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Em diálogo com a premissa de que a presença humana na Terra, tendo em vista as grandes civilizações, tem sido absolutamente trágica, porque historicamente tem se realizado através da dominação a um tempo econômica, patriarcal, étnica, epistemológica e um sem fim de outras correlacionadas, no livro Tragédia moderna (2002), o crítico literário, Raymond Williams (1921-1988), define a dimensão trágica como imanente ao arranjo institucional opressor de um dado período histórico – arranjo que por si mesmo, portanto, é trágico e que, em consequência, produz convenções, como a patriarcal, igualmente trágicas.
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Ainda com Raymond Williams, instituições e convenções de antemão trágicas, porque fundadas em uma ordem de opressão, produzem experiências humanas limitadas pela tragédia, razão pela qual, quando agimos segundo a normatividade institucional e convencional dominantes de um dado período histórico inevitavelmente encarnamos o drama histórico do arranjo ele mesmo trágico da civilização que nos cabe viver – caso em que a vontade individual, não sendo livre, porque tragicamente determinada, aciona um sem fim de moleculares tragédias inomináveis, irrepresentáveis, indiferentes, porque tornadas cotidianas, normais.
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Sob esse ponto de vista, torna-se fundamental a distinção entre tragédia e efeitos trágicos. Trágico não é somente a experiência dramática inscrita na vontade individual, sob o nome comum do que fazemos ou não fazemos, do que percebemos e não percebemos, do que sentimos ou omitimos, mas antes de tudo o lugar (as instituições e convenções opressoras) a partir do qual agimos e deixamos de agir. A única saída, assim, para a superação da tragédia de uma dada civilização estruturalmente trágica, está na ação coletiva, sempre e quando esta tem como foco a mudança revolucionária do trágico arranjo institucional e convencional de uma dada época, desarranjando-o para rearranjá-lo sob novos parâmetros, abertos a constantes mudanças e revisões, segundo a necessidade coletiva.
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O que está em jogo na tragédia, portanto, num duplo movimento, é a ação coletiva. Esta sempre existe, pois é sempre através do coletivo que o mundo é o que é. É por isso que a ação coletiva pode ser tanto trágica, quando institui arranjos institucionais e convencionais opressores; como não trágicos, quando produz arranjos institucionais e convencionais baseados na igualdade absoluta de todos os humanos – igualdade que de modo algum é homogeneizante, pelo contrário, porque é ela mesma a condição não trágica da verdadeira diversidade, que é aquela que se inscreve no desafio de que a minha liberdade só é legítima se, ao agir livremente, contribuo para dilatar a livre ação expressiva de outrem. Ser livre, nesse contexto, é ser igualmente – nunca exclusivamente – livre. Qualquer privilégio (de classe, étnico, de gênero, epistemológico), sob esse ponto de vista, é injustificável, execrável, – um princípio ou precipício trágico, porque baseado na desigualdade estrutural de um dado arranjo social fundamentalmente trágico, porque produzido tragicamente através da extorsão da inteligência, trabalho, criatividade comuns.
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Por sua vez, ainda com Williams, enquanto as civilizações pré-modernas produziam trágicos arranjos institucionais vinculados à vontade do soberano, a única que contava, sendo equiparável à dos deuses, a civilização burguesa em que vivemos mudou tudo para não mudar absolutamente nada, porque substituiu o soberano (o rei, o faraó, o sultão, o déspota, Deus) pela figura de uma vontade supostamente auto-determinista, objetiva e impessoal, fundada na ordem intocável do progresso, visto e concebido como o positivo, científico, tecnológico e racional sujeito absoluto das ações de alcance coletivo, cabendo a nós, comuns mortais, o lugar da primeira pessoa da vontade individual, subjetiva, às vezes criativa, irracional, experimental, alegre, autoconfiante, publicitariamente exuberante, sensual, democrática, desde que não nos envolvamos com a suntuosa e fatalista terceira pessoa sem rosto do progresso, cuja ação vale por si mesma, na suposição, que não deixa de ser religiosa, de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa – uma coisa é a vontade auto-determinista do arranjo institucional e convencional do progresso, no mundo burguês, o qual, por ser concebido como a ausente terceira pessoa objetiva, sistemicamente racional, torna-se intocável, inominável; outra coisa, por outro lado, é a vontade subjetiva nossa, de indivíduos portadores de nomes próprios, identificados pelo rosto, pela cor da pele, pelo gênero, endereço, profissão, nacionalidade, sempre “livres”, em tese, para agir em conformidade com o arranjo institucional e convencional do Deus progresso.
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A tragédia do arranjo institucional e convencional da civilização burguesa (na qual estamos mais que afundados, afogados) reside, como efeito, na ilusão de que o espaço da política, o único possível, está circunscrito, para não dizer confinado, no plano da liberdade individual, deixando intocável a terceira pessoa, ausente quanto mais presente, do progresso. Trata-se ao mesmo tempo de uma tragédia e de uma farsa, tal arranjo moderno: trágico porque somos impedidos, nele, de agir coletivamente, pois não podemos mudar o próprio arranjo; farsante porque, na democracia liberal, escolhemos os rostos individuais, para elegê-los ou sacrificá-los, condenando-nos ao horizonte dos efeitos do arranjo trágico do mundo burguês, pela singela razão de que todo indivíduo, seja quem for, isoladamente, não passa de um efeito de efeitos do verdadeiro lugar do poder: a terceira pessoa ausente, racional, objetiva e transcendente do progresso, cuja ação nos envolve a todos, como implacável destino sobre o qual não temos poder algum.
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A democracia liberal é ela mesma, nesse sentido, um arranjo institucional-eleitoral ao mesmo tempo farsante e trágico, porque nela e através dela não escolhemos nunca pôr em discussão o arranjo humano, demasiadamente humano, por excelência da civilização burguesa: a terceira pessoa sem rosto do progresso sem fim, destino dos destinados. A esperteza da estrutura de poder da civilização burguesa deriva do fato de ter montado um arranjo institucional e convencional no qual e através do qual os efeitos trágicos, as escolhas e decisões individuais, tomaram publicitariamente o lugar do próprio arranjo, a terceira pessoa do progresso, produzindo a ilusão de que somos os sujeitos livres de nosso destino social, criativo, amoroso, familiar, subjetivo, razão pela qual tal arranjo possui a seguinte fórmula infinitamente desdobrável ( em todos os planos da civilização burguesa, o econômico, o jurídico, o cultural, o social), a saber: sem rosto, com rosto; ausente, presente, na qual o sem rosto, ao mesmo tempo ausente, é a fatalidade do progresso, a única cujas ações podem ter alcance coletivo, civilizacional; e o com rosto, logo presente, é o indivíduo isolado, o único lugar possível da escolha – de escolher dentro da fatalidade do progresso.
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No âmbito da fórmula do arranjo institucional do mundo burguês, sem rosto e com rosto, a política para valer, entendida como o lugar da decisão coletiva, nunca será realizável, sendo um simulacro de política, uma farsa, para ser mais claro; farsa montada para que fiquemos condenados ao mundo dos rostos, dos efeitos da tragédia burguesa, sem que decidamos de verdade sobre o que importa realmente: o próprio arranjo, o qual, como não tem rosto, não tem sujeito e como não tem sujeito não tem, este é o nosso delírio burguês, como destroná-lo do poder soberano, produzindo o que chamamos de revolução. Uma situação cotidiana que indicia o lugar sem lugar ou o sujeito sem sujeito da terceira pessoa ausente do mundo burguês, a fatalidade sem fim do progresso, inscreve-se na resposta usual de um funcionário de tal ou qual banco, quando tentamos realizar alguma operação bancária e não conseguimos por um motivo qualquer: “O sistema está fora do ar”. Diante de tal resposta, nada podemos fazer, porque o sistema não tem nome, não tem endereço, CPF, não tem, numa palavra, rosto.
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Não obstante, por outro lado, o arranjo institucional e convencional do mundo burguês nos seja apresentado como um sistema sem rosto que, quando questionado, diz-nos que está fora do ar, tal sistema produz rostos, inclusive e antes de tudo o seu rosto ideal, aquele que mais incorpora a imagem publicitária da primeira pessoa presente do mundo burguês, o único rosto, é o que nos dizem, que realmente sabe decidir, criar, amar, viver, ser democrático. Tal rosto é o do estilo americano de vida, o american way of life. Por uma razão muito simples, o american way of life, por ser o estilo de vida produzido no âmbito parasitário da concentração de renda e de poder do arranjo institucional do mundo burguês, cuja premissa é a mais-valia, é o próprio rosto mais-valia – o rosto lucro, do lucro, em lucro, razão pela qual os rostos humanos inscritos no estilo americano de viver são a presença publicitária da ausência determinista do progresso, como contraparte estilizada, portanto, da terceira pessoa racional, objetiva, científica.
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Tudo funciona como se a terceira pessoa ausente do progresso, o verdadeiro soberano da ação coletiva da civilização burguesa, dissesse-nos assim, tal como Deus teria dito no momento do batismo de Jesus, “Eis o meu filho amado a quem me comprazo”, sentença ironicamente ambígua, porque se, por um lado, o estilo americano de vida é o comprazido da terceira pessoa ausente do progresso, o Deus do capital, também comprazer, nesse caso, é indissociável dos genocídios, das guerras, dos abandonos e da pilhagem na vida na Terra, razão pela qual o american way of life, embora nos seja apresentado como o rosto divino da vida em abundância, constitui, a bem da verdade, o rosto tétrico da morte matada, matando, matando-nos, como o implacável parasita-mor do planeta, tal como o ausente rosto da terceira pessoa do progresso; sua cara metade.
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O que põe a vida na Terra em extremo perigo hoje e o que tornou a civilização burguesa o desastre que é, inviável, é precisamente o fato de que a potência destruidora da terceira pessoa ausente do progresso, na sua dimensão sem rosto, tornou-se indissociável de sua cara metade, o estilo americano de vida, o american way of life, de tal maneira que, quanto mais este nos é apresentadocomo o exemplo-mor ou o parasita-mor da liberdade, da bondade, da criatividade, da alegria e da democracia, mais a terceira pessoa ausente do progresso acelera, através de seus mil exércitos (bélicos, culturais, epistemológicos, midiáticos), a destruição da vida, tendo, via-satélite, o próprio planeta como foco de pilhagem e degeneração.
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Esboçar o rosto da terceira pessoa ausente do progresso da civilização burguesa, de tal sorte a torná-lo evidente, surpreendendo-o em flagrante delito de morticínio generalizado, absolutamente bárbaro, sanguinariamente incomparável, é também ou antes de tudo inseparável de sua configuração close-up, o american way of life, o rosto do criminoso-mor, embora, como todo criminoso para valer, jure inocência e mesmo tenha certeza de que o é, inocente, pois não precisa nunca sujar a própria mão para cometer os crimes inomináveis que comete, crimes irrepresentáveis, pela singela razão de que têm uma terceira pessoa ausente belicosa e assassina para comprazer os estupros que comete em seu lugar, sem deixar pistas pessoais, contratuais, razão por que quem paga a conta da guerra da civilização burguesa contra a vida é sempre os danos colaterais, a própria vida geral do planeta, enquanto o rosto do american way of life sorri para a foto.
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A indústria cultural da falida e cínica civilização burguesa constitui-se, a rigor, como o suporte tecnológico desse “sorrir para a foto” do estilo americano de vida, razão pela qual ela é o close-up ou a sociotécnica da mentira da civilização burguesa, produzindo a ilusão ou a sensação de que a terceira pessoa ausente do progresso sem fim, em rosto, é o próprio estilo americano de vida, de tal modo que os 99% dos humanos e 100% dos não humanos não passam de lamentáveis e inevitáveis danos colaterais; uma tragédia que, no máximo, devemos lamentar, enquanto somos ou adoramos o estilo americano de vida, como a santa presença do espírito humano na Terra. Sob esse ponto de vista, quando dizemos que a civilização burguesa se constituiu e se constitui a partir da oposição parasitária homem versus natureza, seria mais preciso se disséssemos: … “a partir da oposição odiosa do american way of life em relação ao planeta Terra”. Para manter, pois, o estilo americano de vida é preciso colocar a própria vida na Terra como dano colateral inevitável, fatal, da civilização burguesa.
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Dessa forma se o progresso sem fim é a terceira pessoa ausente e sem rosto que massacra todo o planeta, ele não pode ser condenado jamais porque efetivamente mata e assassina terceiras pessoas igualmente ausentes, conhecidas como danos colaterais, num contexto em que a única pessoa que se torna efetivamente presente, close-up, é a primeira pessoa do estilo americano de vida. É nesse contexto que faz plenamente sentido dizer que vivemos numa civilização tecnológica, pois a modernidade burguesa se constituiu, alcançou a sua idade senil, tornando indissociável sociedade e técnica, razão pela qual vivemos numa civilização a que podemos chamar de sociotécnica. Esta, tendo a indústria cultural como modelo de realização, produz duas grandes ausências inevitáveis e colaterais e uma única presença close-up, publicitária: 1). a ausência em terceira pessoa da ação totalizadora do progresso; 2) a consequente ausência de seu dano colateral, a do próprio planeta terra como foco de ação do progresso; 3) e a onipresença close-up do estilo americano de vida, presente minusculamente, como casta social, em todos os países do planeta, razão por que nos passa a impressão, e esse é o objetivo, de que é universal, pois tal estilo se amalgamou com as culturas locais e nacionais espalhadas pelo planeta, de tal maneira que é possível falar, hoje, de samba american way of life, sertanejo american way of life, rock brasileiro american way of life, literatura contemporânea brasileira american way of life, para ficar apenas em alguns exemplos produzidos no interior de nossas fronteiras american way of life.
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Se, pois, o que marca a civilização burguesa é o fato dela se constituir como uma sociotécnica perfeita, com suas imagens bem elaboradas, limpas de danos colaterais, é porque o monitor da TV (ou do PC) é, como suporte tecnológico, o lugar da terceira pessoa neutra que efetivamente inscreverá o sorriso não menos estampado do estilo americano de vida, razão pela qual o monitor da TV (ou do PC) se constitui, na atualidade amercan way of life em que vivemos, como a presença das presenças – uma hiper-presença – na e da civilização burguesa, a tecnologia em seu estado indiferente e que tem como objetivo principal livrar-nos dos danos colaterais – e que tudo o mais vá para o inferno: o próprio planeta como um todo, dano colateral inscrito (decifra-me ou devoro-te) no esfíngico sorriso singelo, simpático e plástico de uma criança american way of life, close-up, num shopping qualquer do planeta.
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Não resta dúvida de que, no Brasil, o “monitor” TV Globo é o que mais faz valer a perfeição necessária da sociotécnica civilização burguesa, razão pela qual cumpre eficazmente todos os objetivos cinicamente em jogo no atual período histórico: 1) tornar ausente a terceira pessoa do progresso, como megamáquica de matar o planeta; 2) tornar ausente os danos colaterais (a vida de modo geral) provocados pela atuação comprazida da megamáquina do progresso burguês; 3) disfarçar as duas ausências precedentes, ratificando-as como inevitáveis danos colaterais, através da onipresença close-up do estilo americano de vida, com sua presença planetária a dizer-nos que se trata de uma casta plenamente legitimada, porque plenamente presente, como publicidade de saber, bondade, inteligência, amor, democracia, alegria, em todos os países da Terra, e não apenas nos Estados Unidos da América.
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De modo geral, toda a programação da sociotécnica TV Globo cumpre os objetivos expostos acima, expondo-nos sem cessar o estilo americana de vida como única presença close-up possível e desejável, divina, fatal. Trata-se, bem entendido, de uma programação publicitária do estilo americano de viver, de tal sorte que podemos chamar de close-up virtual-virtuoso, a estampa american way of life dentro da estampa TV Globo, como sociotécnica da mentira, figuras como Faustão, Ana Maria Braga, William Bonner, Fátima Bernardes, Angélica, Luciano Huck, Jô Soares, William Waack, Patrícia Poeta, sem contar uma legião de atores que comprem essa função estampa ou função close-up da sociotécnica da mentira chamada TV Globo – o monitor da indústria cultural da civilização burguesa em sua mais perfeita, logo mais trágica, versão tupiniquim.
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Sob esse ponto de vista ou sobre essa vista do ponto virtual-virtuoso, como quintessência da mentira burguesa, a autora de novela global, Glória Peres, entendeu muito bem o recado burguês. Não obstante a péssima qualidade de sua atual novela das 8, Salve Jorge. Gloria Peres se especializou em produzir tramas de novela apresentando-nos, como protagonista-mor, o close-up do estilo americano de viver fora do eixo Brasil/EUA/Europa, pois tem como preferência o eixo Brasil/Oriente, pelo menos se considerarmos a sua atual e anterior novela, razão pela qual suas tramas noveleiras têm cumprido três objetivos desdobráveis: 1) mostrar-nos que o estilo americano de vida é realmente universal, vitorioso, glorioso, tal como o Império Romano, pois existe de sol a sol, do Ocidente ao Oriente, alegremente, exoticamente; 2) sub-repticiamente cumpre uma função ou objetivo civilizatório, pois, ao tramar o estilo americano de vida no coração de países orientais, diz-nos por tabela que onde prevalece tal estilo de vida tudo é mais alegre, bonito, charmoso, sensual, simpático, numa palavra, civilizado, tal como nos propunha os nossos colonizadores do passado, por exemplo, com a expansão genocida da fé cristã; 3) ainda de forma mais sub-reptícia, cumpre também o objetivo de tornar universalmente ausente os danos colaterais provocados precisamente pelo estilo americano de vida, pois, ao inscrevê-lo no Oriente, o principal inimigo eleito pela eterna cruzada civilizatória do Ocidente burguês, procura mostrar-nos, ou melhor, esconder-nos os danos colaterais da miséria humana e ambiental provocados pela tragédia da terceira pessoa ausente do progresso da civilização burguesa sobre a ausência terceira pessoa dos condenados da Terra: curdos, iraquianos, palestinos, afegãos, líbios, sírios somalis, sudaneses, xiitas, os, enfim, povos do mundo, bombardeados e caçados, como danos colaterais, pelos drones do progresso da civilização burguesa, das alturas celestiais, de forma ausente, mas fatal, infernal, através de sociotécnicos controles remotos.
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Se considerarmos, tal como nos viciaram em pensar, que o Brasil é um país ocidental, duas perguntas me assaltam, de imediato, sobre o lado brasileiro-ocidental da trama da novela, Salve Jorge. A primeira pergunta é: Por que diabos Gloria Peres transformou o exército brasileiro em close-up doamerican way of life, se considerarmos o perfil dos atores que representam a hierarquia das forças armadas em Salve Jorge, estilisticamente estampados nos termos do rosto, dos jeitos e trejeitos, da primeira pessoa presente do perfil comportamental do americano médio, para não dizer classe mediano? Por que um exército american way of life, como o da novela Salve Jorge, não apenas “protege” como também se apaixona e se casará, no final da trama, felizes para sempre, com a favela carioca, se interpretamos o caso de amor entre a personagem Morena (Nanda Costa) e a do capitão Théo (Rodrigo Lombardi) como índice geral da ficção do caso de amor entre o exército e a favela?
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Até por não ter tais respostas, deixo ao leitor, porque farei o mesmo, o exercício, se achar que vale a pena, de pensar prováveis respostas e considerações para tais perguntas. Por ora, comprazo-me, com o perdão de usar um verbo tão pernóstico, em argumentar que um arranjo trágico geralmente se articula e se efetiva, como tragédia anunciada, tendo em vista sua articulação traidora com outros arranjos igualmente trágicos. Se, por isso mesmo, recentemente, tendo em vista a novela do Mensalão, tivemos a oportunidade de assistir perplexos o casamento ao mesmo tempo real e ficcional entre o poder judiciário e a grande mídia, sobretudo a TV Globo, não estaremos presenciando agora o casamento ficcional (com o desejo de se tornar real?), como plano de fundo e de raso, da mesma grande mídia, e antes de tudo da mesma TV Globo, com as forças armadas brasileiras americanizadas? Que tipo de tragédia se pretende efetivar, como projeto golpista, entre um arranjo matrimonial e outro, principalmente se considerarmos o nosso passado não muito distante e também os últimos golpes, como o de Honduras e o de Paraguai, no contexto latino-americano?
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A guerra civil planetária que assola a Terra, como dano colateral-mor da civilização burguesa, não apenas tem o povo palestino como o danado-mor, mas todo e qualquer povo parasitado pelo estilo americano de vida. Os olhos da sociotécnica da indústria cultural tem um único objetivo: ser a mediação, os médios, do olhar dos danados da Terra, tornando-os cegos de sua própria danação e, por consequência, danando-os a si e por si mesmos, em nome do fundamentalismo-mor de nosso atual período histórico: o estilo americano de vida. Este, como o herdeiro burguês do Velho Testamento, encontrou sua cara metade na crença sionista e profundamente anti-semítica do judaísmo como ideologia messiânica do único povo escolhido por Deus a povoar incestuosamente todo o planeta. A civilização burguesa contemporânea se tornou refém deste híbrido: o sionismo american way of life, arranjo institucional e convencional que, em nome do milenar povo escolhido, pretende transformar todo o planeta em Faixa de Gaza; uma prisão a céu aberto para todos os povos abandonados pela suposta pureza racional, científica e antissemítica da sociotécnica do close-up da tragédia moderna.
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Eis, pois, o arranjo trágico da atualidade neoliberal, com seus derivativos financeiros, culturais, epistemológicos, bélicos, tecnológicos: o american way of life e seus híbridos aristocráticos, pelo mundo afora, rosto de rosto de rosto da primeira pessoa expressiva da castidade do progresso. Para manter sua pureza antissemítica, de original escolhido rosto, o sionismo american way of life, o escolhido entre os escolhidos, está disposto ir às últimas consequências “holocáusticas” com o objetivo de levar adiante a missão transcendental de sacrificar a vida dos impuros povos/rostos, considerados em pecado por encarnarem o drama vivo da condenação à terceira pessoa ausente dos danos colaterais, razão pela qual, é o que acreditam, devem ser colocados no altar do estômago insaciável do progresso, como bodes expiatórios de um modelo civilizatório pernicioso, racista e que é capaz de tudo, pois sabe que tudo é transformado, pela indústria cultural planetária, da qual são os gestores, em fotoshop do estilo americano de viver: mercadoria burguesa.
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Danados de todo o mundo, uni-vos! Rasurai a sociotécnica da era mundial do monitor de TV, de celular, de notebook, de ai isso ai aquilo outro! Fora da mercadoriaamerican way of life, esboçai um expressionista mundo, livremente, revolucionariamente, em processo, de estilos cosmológicos de viver.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]