Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Queirós

“Um debate de interesse público inquinado pela citação infiel de declarações do primeiro-ministro.

As últimas semanas foram pródigas em confusão informativa sobre as posições do Governo em relação a temas fundamentais de interesse público. Não foram apenas as lamentáveis declarações de sinal contrário (conforme proferidas antes ou depois de o ministro das Finanças alemão se pronunciar sobre o tema) com que os governantes portugueses se referiram à extensão ou não ao nosso país de parte das novas condições concedidas à Grécia para o pagamento da sua dívida, aprovadas na reunião de ministros da zona euro no passado dia 26 de Novembro. Foi também, por exemplo, o caricato folhetim em torno da alegada intenção governamental de impor o pagamento de propinas para a frequência do ensino secundário.

Este último caso, nascido na sequência de uma entrevista dada pelo primeiro-ministro à TVI no dia 28, ilustra bem como às trapalhadas causadas pela mediocridade da comunicação governamental se somam por vezes erros graves da responsabilidade dos órgãos de informação, que ampliam o ruído e a confusão, prejudicando a qualidade do debate público democrático. O PÚBLICO não saiu ileso deste episódio que não dignificou o jornalismo.

Recordem-se os factos. Interrogado na televisão por Judite de Sousa sobre se os cidadãos poderão vir a 'pagar pelas escolas públicas' – no contexto dos cortes de quatro mil milhões de euros que o Governo anunciou pretender cortar na despesa pública –, Passos Coelho disse (cito uma transcrição deste jornal) que, 'na área da educação, temos alguma margem de liberdade para poder ter um sistema de financiamento mais repartido entre os cidadãos e a parte fiscal directa que é assumida pelo Estado'. Confirmava, assim, a intenção de incluir o sector educativo entre os alvos dos cortes que deverão ser conhecidos em Fevereiro.

Não tendo explicado em que se traduziriam esses cortes, passava a ser obrigação dos media tentar apurar se estavam já estudadas medidas para os concretizar, e qual a sua natureza. Foi o que começou a ser feito logo na manhã seguinte, mas da pior maneira. Com base num despacho da agência Lusa, o Público divulgou às 12h04 do dia 29 a informação errada, que outros órgãos de comunicação também difundiram ao longo do dia, de que o primeiro-ministro afirmara na entrevista que a Constituição 'não trava mudanças no financiamento do sistema educativo, que pode assim passar a ser semipúblico com a introdução de co-pagamentos nos níveis de ensino que hoje são gratuitos'.

Esta frase, que Passos Coelho nunca pronunciou, foi de imediato interpretada, nos círculos políticos e em várias redacções, como significando que o Governo se propunha instituir o pagamento de propinas no ensino secundário. Constitucionalistas foram ouvidos sobre a legitimidade desse pagamento num nível de ensino que é hoje obrigatório e alguns apressaram-se a sair em sua defesa com duvidosos argumentos. Durante todo esse dia, e não só, associações de professores e de pais, sindicatos, partidos e personalidades várias vieram a público condenar a ideia atribuída ao primeiro-ministro, enquanto um secretário de Estado 'apanhado' numa sessão pública fugia a esclarecer a questão, com evasivas como 'é precoce falarmos do que quer que seja' ou 'é cedo para discutir essa matéria', avolumando assim as especulações.

Na edição online do PÚBLICO iam sendo difundidas essas e outras reacções. A voz autorizada de Jorge Miranda era citada a defender a manifesta inconstitucionalidade de taxar o ensino obrigatório, enquanto no Parlamento o PCP requeria a convocação do ministro da Educação para explicar a ideia das 'propinas' no secundário, e deputados das vária forças de oposição condenavam com veemência mais um ataque ao Estado social.

Às 19h54, surgia nos ecrãs de quem consultasse o site do PÚBLICO a informação de que o Ministério da Educação garantia em comunicado que 'nunca o Governo pôs em causa a gratuitidade da escola obrigatória' (o que valeria a Passos Coelho a acusação de ter sido 'desmentido' por Nuno Crato). Na mesma notícia, e sendo já conhecida uma correcção (que não terá primado pela clareza) feita pela Lusa ao seu primeiro despacho sobre o tema, era finalmente assumida a falsidade da atribuição a Passos Coelho da frase sobre 'co-pagamentos'. O próprio primeiro-ministro viria a explicar (durante uma visita a Cabo Verde, no passado domingo) que não fizera 'qualquer referência a essa matéria', acrescentando que 'não é possível, em termos de ensino obrigatório, criar taxas dessa natureza'.

Note-se que, face à opacidade da declaração realmente feita por Passos Coelho na entrevista à TVI, e à falta, até hoje, de explicações transparentes sobre a matéria, a especulação sobre a introdução de propinas no secundário não era ilegítima. Nem tem de ser excluída liminarmente a tese dos que defenderam que o primeiro-ministro terá pretendido testar as reacções a um projecto desse tipo, que já terá defendido abertamente num passado recente. Esse é, no entanto, o domínio da especulação, não o da informação. E a verdade é que Passos Coelho não disse o que nas primeiras notícias do PÚBLICO se afirmou que dissera, gerando-se com isso uma polémica artificial e um debate público inquinado à partida por pressupostos falsos – o que é o contrário do papel que cabe a um jornalismo responsável.

Na edição em papel do dia 30, o jornal corrigiu novamente o erro de citação, e a partir daí privilegiou, bem, outra abordagem: a de investigar e procurar opiniões qualificadas sobre a natureza das medidas em que poderá traduzir-se, afinal, a ideia de um sistema de ensino com 'financiamento mais repartido' entre os cidadãos e o Estado. Fui aliás informado de que os leitores poderão encontrar hoje nestas páginas um desenvolvimento mais aprofundado desse tema, enquanto se aguardam os esclarecimentos que o ministro da Educação irá prestar ao Parlamento.

A confusão lançada pelas primeiras notícias publicadas no dia 29, que não está ainda totalmente dissipada, deveria entretanto, na minha opinião, levar a uma reflexão urgente no interior do jornal sobre processos de trabalho e de organização manifestamente deficientes e que tardam em ser corrigidos. É inaceitável que a falsa citação do primeiro-ministro tenha sido colocada em linha sem que ao menos a importância do tema tivesse levado a um visionamento prévio da entrevista televisiva, e sem qualquer outra diligência de verificação dos factos, ou de procura de explicações suplementares junto de fontes governamentais. É inadmissível que a correcção difundida pela Lusa, ainda que pouco clara, tenha sido ignorada durante várias horas. São preocupantes os sinais de descoordenação entre a edição online e as secções especializadas da redacção.

Pedi explicações sobre este caso a todos os que no PÚBLICO estiveram envolvidos na elaboração e acompanhamento das notícias. Recebi explicações detalhadas – que não é possível, pela sua extensão, reproduzir aqui, mas podem ser integralmente consultadas no meu blogue, alojado no Público Online – das jornalistas Bárbara Wong, Clara Viana, Graça Barbosa Ribeiro e do editor Tiago Luz Pedro, bem como um depoimento do director adjunto Miguel Gaspar, reconhecendo que 'a entrevista do primeiro-ministro deveria ter sido revista [mais cedo] para se identificar as expressões exactas que ele utilizou'.

No seu conjunto, essas respostas contribuem para compreender como se desenvolveu o processo de produção da notícia. Para o esclarecimento da questão central (a da publicação precipitada de informações que não correspondiam à verdade), será especialmente útil ler o depoimento de Clara Viana, que, tendo tido um papel activo na correcção da falha informativa inicial, descreve com clareza o que classifica como uma 'cadeia de erros lamentável'. Subscrevo a sua conclusão de que 'a rapidez não se deve sobrepor ao rigor', e de que casos como este devem obrigar a uma 'reflexão interna'. Tal como penso que Graça Barbosa Ribeiro tem razão em considerar urgente o debate das novas dinâmicas profissionais introduzidas pela informação online, 'criando mecanismos de controlo e afinando (…) a articulação entre editores, entre editores e jornalistas e entre jornalistas, especialmente nos casos de trabalho de equipa'.

Ivone Neiva Santos, uma leitora que criticou a notícia sobre as declarações do primeiro-ministro, levanta uma outra questão. Na sua opinião, deveria ter sido assinalada a filiação partidária de dois constitucionalistas citados, ambos ex-deputados do PSD, que defenderam que a possível taxação do ensino secundário seria compatível com o texto da lei fundamental. A questão é pertinente, mas a falta de espaço já referida obriga-me a remeter também a sua mensagem para o meu blogue, onde a leitora e outros interessados encontrarão as explicações do editor e da jornalista a quem coube a tarefa de recolher as opiniões dos juristas.”