Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A esquizofrenia da TV Globo

A grande reportagem é um gênero pouco utilizado no telejornalismo brasileiro. O programa Profissão Repórter – TV Globo, terça-feira, depois das 23h – se apresenta como uma tentativa ousada de aprofundar temas do cotidiano que não costumam ocupar espaço no noticiário dos telejornais. A cada semana traz uma grande reportagem, com as limitações próprias de uma cobertura televisiva que se propõe investigativa, mas que não lança mão de recursos eticamente duvidosos como a câmera oculta. Coordenado por Caco Barcelos – um repórter preocupado em desvendar a realidade social, desde os tempos do Coojornal, em Porto Alegre – e produzido por jovens jornalistas, o Profissão Repórter se destaca em meio aos telejornais previsíveis da emissora líder de audiência.

A edição que foi ar no dia 4 de dezembro tratou do alcoolismo e mostrou a história de três mulheres de camadas médias e humildes vítimas da doença. Focalizou ainda as comemorações do 12 de outubro em Ouro Preto, dia do aniversário da cidade mineira. A festa tradicional reúne estudantes de todas as épocas das escolas técnicas e da Universidade Federal de Ouro Preto. A bebida costuma ser custeada por ex-alunos bem sucedidos na vida profissional, que voltam à cidade para o tempo franciscano das repúblicas. Receosos do tom sensacionalista a que a cobertura jornalística poderia expô-los, os estudantes usaram as redes sociais para articular um boicote simbolizado pelo silêncio. As poucas entrevistas que foram ao ar resumiam-se a breves explicações sobre o porquê de não falar.

De fato bebe-se além da conta na Festa do 12, da mesma forma que em festivais de música, como o Rock in Rioou em megasshows em estádios de futebol, de artistas consagrados do mundo pop, que passaram a vir às pencas para o Brasil depois da crise econômica na Europa e nos Estados Unidos. Mas o jornalismo da TV Globo não explora os exageros dos festivais, nem dos megasshows talvez porque os organizadores desses espetáculos estejam entre os patrocinadores da emissora. A exceção fica por conta dos preços abusivos cobrados pelos taxistas.

Elixir do prazer

No livro A manipulação do público (São Paulo, Futura, 2003), Noam Chomsky e Edward Herman observam que as escolhas, ênfases e omissões da mídia podem ser mais bem compreendidas se levarmos em conta que ela serve a interesses ora estatais, ora privados. “Líderes de mídia alegam que suas escolhas de notícias repousam sobre critérios profissionais e objetivos livres de tendenciosidade. Se, no entanto, os poderosos são capazes de decidir o que à população em geral será permitido ver, ouvir e pensar, e de ‘gerenciar’ a opinião pública por meio de campanhas regulares de propaganda, a visão-padrão de como o sistema funciona está seriamente contrária à realidade.”

Os estudantes de Ouro Preto rejeitaram a exposição na TV como um bando de alcoolizados trôpegos pelas ruas centenárias da cidade histórica. Exerceram seu direito ao silêncio. O Profissão Repórter, por suavez, registrou o boicote, como uma espécie de metarreportagem – aliás uma característica do programa – em que o processo de produção também vira notícia.

Em São Paulo os repórteres acompanharam o drama de Áurea, uma senhora internada há um ano e meio vítima de alcoolismo; de Herikarla, confinada há 10 meses numa clínica de desintoxicação; e de Letícia, mãe de uma criança de três anos. “Botei a consciência no lugar e comecei a parar”, promete Letícia à repórter, que se revela sensibilizada com a sina de uma jovem que parece ter a sua idade. Uma das personagens faz um passeio pelas ruas de São Paulo, acompanhada de uma psicóloga, e confessa o mal-estar ao se deparar com as vitrines dos bares que exibem garrafas de bebidas alcoólicas. Qualquer espectador que conheça de perto o problema é capaz de entender o que significa esse passeio. O estilo de reportagem em planos-sequência, com poucos cortes de edição, realça o drama presente em cada família retratada.

Mas, numa espécie de desconstrução do drama social, o primeiro intervalo comercial traz um anúncio da cerveja Skol (Ambev), oferecida como um elixir da liberdade e da alegria. Não é difícil imaginar como fica a cabeça do espectador, bombardeado por informações que alertam para os riscos do consumo exagerado de álcool e que, num piscar de olhos, é convidado a consumir bebida alcoólica para alcançar o prazer.

Cardápio louco

Não se trata aqui de reproduzir nenhum discurso moralista, nem de propor campanha contra o consumo de bebidas alcoólicas. As normas vigentes já restringem a publicidade de bebidas na TV ao período posterior às 22h e há um projeto em tramitação na Câmara dos Deputados que pretende aboli-la em definitivo. O problema em questão está na esquizofrenia exibida pelos meios de comunicação hegemônicos.

Num primeiro momento, o programa faz um alerta que beira o sensacionalismo para o drama pessoal de pacientes. No intervalo, vira-se a página e agora o que vale é beber cerveja para ser feliz. Esse cardápio de ofertas aparentemente paradoxais revela o descompromisso que ocorre na TV entre a geração de conteúdo e a veiculação dos anúncios que viabilizam economicamente a produção deste mesmo conteúdo, dentro do modelo tradicional do broadcasting.

A Central Globo de Jornalismo não tem ingerência no material publicitário veiculado pela emissora, mas a direção da TV Globo não pode eximir-se da responsabilidade de supervisionar toda a programação, incluindo aí as janelas comerciais, sob pena de reforçar a esquizofrenia. Um telejornal exibe matéria sobre os riscos do consumo excessivo de refrigerantes e a janela comercial seguinte traz um anúncio da Coca-Cola ou do guaraná Antártica, com uma linda modelo de biquíni numa praia afrodisíaca. Outra matéria alerta para os problemas do colesterol em excesso e, a seguir, assistimos a um anúncio que oferece uma bela picanha na promoção de um supermercado.

No meio desse cardápio enlouquecedor, poderíamos incluir a recomendação: “O Ministério da Saúde adverte: o excesso de jornalismo pode prejudicar o fígado dos anunciantes”.

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[João Batista de Abreu é jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense]