Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O nacionalismo catalão e a ignorância midiática brasileira

Passadas as eleições catalãs de 25 de novembro – que podem decretar a separação da região da Catalunha do Estado espanhol depois de quase 300 anos de conquista, desde 11 de setembro de 1714 – é impossível não chegar a algumas conclusões tristes sobre a cobertura brasileira da questão. Enquanto se aproximava a data em que um novo parlamento fortemente nacionalista seria eleito, pipocaram, tanto na dita grande mídia, quanto na mídia alternativa, artigos equivocados que, ao contrário de informar, acabam por desinformar sobre o processo, com o tradicional preconceito burguês anti-separatismo de um lado e com noções ultrapassadas e datadas de certos marxistas ou pós-marxistas sobre o mesmo tema.

Dois artigos chamam a atenção no período pré-eleitoral, com análises pífias, errôneas e até preconceituosas, que chegam a tratar o leitor como uma espécie de imbecil. A primeira vem da Folha de S.Paulo, com o titulo “Separação da Catalunha ignora imigrantes”, onde o “argumento” central seria o fato dos 1,5 milhão (estimativa) de imigrantes que vivem na região não terem direito a votar ou a ser consultados em um futuro referendo pela independência a ser organizado pelo partido vencedor ou pela coalizão vencedora nas próximas eleições, caso os prognósticos e pesquisas se mantenham.

Oras, mas os imigrantes que não teriam direito a votar tanto nas eleições autonômicas de 25 de novembro quanto no referendo pela independência, já que não têm direito algum de votar dentro do Estado espanhol. Sua situação de ilegalidade e/ou de falta de direitos políticos não se deve a qualquer ação ou falta de ação catalã, mas sim, do governo central espanhol, responsável por assuntos do tipo. Não há uma “cidadania” catalã formal ou legal, mas apenas a espanhola, ou seja, o direito ao voto e outros direitos políticos devidos aos imigrantes são de responsabilidade da Espanha e a Catalunha não tem nenhuma relação com isso.

Processo longo

Imputar um suposto problema ou exclusão dos imigrantes à generalitat (governo) catalã não é apenas ignorância, mas é desonesto, pois não é competência desta a naturalização dos imigrantes. Se estes imigrantes sequer são cidadãos espanhóis, como a Catalunha, uma região subordinada à Espanha, teria responsabilidade?

Outro ponto problemático no texto é o de imputar à identidade catalã ou ao nacionalismo catalão uma suposta xenofobia ou insinuar que em uma Catalunha independente as minorias religiosas e étnicas seriam discriminadas – insinuação baseada apenas em achismo e em representação residual de partidos de extrema-direita nas prefeituras de pequenas cidades. A representação destes partidos não ultrapassa, em geral, os 5% do total de votos na região. São barulhentos, é fato, mas residuais. E vale ainda lembrar que o partido atualmente no poder na Espanha, o PP, tem um caráter claramente xenófobo e intolerante com minorias (aí inclusos bascos, catalães etc.), mas este dado parece passar despercebido.

O segundo artigo vem da Agência Carta Maior, “A Catalunha à deriva”, de Flavio Aguiar, que, já no título, demonstra a total ignorância do autor em relação à região ou mesmo má vontade em compreender o ponto culminante em um processo longo e duro até a independência.

Nacionalismo de esquerda

É um equívoco, ou mesmo falta de tato, acreditar que o que acontece na Catalunha é mero reflexo da crise ou da “onda de direita que varre a Europa”. Se por um lado é verdade que o partido ou coalizão de Artur Mas, CiU, é de direita, por outro é visível o apoio que a esquerda, representada pela Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), pela Candidatura d’Unitat PopularAlternativa d'Esquerres (CUP), Solidaritat Catalana (SI), dentre outras formações de esquerda, dão ao processo de independência. Alas do PSE (braço local do PSOE), inclusive, se mostram simpáticas à independência da Catalunha ou, ao menos, a uma autonomia ainda maior.

No País Basco, a coalizão EH Bildu, de esquerda nacionalista, chegou em segundo lugar nas últimas eleições locais, poucos votos atrás do direitista Partido Nacionalista Basco (PNV). Coalizões nacionalistas de esquerda também são segunda e terceira forças em Navarra, assim como os partidos nacionalistas mais fortes na Andaluzia, Astúrias e Aragão são, todos, de esquerda. E não é possível esquecer a Galiza ou Galícia, onde o movimento nacionalista é hoje representado por dois partidos. De esquerda. Não podemos esquecer ainda de grupos armados, como o ETA, no País Basco, ou o Terra Lliure, na Catalunha. Ambos, grupos de caráter marxista e nacionalista.

Na Escócia, o processo de independência é capitaneado pelo Scottish Nationalist Party, ou Partido Nacionalista Escocês, também de esquerda, ao passo que no sul da França, na região conhecida como Occitania, o Partit Occitan (PO) é a maior força nacionalista. Novamente, um partido de esquerda.

Séculos de resistência

É óbvio que em outros países, como na Bélgica, em sua região de maioria flamenga, há forte presença de nacionalistas de direita, mas é incorreto afirmar que o que acontece no Estado espanhol – ou na Escócia, na França etc.) se deva a uma “onda de direita”. Tanto significa desprezar a força dos partidos de esquerda nacionalista locais, quanto a história de luta destes povos, em muitos casos de mais de três séculos.

Na Itália, por exemplo, há movimentos que se alinham com a direitista Lega Nord (Liga Norte), que prega a criação da Padania no rico norte do país, e movimentos regionalistas em Veneza, por exemplo, de esquerda, que pregam a independência de sua região, e não de um rico “norte”. Ou seja, cada caso é um caso, com características próprias e que não podem ser reduzidos a um mero enfrentamento esquerda e direita ao gosto de uma mídia burguesa e de veículos ditos de esquerda que, infelizmente, têm interesses próprios.

Enfim, o problema da Catalunha – e do País Basco etc. – não se limita a Mariano Rajoy, mas está em José Luis Rodríguez Zapatero, em José María Aznar, em Francisco Franco e sua memória, em tribunais de exceção, em prisões ilegais, tortura, ilegalizações e, enfim, em séculos de história pré-conquista e de resistência posterior que não pode ser desprezada.

***

[Raphael Tsavkko Garcia é blogueiro e jornalista, formado em Relações Internacionais pela PUC-SP e mestre em Comunicação]