A indignação é a pior inspiração para leis. Quem não sentiu o sangue ferver diante da crueldade dos repórteres a serviço de Rupert Murdoch, quando o jornal britânico The Guardian revelou que eles haviam hackeado o celular de Milly Dowler, de 13 anos, morta por um assassino serial? O escândalo que explodiu em julho de 2011 provocou o fechamento de um dos jornais de Murdoch, o News of the World, a formação de comissões de inquérito, o indiciamento de dezenas de pessoas, e teve um desfecho condizente com o país de Shakespeare no dramático relatório da Comissão Levenson, divulgado quinta-feira (29/11).
A Comissão pediu um órgão independente para patrulhar os excessos da imprensa britânica. Não usou a sigla PIG, partido da imprensa golpista, não porque seja formada por pessoas com senso de ridículo. Não há ideologia em jogo e sim o DNA do que outrora se chamava jornalismo marrom, um elenco de escroques competindo por manchetes.
Um dos condenados pelo esquema do mensalão reagiu propondo restrições à imprensa brasileira e suponho que uma boa oportunidade se oferece para lembrar o seguinte: o que aconteceu na Grã-Bretanha não é abuso de imprensa, mas pura e simplesmente crime. Quando um detetive particular está na folha de pagamento de Murdoch, incumbido de vigiar residências e grampear telefones de vítimas de crime ou suspeitos de adultério, não estamos falando de jornalismo e sim de gangsterismo. A lei que pune crimes dá conta do recado.
Fogos de artifício
Quando jornalistas se afastam da atividade de recolher informação e se comportam como o Tony Soprano, não há necessidade de uma lei de imprensa para reinar sobre o comportamento execrável. E, como vivemos na era da celebridade sábia, o ator Hugh Grant, uma vítima legítima dos tabloides, se manifestou sobre a covardia dos políticos que, segundo ele, não têm coragem de cortar as asas da imprensa porque querem se reeleger.
Elegeu a covardia errada. A covardia nesse caso, me parece, se refere à falta de coragem para defender a liberdade de imprensa, apesar dos excessos cometidos por tantos em nome de empresas jornalísticas. Sim, o clichê da citação de Thomas Jefferson – “melhor ter jornais sem governo do que governo sem jornais” – cai como uma luva sobre essas crises, seja o escândalo do hacking de celulares na Inglaterra ou o papel da imprensa na investigação do mensalão.
Na década de 90, fui convidada a falar numa aula da New York University. Parte da aula consistia em revelar como a ditadura brasileira influenciou minha liberdade de noticiar o mundo como editora de Internacional da TV Globo. Como não tinha nenhum episódio de censura para contar, notei que decepcionei os alunos. Eles me queriam oprimida e eu não tinha como relacionar minha rotina editorial à ditadura evidente. A censura afetava principalmente o noticiário nacional e minha editoria escapava, mais ou menos, das garras dos censores.
A expectativa de opressão e de ser vítima diante da realidade mais complexa me chamou a atenção em outras situações. Enfrentei uma cerimônia do Prêmio Cabot, da Universidade de Colúmbia, em que um ou outro jornalista nomeado, ao Sul do México, servia como símbolo para um governo repressor quando, de fato, estava mais preocupada com repórteres americanos enfrentando a ira de corporações com tentáculos poderosos em Washington.
Na nossa jovem democracia, muitos soltam fogos de artifício se um jornalista é condenado a pagar X reais por ter insultado a sensibilidade de Y. Alguns litígios refletem uma nova sensibilidade democrática, outros refletem puro oportunismo. Mas, antes de comemorar vitórias de Pirro, é bom levar em conta o admirável mundo novo do legalês, em que a informação pasteurizada por relações públicas quer ditar o registro da realidade.
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[Lúcia Guimarães é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo em Nova York]