Pelo segundo ano consecutivo, a música gospel entra na programação de fim de ano da TV Globo, emissora que nunca escondeu sua proximidade com o catolicismo, mas que já estuda a possibilidade de investir em versões regionais do festival de músicas evangélicas. Ao mesmo tempo, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) promete colocar na rua o edital que vai selecionar a produtora responsável por dar forma à nova faixa da diversidade religiosa da TV Brasil, emissora pública de televisão.
TV Globo e TV Brasil ocupam polos opostos no cenário brasileiro das telecomunicações. De um lado, a emissora que é símbolo da tradição brasileira na radiodifusão. Modelo onde a lógica vigente é a da comunicação nascida e nutrida pela iniciativa privada. De outro, uma empresa que se pretende alternativa mas que ainda se encontra na infância, no tatibitate, do que pode ser de fato uma emissora pública com total autonomia frente a poderes políticos e econômicos. Tanto uma quanto a outra entram em 2013 ampliando o espaço que destinam às religiões.
O que pode parecer um encontro, uma convergência, na verdade revela caminhos completamente distintos. A motivação da Globo ao abrir a grade para a fé evangélica está na busca do público. Durante décadas, a emissora teve presença quase que absoluta nos aparelhos de TV país afora. Mas vem, ano após ano, amargando quedas bruscas de audiência.
A poderosa emissora dos Marinho corre atrás de um grupo que cresceu mais de 60% desde 2002. O total de evangélicos no país saltou de 26,2 milhões para 42,3 milhões de pessoas – um batalhão de potenciais consumidores que tende a ter uma identificação mais rápida com a concorrente TV Record.
Índices de audiência
Já as razões da EBC seguem outra direção. O objetivo não era ampliar o espaço para as doutrinas de fé. Ao contrário, a ideia original era cessar a exibição dos programas religiosos. Em março de 2011, o Conselho Curador, instância máxima de decisão da EBC, determinou a suspensão de três programas de TV e um de rádio, incluindo a Santa Missa da Arquidiocese do Rio de Janeiro, e o programa Reencontro, vinculado à Igreja Batista de Niterói, ambos herdados da antiga TVE do Rio de Janeiro.
A decisão teve origem em manifestações de telespectadores que criticavam a cessão de espaço na grade de programação da TV Brasil para as duas religiões majoritárias. O argumento era que, uma vez sendo pública, a emissora deveria ser laica. Depois de quase dois anos, uma liminar judicial e duas audiências públicas, a recomendação do Conselho foi derrotada e os programas religiosos não apenas foram mantidos, como ficou decidida a criação de uma faixa da diversidade religiosa na programação que dará espaço para segmentos minoritários – ateus, inclusive.
A comparação entre as duas emissoras é uma boa oportunidade para refletir sobre a necessidade de se consolidar espaços que garantam o caráter público da comunicação. A busca pela audiência é legítima. As empresas de comunicação são empresas, logo precisam ter autonomia financeira, arcar com os custos de produção e obter lucros. Mas antes de tudo são empresas que atuam no delicado campo da comunicação: consolidam valores, influenciam hábitos e padrões culturais, interferem na política. Nesse campo, é fundamental garantir que a busca por mais público não atropele outro valor: o interesse público.
A diferença não é sutil. É o interesse público que faz com que uma empresa de comunicação entre em atrito com parte da própria audiência para discutir se deve ou não manter espaço para sua programação religiosa. É a busca pelos índices de audiência que faz com que uma emissora simpatizante de um determinado credo abra mão de suas convicções e se aproxime de outro segmento religioso para garantir o faturamento.
Boa pergunta
Os sistemas religiosos sempre foram cruciais na estruturação das sociedades. É na fé que dilemas básicos da humanidade (qual o sentido da vida?, o que fazer com a inexorabilidade da morte?, como alcançar a felicidade?) frequentemente encontram respostas. É na esfera do sagrado que a humanidade se abastece de esperança, nem que para isso seja necessário lançar mão de verdades inquestionáveis. Refutar esses dogmas é romper com a doutrina.
Como isso se aplica ao caso da programação religiosa nas TVs brasileiras? Quando uma emissora abre espaço para qualquer doutrina tendo em vista sua saúde contábil, é o lucro que assume o lugar do sagrado. Ora, se essa é a divindade que vai passar a responder nossas dúvidas existenciais, pode-se concluir que todos os outros valores da sociedade – política, história, cultura – estarão subordinados a esse “deus”. Será possível a manutenção de princípios como cidadania, democracia e justiça em um sistema de comunicação que funcione sob essa lógica?
Por outro lado, a decisão do Conselho Curador da EBC propõe um rompimento com a tradição, com vistas a um tratamento mais equânime entre as diferentes religiões. A medida colocou a empresa em rota de colisão com duas doutrinas majoritárias e repletas de legitimidade – catolicismo e protestantismo – que mostraram suas ramificações pelos três pilares do Estado de Direito: os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo (aqueles que, constitucionalmente, deveriam ser laicos).
O confronto revela a fragilidade da mais alta esfera de decisão da EBC. Se no modelo privado vence o lucro, aqui vence o dogma. Frente aos fatos, a reflexão necessária: interessa à sociedade brasileira construir um sistema de comunicação subordinado apenas aos interesses públicos e que se consolide como espaço de respeito à diversidade, aberto ao diálogo e capaz de suportar as pressões de sistemas consolidados na política, na economia e na religião?
Se a resposta for sim, está na hora de nossa sociedade começar a pensar quais serão os valores que precisam ganhar espaço em nosso altar eletrônico.
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[Eliane Gonçalves é jornalista, integra a equipe da Empresa Brasil de Comunicação e pesquisa a presença das religões nos meios de comunicação]