianças) por 10 ou 15 reais. Um leilão desse tipo acaba validando a atitude de pais que vendem suas filhas – contra a vontade delas.
E, pior do que isso, vai fazer com que as meninas passem a sonhar com uma nova carreira. Em vez de top model, o sonho delas vai mudar de rumo. Afinal, uma top model precisa trabalhar muito para conseguir fama e fortuna. Vender a virgindade a preço de ouro é bem mais fácil – como deixou claro Catarina Migliorini, a moça do leilão, em sua entrevista à Folha de S.Paulo (24/10/2012):
“O que eu posso te dizer agora é que o leilão, para mim, é um negócio. Mas não deixei de ser romântica de forma alguma. Acredito com todas as forças no amor. Para mim, não é prostituição. Quando alguém faz uma coisa uma vez na vida, não é considerado dessa profissão. Se você tira uma foto e sai legal, não é fotógrafo por isso.”
Em vez de continuar dando cobertura a essa história, a imprensa poderia prestar um bom serviço aos leitores discutindo o péssimo serviço que esse leilão vai fazer com a imagem da mulher brasileira. Se sem leilão o turismo sexual já é uma preocupação das autoridades, imagine depois dessa história. História, aliás, que será acompanhada por uma televisão australiana, para o documentário Procura-se uma virgem.
Sociedade de mercado
Outro tema que daria excelente matéria seria discutir a quantas anda a liberação feminina e se a virgindade ainda conta na hora do casamento. Se em pleno século 21 a virgindade de uma mulher ainda vale tanto dinheiro é porque muito pouco mudou. Cinquenta anos depois da luta feminista pela igualdade de direitos e tantas conquistas, um hímen intacto ainda um tem muito valor. Ou o valor só foi tão alto porque havia uma emissora televisão envolvida? Será que o cidadão japonês pagou pelo hímen da moça ou pela chance de ter seus quinze minutos de fama?
Como disse o filósofo Michael Sandel à Veja, “passa da hora de abrir um amplo debate sobre o processo que, sem que percebamos, sem que tenhamos decidido que é para ser assim, nos faz mudar de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado”.
Uma sociedade em que a moça pode até vender a virgindade, desde que não haja beijos e carícias. Com toda certeza uma lição aprendida com as honestas prostitutas de antigamente que, segundo o folclore, diziam aos clientes: “Com beijo é mais caro”.
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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]