Qual é a droga que vicia à primeira tragada e leva à morte em pouquíssimo tempo? Resposta inequívoca: a maconha, de acordo com a propaganda disfarçada de campanha educativa levada ao ar no início dos anos 1950 nos Estados Unidos.
O trecho inicial desse filme (ver aqui) abre o documentário de Ron Mann (1999) sobre a história do uso e da condenação à maconha nos EUA ao longo do século 20. Revisitá-lo agora é muito oportuno, considerando o bombardeio atual dessa nova propaganda disfarçada de noticiário sobre o crack.
Não se trata, naturalmente, de comparar essas drogas e seus efeitos, mas de apontar a semelhança entre campanhas baseadas na demonização das drogas de modo geral, o que não costuma ter qualquer resultado prático na redução do uso mas tem graves consequências na consolidação de preconceitos e, portanto, na aceitação de soluções radicais supostamente direcionadas a um grupo específico de pessoas, mas que podem se estender progressivamente até abrangerem todos os “indesejáveis” ou “desviantes” de uma sociedade.
Poderíamos lembrar aqui o famoso conto de Machado de Assis no qual um médico vai pouco a pouco internando todos os habitantes de uma pequena cidade, até concluir que o louco era ele próprio. Coerentemente, libertou a todos e trancou-se no hospício. Infelizmente, a lucidez do alienista não se transfere para quem, hoje, defende medidas de exceção embaladas por um discurso pseudocientífico.
Debate à contracorrente
Nos dias 3 e 4 de dezembro, o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Unifesp, realizou o II Simpósio de Crack para questionar a existência da propalada “epidemia” e discutir uma série de questões relativas a essa droga, como prevenção, tratamentos alternativos, políticas públicas e o papel da mídia na cobertura do tema.
Sob esse aspecto, alguns dos participantes deixaram clara a influência da imprensa na conformação do enfoque predominante sobre o crack e o “craqueiro”. Mostraram, por exemplo, que, embora venha sendo consumido há mais de 20 anos no Brasil, apenas nos últimos dois o crack passou a ser pauta recorrente na mídia, onde surgiu a classificação de “epidemia”, como uma espécie de simplificação facilitadora para a percepção do público sobre o alcance e os riscos dessa droga. Só então o termo foi incorporado em trabalhos acadêmicos, acriticamente e sem qualquer referência a fontes, o que, por sua vez, realimentava o noticiário nesse mesmo sentido e ajudava a fabricar o consenso.
Os participantes também apontaram a falta de interesse da imprensa diante de qualquer pauta que não fossem as ações extremas, especialmente a internação compulsória, confirmando assim o que pesquisadores de jornalismo já demonstraram a respeito do agendamento produzido pela mídia. Expuseram as dificuldades no trabalho cotidiano de atendimento aos usuários, pois os próprios profissionais da saúde rejeitam os mais degradados, justamente os que mais necessitam de cuidado, o que amplia a situação de exclusão. Além disso, criticaram o modelo único de tratamento, que fecha a porta a quem não se adapta a ele.
O apelo à urgência
A pluralidade de vozes qualificadas reunidas nesse encontro é um indicador da existência de fontes alternativas ao discurso dominante em relação ao crack. Falaram, entretanto, para um auditório de 300 pessoas; podem certamente ampliar sua audiência em outros fóruns e nas redes sociais. Mas não conseguem penetrar na mídia hegemônica, a não ser perifericamente, porque a ela não interessa esse contradiscurso.
Esse desinteresse não decorre apenas de questões ideológicas – que já seriam suficientemente poderosas –, mas da lógica do senso comum segundo a qual esta mídia trabalha, e que exige soluções imediatas para qualquer problema que apareça como ameaça à ordem.
Não há respostas simples nem rápidas para situações como esta, reveladoras de um grave, profundo e antigo problema social. Mas dizer isso é contradizer as expectativas: quem argumenta nesse sentido tende a ser desqualificado como “acadêmico” descomprometido com a ação. Mais fácil é limpar a área, retirar de cena os indesejáveis; para onde vão e o que ocorrerá com eles – se vão para locais de acolhimento desprovidos de condições mínimas de funcionamento, se vão ser despachados para a periferia, longe do alcance regular das câmeras – não parece ser motivo de preocupação. Que desapareçam, que parem de incomodar: é só o que interessa.
Anticoncepcionais para as “mães do crack”
Em maio de 2010, no contexto de uma reportagem da Folha de S.Paulo crítica ao governo federal e seus planos de combate ao crack que não saíam do papel, o médico Drauzio Varella alertou para a falta de uma política abrangente de tratamento: “A saúde pública não sabe tratar craqueiro. Não temos trabalhos científicos comparando as melhores drogas para tratar essa dependência. Política, para funcionar, tem de ser de longo prazo” (ver aqui).
Com o passar do tempo, Drauzio foi assumindo a defesa da internação compulsória. Agora, em seu mais recente artigo, publicado no sábado (1/12) no mesmo jornal, propõe uma intervenção imediata sobre as “mães do crack”: depois de descrever as cenas degradantes que chocam os leitores mais sensíveis – um deles, na seção de comentários, disse não ter conseguido ir até o fim –, sugere que as mulheres viciadas recebam anticoncepcionais injetáveis em intervalos regulares:
“Exigir que sob o domínio do crack lhes sobre discernimento para a disciplina dos métodos contraceptivos é arrogância dos ignorantes que desconhecem a ação farmacológica da cocaína; é tripudiar sobre a desgraça alheia.
“Existem anticoncepcionais injetáveis administrados a cada três meses, ideais para esse tipo de situação. Como é insensato esperar que a usuária procure os serviços de saúde, não seria muito mais lógico levá-los até ela?
“Antes que os defensores de ideologias medievais rotulem como eugênica essa solução, vamos deixar claro que não haveria necessidade de qualquer constrangimento, as dependentes aceitariam de bom grado a oferta do anticoncepcional.
“Elas não concebem filhos com o intuito de viver os mistérios da maternidade”.
Simples, não?
Nem se fale da especial dificuldade na abordagem das mulheres que se drogam – no debate do Cebrid alguns pesquisadores mencionaram esse problema, pois elas são “protegidas” pelos colegas que as exploram como prostitutas. Pensemos apenas na lógica do argumento: essas pessoas não têm discernimento para procurar auxílio, mas têm discernimento para aceitar “de bom grado” a oferta do anticoncepcional – e lá o que mais essas injeções possam transportar.
A propósito, não seria demais recordar a experiência de Tuskegee, no Alabama (EUA), entre 1932 e 1972, que reuniu 600 homens negros – dois terços com sífilis, os demais sãos – para observar a evolução da doença. “Não foi dito aos participantes do estudo de Tuskegee que eles tinham sífilis, nem dos efeitos desta patologia”, escreveu o biólogo José Roberto Goldim. “O diagnóstico dado era de ‘sangue ruim’. Esta denominação era a mesma utilizada pelos eugenistas norte-americanos, no final da década de 1920, para justificar a esterilização de pessoas portadoras de deficiências.”
É claro que esta remissão tem o exclusivo sentido de apontar as hipóteses de ultrapassagem de limites éticos na área médica. No caso, em vez de simplesmente fornecer anticoncepcionais, por que não esterilizar logo essas pessoas? Já não estão mesmo no fim da linha?
Por fim, de fato essas mulheres não concebem filhos com o intuito de viver os mistérios da maternidade – nem elas, nem as moradoras de rua em geral, ou tantas das adolescentes pobres que engravidam casualmente. Não é difícil perceber, portanto, que essa solução pensada para este grupo específico de pessoas para sanar um problema emergencial possa se estender às demais “emergências” que perturbam o bom convívio social.
Contra o higienismo
Crítico da internação compulsória, o professor Luis Fernando Tófoli, em artigo reproduzido neste Observatório, aponta o perigo dessa conclusão aparentemente lógica e sensata:
“Além da redução de danos, existe um vasto conjunto de estratégias que deveriam ser utilizadas. As respostas às intervenções variam muito de indivíduo para indivíduo, e nenhuma medida tem como ser mais eficiente do que um conjunto delas, sem falar na discussão sobre a reforma da legislação de drogas no país. Isso não quer dizer que não existam casos que necessitem do tratamento involuntário – quando a equipe de saúde assim decide, diante do risco do paciente. Mas a melhor evidência disponível nos permite assumir que os casos que exigem internação involuntária são a exceção e não a regra do universo de usuários de crack. Por fim, quando analisamos a literatura sobre tratamento compulsório ‘aquele determinado pelo poder público e que no Brasil, até o momento, só pode ser aplicado caso a caso e não em massa’ descobrimos que ele é ineficiente como cuidado à saúde e vem sendo criticado por sérias distorções éticas”.
Tófoli conclui com uma exortação aos profissionais da área e ao próprio ministro da Saúde, para que supere as pressões políticas e não ofereça respaldo federal “a medidas higienistas e de caráter protofascista”. Que, como sabemos, nunca dizem seu nome e sempre se revestem das melhores intenções.
Leia também
O cultivo científico da ignorância – S.D.M.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]